Solenidade da Epifania do Senhor – 2020

SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR – 2020

Ano A

Pistas homilético-franciscanas

 

Liturgia da palavra: Is 60,1-6; Sl 71; Ef 3,2-3ª.5-6; Mt 2,1-12

Tema-mensagem: Os magos viram o Menino, se ajoelharam e O adoraram

Sentimento: gratidão e alegria

Introdução 

Após sua manifestação pública  aos judeus, Jesus, hoje, encerrando o Tempo do Natal, faz sua manifestação também para todos os povos e nações representados pelos Três Reis Magos. Guiados por uma misteriosa estrela que lhes apareceu no oriente, se põem a caminho para encontrar seu verdadeiro guia e rei: o Menino Jesus, deitado no presépio.

 

  1. A Epifania na visão dos profetas (Is 60,1-6)

Desde tempos antigos, a Igreja chama esta manifestação de “Epifania”. Mais que manifestação, epifania expressa o movimento de Deus que, irrompendo do alto de sua grandeza, glória e majestade, se humilha, se apequena a fim de ingressar no horizonte e na história dos homens, tornando-se assim a estrela de seus passos e o sentido de sua vida.

Quem, ao longo da história judaica, vê com clareza o movimento desta paixão são os profetas. Na primeira leitura de hoje, Isaías fala de Jerusalém que é iluminada por Deus e que, por sua vez e por isso, ilumina todo o mundo. Se antes os habitantes de Jerusalém se queixavam porque esperavam a luz, e, no entanto, só encontravam as trevas ou porque buscavam a claridade, e, no entanto, tinham que caminhar na escuridão (Cf. Is 59, 9b), agora ouvem a exortação: “Põe-te de pé e torna-te luz, Jerusalém, por que está chegando a tua luz: a glória do Senhor se levantou sobre ti” (60,1). Assim, a partir de Jerusalém, a glória do Senhor passa a iluminar toda a terra, nações, povos e reis (Cf. 60, 2-3). Deus será o esplendor de Jerusalém e a sua luz perene. Os seus filhos e filhas retornam do exílio. Mas com eles, atraídos para o Monte Santo e o Templo, vêm as nações, que afluem a Jerusalém, portando consigo os seus tesouros, “ouro e incenso” (60, 6a). Assim, também os gentios “se tornarão mensageiros dos louvores do Senhor” (60, 6b).

 

  1. Um reino de justiça e de paz (Sl 71)

Quem saúda e canta o reinado universal do futuro Rei, o Messias (o Ungido), que rege com justiça, paz e cuidado em favor dos pobres e fracos, é o salmista da missa de hoje. Proclama que o reino Dele é eterno e universal, que “todos os reis se prosternarão diante dele, todas as nações o servirão”. Agostinho, meditando este salmo, pensa na paz que emana da força do Cristo. Paz, mais que ausência de conflitos, é empenho na busca da unidade, da comunhão. Assim, a paz de uma cidade é o empenho de seus cidadãos todos, santos e pecadores, fracos e fortes a fim de viverem concordes e unidos nas e com suas diferenças. Da mesma forma a paz de uma alma é a unidade, a harmonia, o acordo de suas forças, a fraternidade entre o lobo e o cordeiro que existem dentro de nós (Cf. Lobo de Gúbio, de São Francisco). Por isso, a potência do Rei-Menino, não é outra do que a não-força da graça da doação, da “charis”. Seu reino eterno e universal é a regência e a vigência da potência do amor, da misericórdia que faz ressurgir a cordialidade da vida, o Reino dos céus.

 

  1. O mistério de Deus acerca dos pagãos (Ef 3,2-3ª.5-6)

Na epístola de hoje, Paulo fala com alegria, gratidão, e até com emoção, da honra com a qual Deus o distinguiu chamando-o para a graça de realizar o plano Dele a respeito dos efésios: que eles e todos os pagãos “são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho”. Este é o mistério, o plano, o desígnio, o desejo que Deus guardou desde toda a eternidade e que agora – depois de revelado por Cristo – é confiado a ele, Paulo, e aos demais santos Apóstolos e profetas. Que honra, que dignidade, que responsabilidade, pensa e sente Paulo!

 Trata-se de reunir numa unidade as duas porções da humanidade então cindida: judeus (os santos, os eleitos) e gentios (os impuros, os “cães”). Agora Paulo, com a aparição de Jesus Cristo, vê todos os homens, de todos os povos da terra, reunidos pela fé, como herdeiros da mesma bênção que fora confiada a Abraão; também eles são herdeiros do Reino de Deus, por se tornarem também eles filhos de Deus, formando, assim, todos, o único Povo de Deus.

Paulo, tocado pela luz do Evangelho, começa a ver o que então – pela cegueira da lei e de suas tradições – não podia ver: que os pagãos são seus irmãos mais velhos, outrora prometidos por Jahvé a Abraão, uma descendência incontável, “gerada não segundo a carne, mas pela fecundidade da fé, e por isso, comparada à multidão das estrelas” (São Leão Magno).

Quem, 13 séculos mais tarde, também se comove ao contemplar este mistério foi São Francisco. Movido por este espírito – a universalidade do Cristianismo – se sentiu levado a inaugurar a “Vida consagrada ativa”, uma Vida mendicante, peregrina que faz do mundo o seu convento. Foi o júbilo, o fogo do querigma cristão que o levou a empreender inúmeras viagens apostólicas, destacando-se entre elas a viagem ao norte da África e à Terra santa. Foi nesta viagem que se deu o famoso encontro com o Sultão e o início da Cruzada do Amor em substituição às Cruzadas do ódio e das armas contra os sarracenos.       

 

  1. Os misteriosos magos e sua mensagem (Mt 2,1-12)

Todo este insondável mistério, que tanto encantara Paulo e toda a Igreja primitiva, nos chega de modo diverso e admirável pelo evangelho de São Mateus, com a narrativa da misteriosa visita dos não menos misteriosos magos ao Menino Jesus. O Grande Rei, que o universo não pode conter, quis caber como menino deitado numa manjedoura de estrebaria. Tudo muito estranho! Não se manifesta aos escribas e sacerdotes, aos maiorais e poderosos, mas a menores, pobres e rudes pastores da Judeia, a estrangeiros e gentios, que o evangelho chama de “Magos” (mágoi).

 

4.1. Judeus e gentios reunidos num único e novo Povo de Deus

Na narrativa do nascimento de Jesus, os pastores representam o povo judeu, os que são de perto, os familiares; agora os magos, os povos gentios, os que são de longe, os estranhos. Destas duas humanidades, a judaica e a pagã, Cristo veio fazer, inaugurar uma só humanidade. É o que podemos perceber numa das famosas antífonas intituladas de “Ó” recitada na semana que antecede ao Natal: “Ó rei das gentes e desejado das nações e pedra angular delas, que fazes de judeus e gentios uma unidade: vem e salva o homem que formaste do limo”.

Os judeus que buscavam o Deus do poder, da fama, da glória do mundo e da justiça da Lei, só de justos e puros deviam curvar-se para o Deus da misericórdia, do perdão, dos pecadores, impuros e pagãos, enfim, um Deus para todos. Já os gentios – os gregos – que buscavam a sabedoria  como caminho da salvação tinham que abraçar a sabedoria louca de Jesus Cristo crucificado. Deste modo, como observa Agostinho, o caminho da salvação, para os judeus, passava por assumir o ser pecador, e, para os gregos, pelo assumir a própria ignorância, ao dar o salto da fé. Judeus não podiam confiar na sua justiça e gregos na sua sabedoria. Tudo isso, para que nenhum poderoso se ensoberbecesse e nenhum fraco se desesperasse, disse Agostinho.

Distantes e estrangeiros, tornam-se os primeiros “apóstolos” do Messias junto aos seus próximos e compatriotas. Agostinho vê neles o espírito que anima o verdadeiro crente: anunciam mas também questionam, cevem mas também buscam, caminham na fé mas também desejam ver. O nascimento do verdadeiro Rei deste mundo fez brilhar a estrela que até então estava escondida no coração de cada homem: a “luz que ilumina todo homem que vem a este mundo” (Jo 1,9).

 

4.2. O alvoroço e a pseudo união dos anti-Cristo

Ao contrário dos magos, que desejavam encontrar e ver o Redentor, Herodes temia encontrar e ver um concorrente e adversário dele e de Roma (do Mundo). Por isso, quando ouve falar do nascimento daquele menino, não apenas se perturba, mas, de imediato decide exterminar ainda criança este Rei intruso e estranho. Mas, os temores de Herodes são vãos, diz São Leão Magno. O reino de Herodes, a Judeia, sim, mesmo o império romano, era por demais pequeno e estreito para que o Cristo, o Rei do Universo, o ambicionasse e quisesse disputá-lo com ele.

O nascimento do Menino Deus, da Paz e da humildade embaraça os poderosos e soberbos deste mundo. Dá-se então o inusitado. Temerosos todos esses de perderem o mando, eles, que antes se combatiam se unem. Se até então estavam de lados opostos estão, agora juntos a fim de combater o indefeso, esboçando-se assim a cena da paixão: os inimigos se deram as mãos para combater um pseudo inimigo comum – o Cristo, o inerme e inocente Jesus.

Ambíguo é o comportamento de Herodes, dos sacerdotes e dos escribas. Consultam as Escrituras. Creem nelas? Se creem, por que não a tomam a sério? Se não creem, por que as consultam? O Pseudo-Crisóstomo esclarece: os pecadores nunca creem totalmente naquilo que creem. Creem, descrendo. Creem, mas não vivem segundo a fé que professam. Agostinho compara os sacerdotes e escribas com as placas das estradas. Elas apontam o caminho, mas elas mesmas permanecem paradas. São homens que trabalham na salvação dos outros, mas que na verdade eles mesmos não creem e por isso põem-se a perder a si mesmos. São apenas funcionários, mas não fiéis, crentes, religiosos.

O diálogo de Herodes com os magos é cheio de soberba e de astúcia. Fala com eles em segredo, temendo que os escribas e sacerdotes se alegrassem com a mensagem do nascimento do Messias. Finge-se de piedoso, mas debaixo do manto da piedade, afia o punhal para matar o “rei dos Judeus recém-nascido”.

 

4.3. A estrela

Ao entrar neste ambiente, a estrela se apagou e só voltou a mostrar o seu brilho quando os magos saíram de Jerusalém, a cidade-luz que se tornara trevas. E assim aos poucos ela foi conduzindo-os a Belém. Louvável é a obediência destes magos! Deixaram-se conduzir pelo maravilhoso sinal celeste. Levados a Belém, ali conheceram o Sol Nascente, o Sol de Justiça, que nos veio visitar, para nos iluminar, para nos tirar das trevas da ignorância e do pecado e da sombra da morte. Assim, como o astro rei da natureza é precedido pela Estrela da Manhã, também o verdadeiro Sol da humanidade se manifesta precedido de uma estrela. O deter-se da estrela diz: basta com a procura, eis aqui o Rei desejado, esperado, amado. Agora bastava reverenciá-lo e adorá-lo.

 A majestade do menino resplandecia em seus corações. Eles viam com os olhos não da carne, mas do espírito. Não se escandalizaram. Creram. Os antigos chamavam o Menino Jesus de “Divino Infante”. Infante, literalmente, significa, “aquele que não fala”, ou melhor que fala pela “não-fala”, pelo silêncio, como já profetizara Isaias: “Não vociferará nem levantará a mão e não fará ouvir sua voz” (Is 42,2). E será assim, pelo silêncio que depois apaziguará o vento e salvará a pecadora pública das garras dos fariseus e que morrerá na Cruz e entrará para a Vida eterna.

 

4.4. Os magos e seus dons

Os dons dos magos querem significar que ali, na pobreza e pequenez e humildade do Menino estava um grande mistério. O ouro, a realeza do Menino, o incenso, a santidade divina e a mirra, sua mortalidade. Enquanto abrem os seus tesouros deixam sair do fundo dos seus corações a confissão de fé, diz uma glosa medieval. Confessam-no Rei, Deus e homem. Nós também podemos oferecer-lhe ouro se e quando deixamos resplandecer em nós e através de nós a sabedoria (cfr. Pr 21, 20); incenso se e quando, pela oração, deixamos exalar o odor de suave fragrância da adoração de Deus; mirra se e quando assumimos a finitude de nossa mortalidade como finitude agraciada e não como finitude desgraçada.

A malícia de Herodes não levou a melhor. Os magos voltaram às suas terras, passando por um outro caminho. Quem tem a experiência do encontro com o Menino se transforma. Não caminha pelos mesmos caminhos de outrora. Não conhece outro caminho do que o Menino mesmo. Tudo isso porque a estrela do Menino não estava mais fora deles, diante de seus olhos, mas no coração deles, iluminando-os interiormente, até o fim, até chegarem à verdadeira Pátria, aquela celeste.

 

 Conclusão

A visão de Isaías acerca da universalidade do Reino de Deus tonou-se realidade com o nascimento do Menino Deus, encontrado pelos Reis Magos no presépio de Belém. Assim, Ele passou a ser reconhecido como a Luz dos povos. E é assim – como a “Luz dos Povos” (Cf. Lumen Gentium) – que também a Igreja se compreende hoje. A luz da Igreja, porém, é uma luz recebida, não gerada por ela, como o explicou muito bem o Papa Francisco com a comparação do sol e da lua: a Igreja é “misterium lunis” e Jesus Cristo “misterium solis”. Ou seja, se a igreja, a exemplo da lua, possui uma grande luminosidade é porque ela a recebe do Sol Jesus Cristo.

Nos últimos séculos era muito comum a Igreja ver e tratar os ateus e membros de outras igrejas e religiões como inimigos com os quais não devíamos manter nenhuma relação ou, pior ainda, que devíamos combatê-los e exterminá-los como inimigos. Desde o Vaticano II, inspirado pelo franciscano João XXIII, o espírito e a prática estão mudando. Talvez possamos ou devamos parafrasear nosso atual papa Francisco: Saiamos, saiamos não para combater quem quer que seja, mas a exemplo de São Francisco, para ver, encontrar o Menino Deus e Rei escondido no coração de cada humana criatura, mesmo aqueles ou aquelas que nos ofendem e agridem a modo de inimigos, pois na verdade são nossos verdadeiros amigos e irmãos porque também eles nascidos do “mesmo Pai” (São Francisco).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini