10º DOMINGO DO TEMPO COMUM- ANO B

10º DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO B

10/06/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Gn 3,9-15; Sl 129; 2Cor 4,13 – 5,1; Mc 3,20-35

Tema-mensagem: Fazer a vontade de Deus, princípio da restauração da união originária e da nova filiação divina

Sentimento: Boa vontade

Introdução

A liturgia de hoje nos convoca a celebrarmos o princípio que nos leva à restauração de nossa união originária com Deus, conosco mesmos, com os irmãos e com todas as demais criaturas, rompido e perdido por Adão e Eva no paraíso. Princípio, também, da nova filiação divina e da nova família de Deus. Este princípio está em Cristo que amou, seguiu e cumpriu a vontade do Pai até à morte e morte de cruz.

  1. Da desobediência originária e suas consequências

Quem nos introduz na origem deste mistério, é a primeira leitura de hoje, tirada do livro do Gênesis e que testemunha as consequências da fuga humana de Deus e de si mesmo iniciada com o pecado primeiro, originário.

  • Do rompimento originário

O mencionado e pequeno trecho, faz parte da conhecida história do pecado original. Por isso, para compreendê-lo, precisamos, antes, recordar que, segundo o relato daquele capítulo, nossos primeiros pais foram não apenas criados por Deus “segundo sua imagem” (Gn 1,27), mas também, “abençoados” (Gn 1,28) como tais. “Esta afirmação,” diz o Papa Francisco, “mostra-nos a imensa dignidade da pessoa humana ‘que não é somente uma coisa, mas alguém’. É capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas … Cada um de nós é o fruto de um enamoramento de Deus. Cada um é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário” (LS 65). Logo em seguida, recorda o Papa que, graças a esta origem, a existência humana se assenta em três relações fundamentais e ligadas entre si: Deus, o próximo e a terra; recorda, também, que, com o pecado, estas três relações vitais romperam-se não apenas exteriormente, mas também dentro de nós. “A harmonia entre o criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas” (Idem 66).

Adão é, pois, aqui, não um indivíduo, mas o homem todo, a humanidade toda, o nosso humano, que deu e dá as costas para Deus, o Um, o Bem Puro e Simples, nosso  Princípio, nossa Origem. Mal Deus acabara de criar tudo da melhor maneira possível – ao ponto de exclamar “que tudo era bom” e, depois, diante do homem, “que era muito bom” – e o homem começa a reclamar. Sim, como podia Deus proclamar aquilo se ele, o homem, experimentava a toda a hora a finitude e a fragilidade de sua “criaturalidade”!? Por isso, começou a resmungar e a odiá-la, querendo ser como Deus, contra Deus. Aquilo que para Deus era o maior dom, a maior graça que podia conceder a uma criatura – portar sua imagem – ele, Adão, a rejeita considerando-a uma desgraça, uma vergonha. Por isso, “os olhos de ambos [Adão e Eva, homem e mulher] se abriram e souberam que estavam nus” (Gn 3,7). Ou melhor, seus olhos se cegaram em relação a Deus, ao bem e se abriram em relação ao mal. Se foi a inocência!

Assim, de uma ciência (saber) limpa, transparente de criaturas muito boas, emerge uma consciência de que sua finitude é desgraçada, vergonhosa, uma ignomínia e por consequência um mal e não uma bênção, uma desgraça e não uma graça. Por isso, procuraram esconder esta vergonha com tangas de folhas de figueira que fizeram para si (Cf. Idem).

Este é o plano de fundo sobre o qual se desdobra o diálogo entre Deus e o homem, apresentado na primeira leitura de hoje.

  • O homem rompe com Deus e foge

Em virtude da consciência dividida e da vergonha, nascidas do pecado – afastamento da bondade originária – Deus – o homem foge. Foge de si mesmo, do outro, de Deus, se esconde e entra em decadência, isto é, perde a cadência, o ritmo de Deus, de sua origem. Perde, também, o ritmo, a cadência das criaturas. Em vez de amigas, companheiras, irmãs (São Francisco) se tornam concorrentes e, por vezes, inimigas (Cf. a serpente). Entra num ritmo cada vez mais acelerado para o nada vazio, negativo, aniquilador: o arruinamento. Assim, aquilo que era um paraíso torna-se um jardim abandonado quando não um deserto de desolação, sem dono e entregue à própria sorte. A fuga diz bem o que é e como é a existência humana, via de regra, por causa da perda da inocência nascida do pecado original. É como esta história de Chung Tzu, sábio chinês:

Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma como de outra. Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade. Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra. O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceria mais as suas pegadas[1].

Hoje, o homem cria uma vida humana cada vez mais acelerada.  E, no deserto que ele mesmo institui para si, tem medo e foge de sua própria sombra, de suas próprias pegadas. Assim, sem jovialidade para com a riqueza de sua finitude, foge para um infinito ilusório, sem comunhão com nada e com ninguém: o infinito do produzir e consumir, do cobiçar e conquistar de qualquer jeito e a qualquer custo, do angariar méritos, do obter riquezas, poderes e glórias mundanas, etc. Uma ilusão, um engano, um engodo. Foge da verdade para a não verdade. Poderá o homem parar de fugir, entrar na sombra do mistério, e aí assentar-se? Eis o desafio que nos persegue desde nossa queda originária.

Assim, longe de sua origem, de si mesmo e dos outros, o homem busca um esconderijo seguro. Precisa buscar pretensas razões, saberes, ciências, justificativas que possam defendê-lo contra o seu Criador que, em vez de Pai, pensa ele, é juiz. Assim, em vez do juízo, isto é, das medidas de Deus, prefere viver seguindo seu próprio juízo, suas próprias medidas, sua própria justiça: a ciência do bem e do mal.

  • Deus sai em busca do homem

Da fuga do homem, porém, nasce de Deus sua busca pelo homem. E por mais veloz que seja aquela, jamais poderá evadir-se inteiramente do olhar e do alcance de seu Criador. Por isso, logo “depois que Adão comeu da fruta da árvore, o Senhor Deus o chamou: ‘Onde estás?’” (Gn 3,9). Porém, mais, ou melhor, antes da acusação de um juiz, a pergunta retrata o apelo de um Pai para que seu filho perdido retorne à casa paterna; que se desaninhe de seu esconderijo, da auto imputação da culpa, do mero remorso sem verdadeiro arrependimento; que passe do remorso (attritio: trituração, desgaste) ao arrependimento (contritio: compunção, pesar), do temor servil de Deus à veneração filial que traz consigo o amor ao Pai; enfim, apelo para que ele não se perca no desespero – a doença da morte.

Quem meditou bem esse desespero, que constitui, em grande medida, a vida do homem ateu, isto é, do homem sem Deus, que, de certo modo e em certa medida, todos nós, homens adâmicos, somos, foi Kierkegaard. Homem sem Deus, porém, somos todos nós, enquanto preferimos permanecer como homens adâmicos e não como homens crísticos, isto é, como filhos do primeiro Adão e não como irmãos do último Adão, Jesus Cristo, que nos faz voltar a sermos filhos de Deus:

Quem desespera não pode morrer; assim como um punhal não serve para matar pensamentos, assim também o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, não devora a eternidade do eu, que é o seu próprio sustentáculo.

Deus, de fato não podia ser fiel a si mesmo se não corresse atrás daquele que Ele criara segundo sua imagem e à sua semelhança, para ser seu filho. Por isso, sai em busca do homem, persegue-o, vai ao seu encalço, até no abismo do seu desespero, não como o Juiz ao encontro do réu, mas como o Pai ao encontro do filho pródigo, como o médico ao encontro do doente. Sua pergunta: “onde estás?” é uma pergunta de misericórdia, não de acusação ou condenação. E atendamos bem: esta é a primeira palavra que Deus dirige ao homem decaído. Ao homem que lhe deu as costas, Deus lhe dá o semblante de sua alma para que ele volte e fique face a face com Ele.

  • A confissão

Mais que informações, Deus está buscando o retorno do filho. Por isso, em vez de gritos ou ruídos estrepitosos, a voz desta pergunta “é a voz de um silêncio semelhante ao sopro de uma brisa” (Cf. 1 Rs 19, 12). Por isso, também, o enfrentar esta voz que pergunta, emerge de Adão – do homem que somos todos nós – uma resposta que é uma verdadeira confissão: “eu me escondi”. E quando isto acontece, diz um mestre judaico, Martin Buber, inicia o caminho do homem[2].

Agostinho bem entendeu isso. Por isso, nas suas “Confissões”, o conhecimento se torna confissão: re-conhecimento da miséria da própria vida vivida como fuga, sim, mas, também re-conhecimento e louvor do Deus misericordioso que vai ao encontro do homem. A confissão, assim, tem o sentido de começo do retorno para o mistério de sua origem.

No relato bíblico de hoje, vemos como Adão – cada um de nós – procura desvencilhar-se de sua culpa. Ao invés dele, a culpa é da mulher. E esta, por sua vez a empurra para a serpente… que, afinal, é uma criatura de Deus! Enfim, o culpado passa ser sempre Deus e suas criaturas e não ele, o homem. Assim, Deus que os procura como Pai passa a ser visto como Juiz e, deste modo, Adão vai aumentado ainda mais sua queda… e sua precipitação só vai se acelerando, ao infinito…

É preciso que Adão – isto é, cada um de nós – retorne a si mesmo e se ponha face à face com a presença misericordiosa de Deus, retorno que é a essência da “metanoia”, da conversão, da “vida de penitência”, que o Evangelho requer de cada ouvinte no início de sua proclamação e que São Francisco adotou como sua forma de vida: “Foi assim que o Senhor deu a mim Frei Francisco iniciar uma vida de penitência…” (Test 1).

 

  1. Jesus, o novo e último Adão

As consequências do rompimento do homem com sua origem, aparecem no Evangelho de hoje, no conhecido embate entre os fariseus e Jesus acerca, principalmente, de seu poder de expulsar os demônios.

2.1. Os verdadeiros divididos e possuídos pela loucura e pelo demônio

A cena apresenta uma linha divisória muito nítida. De um lado Jesus rodeado com seus discípulos e a multidão que o procura, sequiosa de suas palavras e curas e de outro lado os familiares que o buscam para “agarrá-lo porque diziam que estava fora de si” (Mc 3,21) e os fariseus que o acusavam de estar “possuído por Belzebu e que pelo príncipe dos demônios é que ele estava expulsando os demônios” (Mc 3,22). O contraste é muito claro: enquanto os primeiros o acolhem, os demais o rejeitam acusando-o de louco e endemoniado.  A questão é: quem é realmente louco e possuído por demônios: os primeiros (Jesus e a multidão) ou os segundos (os familiares e os fariseus)?

Entretanto, entres esses, o julgamento dos parentes, que não conseguiam compreender o comportamento de Jesus, suas ações e suas palavras, é menos culpável do que o julgamento dos escribas. Aqueles eram ignorantes. Estes eram instruídos. A rejeição daqueles é instintiva. A blasfêmia destes é proposital, de caso pensado e estudado. Tinham descido de Jerusalém, só para isso, só para acusar: ‘Ele tem Belzebu em si’ e: ‘É pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios’” (Mc 3, 22). Pode-se discutir a origem deste nome, Belzebu ou Beelzebub, mas o que importa é perceber a gravidade da acusação, muito mais grave do que a acusação acerca da violação do sábado[3].

A acusação que pesa contra Jesus não é o fato Dele estar expulsando demônios, mas de Ele ter recebido este poder do senhor ou príncipe dos demônios, isto é, Satanás, nome mais comum para o Adversário, o anti-Deus, o pseudo-Deus, opositor do reinado de Deus (Cf. Mc 1, 13).

A resposta de Jesus vem em forma de parábolas: Como é que Satanás pode expulsar Satanás? Se um reino, uma família, uma casa, uma pessoa está dividida contra si mesma, este reino, etc. não pode se manter, subsistir. E se Satanás se levantou contra si mesmo e está dividido, não pode subsistir: acabou consigo (Mc 3, 23b-26). Assim, se o reino demoníaco estiver dividido, se agir contra si mesmo, libertando de seus próprios poderes maléficos os homens que lhe estão sujeitos, então está acabado. Fica clara, assim, a insensatez da acusação dos escribas.

2.2. O homem mais forte, Jesus

E Jesus segue: “Mas ninguém pode entrar na casa do homem forte e saquear seus bens, sem ter primeiro amarrado o homem forte; então saqueará a sua casa” (Mc 3, 27). Em termos comparativos, o “homem forte” significa Satanás, o príncipe dos demônios, o opositor de Deus e de seu reino. Os “bens” que estão em seu poder, devido à escravidão do pecado, são os homens. Jesus é, pois, o homem mais forte do que o homem forte, que veio para desmantelar o reino do Adversário, o mentiroso e pai da mentira, e seus comparsas, os espíritos da inverdade dos vícios, do ódio, da injustiça e da violência, para, assim poder expandir o reino de Deus, reino da verdade e do amor, da justiça e da paz.  Fica clara, assim, a malícia proposital dos escribas: atribuem à uma ação divina, libertadora, uma autoria maléfica, escravizadora. Por isso, Jesus conclui: “Em verdade eu vos digo que tudo será perdoado aos filhos dos homens, os pecados e as blasfêmias, por mais que as tenham proferido. Mas se alguém blasfema contra o Espírito Santo, fica para sempre sem perdão: é réu de pecado para sempre”. E o evangelista explica: “Isso porque eles diziam: ‘Ele tem um espírito impuro’” (Mc 3, 28-30).

 Jesus distingue a blasfêmia dirigida contra Ele e a blasfêmia dirigida contra o Espírito Santo. Contra Ele é desculpável, pois, embora sendo Filho de Deus, Ele mesmo escolheu apresentar-se como um simples homem, um mortal entre os outros. Por isso, o escândalo em relação a Jesus, a pessoa divina que se desvela e ao mesmo tempo se vela na nossa humanidade, isto é, por meio da sua encarnação, era perdoável, desde que o homem dele se arrependesse. Os que pecam por malícia proposital, diabólica, porém, barram a si mesmos o caminho do perdão e da penitência. Para Santo Agostinho, a blasfêmia contra o Espírito Santo, pecado irremissível, pode ser a própria impenitência do coração humano. O que está em questão aqui é o homem que, pela dureza de seu coração, permanece na impenitência e, assim, atesoura para si ira sobre ira (Cf. Rm 2,5).

É pelo Espírito Santo que se perdoam os pecados. Ora, se o homem, vendo o bem – que só pode vir de Deus – permanece de coração empedernido na impenitência, isto é, insistindo que aquele bem é um mal, ele se volta contra o Espírito Santo, fonte do perdão; permanece, assim, imperdoável. Se o doente, gravemente enfermo, teima conscientemente em não tomar o remédio que poderia devolver-lhe a saúde, está irremediavelmente condenado à morte por própria culpa. Não tem saída. Ninguém poderá salvá-lo.

2.3. Os verdadeiros familiares de Jesus

Em seguida, entra em jogo de novo a parentela de Jesus que, através da multidão que o rodeava, manda chamá-lo.

A suspeita de loucura por parte da parentela impele até Ele Maria e seus parentes mais próximos. Maria, certamente, só pode ser movida por amor e piedade. Mas, e os demais? Respeito? Ficam do lado de fora por causa disso, ou por que não creem nele? No Evangelho de João, salienta-se a falta de fé dos “irmãos de Jesus” (Cf. Jo 7, 1-10). Vem então a surpreendente atitude e resposta de Jesus: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E percorrendo com o olhar os que estavam sentados em círculo à sua volta, disse: ‘Eis minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã, minha mãe’” (Mc 3, 31-35).

 Humanamente falando, a resposta de Jesus é muito dura, chocante e incompreensível. Como pode um filho, um irmão falar deste jeito com sua mãe e seus familiares!? Examinando bem suas palavras, porém, a resposta, enfim, é muito clara:  o Reino de Deus, o novo Povo de Deus, as novas relações humanas, principalmente para aqueles que querem segui-Lo, estão para além dos vínculos de parentesco, de sangue e de familiaridade. Para além não significa “fora”, mas na raiz, na origem. Ele, Jesus, que fez a vontade do Pai até a morte e morte de Cruz, passa a ser o novo e único vínculo que de fato aproxima e une as pessoas de modo direto e imediato. Todo o relacionamento com os outros, familiares ou estranhos, amigos ou inimigos, passa pela mediação do relacionamento com Cristo.

Para o discípulo, não há outro caminho para entrar em comunhão com o outro a não ser através de Cristo, mesmo que este outro sejam seus familiares mais próximos e mais íntimos pelos vínculos de consanguinidade ou de afeto. Além disso, o discípulo passa a fazer parte de uma nova família que se vincula não por aquilo que seus membros fazem, mas por aquilo que Ele, o Senhor fez por todos: cumprindo a vontade do Pai deu sua vida por eles. Por isso, esta família é composta por aqueles que “fazem a vontade de Deus”. São aqueles que, a exemplo do Pai e de seu Filho, põem em atuação a bondade para quem quer que seja, amigo ou inimigo. Eis a grande e Boa Nova que precisa ser aprendida por todos, até mesmo por sua Mãe. Em outras palavras, está dizendo: Maria, você é grande não porque você me gerou fisicamente e na ternura de um amor carnal, mas porque você, juntamente comigo, está aprendendo a fazer a vontade de Deus e a re-introduzí-la no coração dos homens, do mundo e da história.

Mas, porque, fazer a vontade de Deus é algo tão grande e poderoso a ponto de fazer filhos de Deus? Vontade, aqui significa um querer bom, gratuito, misericordioso, generoso, livre, como o é o querer de Deus, a Bondade pura e fontal, testemunhado ao longo de toda a história da salvação.

Assim, agora, não precisamos mais estranhar a resposta de Jesus: quem como Ele procurar fazer a vontade do Pai se tornará sua mãe e seu irmão. Deste modo, Jesus, pela sua obediência abre de novo o caminho para o Pai que outrora Adão fechara pela sua desobediência. Um caminho bem mais eficaz porque nos conduz para dentro, para a intimidade do próprio Deus, transformando-nos em filhos como é Filho, seu Filho Único, e em suas mães como é Mãe, sua Mãe Maria. 

Quem, entre outros, compreendeu bem este princípio foi São Francisco. Na “Carta aos Fieis” (I) diz que aqueles que passam pela “penitência”, isto é, pela revolução da mente, que faz o homem voltar-se para Deus, se tornam “mães de Nosso Senhor Jesus Cristo”. E explica: “Somos mães, quando O levamos no coração e em nosso corpo, por amor divino e de consciência pura e sincera: O damos à luz pela santa operação que deve brilhar, em exemplo para os outros” (Fontes Franciscanas, Mensageiro de Santo Antônio, p. 110).

  1. 3. A vontade de Deus nos Apóstolos e demais seguidores de Jesus

Portanto, quem nos faz realmente, filhos de Deus, diz Jesus, é o acolhimento fiel e amoroso do vigor da vontade de Deus, que se concretiza no amar o que Deus ama e como Ele ama. Belo e admirável testemunho deste mistério vemos em São Paulo. No trecho de sua Carta aos coríntios, proclamado hoje, aprofunda a razão pela qual ele e demais apóstolos aceitam alegremente o paradoxo de seu ministério: “atribulados, mas não vencidos… perseguidos, mas não desamparados … derrubados, mas não aniquilados…” (2Cor 4,8-9). Qual é, então esta razão que os sustenta no meio de tanta tribulação? “O mesmo espírito”, responde ele. E qual é este espírito senão o da fé que nos leva à certeza de que “Aquele que ressuscitou Jesus nos ressuscitará também com Ele e nos colocará ao seu lado, juntamente convosco” (2Cor 4,14)?

Crer é fundar a própria existência na verdade do mistério, isto é, na obra, na operação misericordiosa de Deus, revelada e atualizada em Cristo e por Cristo, principalmente em sua morte e ressurreição. Antes da nossa fé, portanto tem o vigor da fé de Deus testemunhada na fé de seu Filho que, na cruz, abandonado pelo Pai, exclama: “Pai nas tuas mãos eu entrego meu espírito” (…). Eis a vontade de Deus, a boa vontade, o bem querer, a “obediência perfeita”, caritativa (São Francisco, Adm 3) que renova tudo, que faz surgir uma nova criação, um novo Adão, um novo céu e uma nova terra. Eis a razão pela qual Paulo exclama: “Por isso, não desanimamos” (v. 16).

Paulo, portanto, se torna testemunha desta jovialidade da vontade divina para que sempre mais os homens, de filhos de Adão, se transformem em filhos de Deus: a verdadeira glória que realmente engrandece Deus. Assim, a audácia de Paulo e dos demais apóstolos e de todo cristão não é outra, senão a audácia da boa vontade de Cristo crucificado.

Na segunda parte deste trecho de sua Carta aos coríntios, Paulo explica o que então acontece quando se começa a seguir o caminho da vontade de Deus: “Mas, se, em nós, o homem exterior se encaminha para a ruína, o homem interior se renova dia a dia. Pois nossas tribulações de um momento são leves com relação ao peso extraordinário de glória eterna que nos preparam” (2 Cor 4, 16b-17).

 “Homem interior”, significa, aqui, o novo humano, o filho de Deus, que começou a nascer em cada pessoa com o advento de Jesus Cristo. Assim, à medida que este novo humano – filho de Deus, Jesus Cristo, o novo e último Adão – vai nascendo e crescendo, o velho humano, o filho de Adão, o “homem exterior” vai se destruindo. Por isso, quanto mais próximo da jovialidade da Cruz de Cristo, maior será também a juventude, a jovialidade do “homem interior”. 

Por isso, dentro desta dinâmica, Paulo termina convocando o crente a voltar-se para o Último, o Definitivo: “pois sabemos que, se a nossa morada terrestre, que não passa de uma tenda, vem a destruir-se, nós temos um edifício, obra de Deus, uma morada eterna nos céus que não é feita por mãos de homem” (2 Cor 5, 1).

Este “sabemos”, mais que uma informação, é uma experiência que nasce do encontro com Jesus Cristo, da fé; uma conduta que se funda em Deus e da qual nasce a esperança. Paulo e todo crente, espera contra toda a esperança. Para ele, a morte não é o definitivo, pois, do seio da sua mortalidade nasce a vida eterna. Quem crê sabe que “a morte não é somente conclusão. É também transformação, como canta o prefácio da ressurreição nas missas de Réquiem: “’vita mutatur, non tollitur’, ‘a vida se transforma, não desaparece’” (Emmanuel Carneiro Leão).

Conclusão

Por tudo isso, longe de nós pensar a vontade de Deus em termos de ordens semelhantes a tarefas impostas ou exigidas por um superior a seus súditos.

Segundo São Paulo, vontade de Deus é seu desígnio, seu desejo, seu amor mais profundo (Cf. Ef 1,9-10) e, segundo São Francisco, a Paixão Dele: desígnio, desejo, paixão de reunir em seu Filho muito amado todos os homens, toda a criação e toda história. Assim, vontade de Deus é a própria pessoa de Jesus Cristo com todo o seu mistério e ministério. Já na sua encarnação proclama que Ele vinha para fazer a vontade do Pai e, na cruz, termina exclamando: “Nas tuas mãos ó Pai, entrego o meu espírito”. Deste modo, fazer vontade de Deus, segundo São Francisco é, sem mais e nem menos, seguir os mesmos passos de Jesus, observando seu Evangelho (Cf. RNB Pró). Eis o caminho alegre e feliz, a penitência que nos reconduz para o paraíso perdido, para a reconstrução da união quebrada com nossa origem, com Deus, conosco mesmos e com as criaturas. Em louvor do Cristo bendito, Amém!

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

[1] Merton, Thomas. A via de Chuang Tzu, p. 229-230.

[2] Cf. a estória contada por Buber em seu livro “O caminho do homem”: “Rabbi Shneur Zalman, o Rav da Rússia, tinha sido caluniado junto às autoridades por um dos chefes dos mitnagghedim (judeus adversários do movimento hassídico), que condenavam a sua doutrina e a sua conduta, e tinha sido encarcerado em São Petersburgo. Um dia, enquanto esperava comparecer diante do tribunal, o comandante das guardas entrou na sua cela. Em face à face indômita e imóvel do Rav que, absorto, não o tinha notado imediatamente, este homem ficou pensativo e intuiu a qualidade humana do prisioneiro. Se pôs a conversar com ele e não hesitou em afrontar as questões mais diversas que se tinha sempre colocado lendo as Escrituras. Por fim, perguntou: “Como carece de se interpretar que Deus onisciente diga a Adão: ‘onde estás?’”. “Vós credes – respondeu o Rav – que a Escritura é eterna e que abraça todos os tempos, todas as gerações e todos os indivíduos?”. “Sim, o creio”, disse. “Pois bem – retomou o zaddik  (justo) – em todo o tempo Deus interpela todo homem: ‘Onde estás no teu mundo? Dos dias e dos anos que te foram destinados já se passaram muitos: entrementes, tu até onde chegastes no teu mundo?. Diz, por exemplo: ‘Eis, são já quarenta e seis anos que estás em vida. Onde te encontras?’. Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante custou a se controlar, pôs a mão sobre o ombro do Rav e exclamou: ‘Bravo!’; mas o seu coração tremia.”

[3] A origem do nome Beelzebul ou Beelzebub é discutível. No segundo livro dos Reis, vem dito que Acazias, manda mensageiros para consultar “Báal-Zebub, deus de Eqron”, para saber se ficaria curado de suas feridas, visto que ele tinha caído da sacada de seu quarto e ficado gravemente ferido. O nome “Báal-Zebub” significa “senhor das moscas”. É um trocadilho ridicularizador de “Báal-Zebul”, que quer dizer, Senhor-o-Príncipe, nome com que os filisteus evocavam uma divindade, que era adorada pelos canaanitas antes da entrada dos hebreus na Palestina. Entre o sentido de Báal-Zebul, “Senhor-o-Príncipe”, e Báal-Zebub, “senhor das moscas” está o significado de “senhor do esterco” (ridicularização do culto dos ídolos).