O novo Pedro quer restaurar a Igreja com Francisco

Uma vez escolhido para ser o sucessor de Pedro, o Cardeal argentino Bergoglio resolveu que iria se chamar Papa Francisco. De alguma forma, desde o primeiro  instante de seu ministério como Bispo de Roma e Pastor da Igreja  Universal, vinculou-se a Francisco de Assis e toda a mística  que cerca o  Poverello: singeleza, fraternidade, amor íntimo por Cristo, respeito pelo criado, despojamento, alegria profunda.  A  Ordem  Franciscana Secular haverá de restaurar a Igreja com o espírito e o “jeito” de Francisco, seguindo o desejo do novo Papa. Gostaríamos de enfrentar os desafios pastorais do mundo  a partir do Evangelho que incendiou o coração de Francisco de  Assis.

Por Frei Almir Ribeiro Guimarães

1. No primeiro semestre de 2013  nossa Igreja viveu momentos  imprevisíveis. O Papa Bento XVI,  com coragem e destemor,  resolveu renunciar à sua missão de Bispo de Roma e de Pastor da Igreja.  Uma tal decisão só podia nos surpreender. Não estávamos habituados ao fato de que um Papa renunciasse.  Bento XVI fixou prazos e, no tempo devido, retirou-se discretamente para Castel Gandolfo. O Cardeal Raztinger não se sentia mais em condições físicas de levar adiante sua delicada missão devido ao peso dos anos e à complexidade dos problemas a serem enfrentados.  Com serenidade foi organizado um Conclave e experimentamos uma alegria toda particular com a eleição para Papa do cardeal jesuíta de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio. O que mais nos sensibilizou foi a escolha de seu nome: quis ser chamado de Papa Francisco, precisamente  por causa de nosso São Francisco. De repente, nos sentimos envolvidos em todas as mudanças na Sé Apostólica. Dom Frei Claudio Hummes, franciscano, Cardeal da Igreja e arcebispo emérito de São Paulo, teria dito carinhosamente  ao novo Papa que não se esquecesse dos pobres… Pobreza e São Francisco são coisas que caminham juntas.

2. Assim, o novo Pastor da Igreja universal se aproximou da figura e do carisma de Francisco. Nas linhas e entrelinhas se podia ler que desejava ele contar com o espírito franciscano para enfrentar os desafios do mundo de hoje, de modo especial, a evangelização e a solução de questões delicadas vividas  Igreja.  Vivemos  num mundo complexo e complicado,  numa Igreja  que conhece desafios internos e problemas para fora em sua missão evangelizadora, uma  Igreja que precisa ser “significativa” para os nossos tempos. Sentimos que precisamos criar o novo que vem do Espírito.  Não se trata de adotar posturas de modernidade superficial. Necessitamos de uma novidade verdadeira. E é do Evangelho que vem o novo. Ora,  Francisco encontrou o Evangelho vivo e, por isso, foi um dos maiores restauradores da Igreja. Parece, pois, que o Papa quer tudo restaurar também com o legado espiritual de Francisco.

3. Voltemo-nos para o tempo da restauração efetuada pelo Poverello e sua gente. O jovem Francisco buscava um caminho. Aos poucos foi gestando sua vocação.  Aqui, o encontro com os pobres.  Ali, esses leprosos todos. Mais adiante, a capela de São Damião. “Francisco, ter-lhe-ia dito o Crucificado,  restaura a minha Igreja que, como tu vês está em ruínas”.  Mais adiante, irmãos que chegam. Depois, o Evangelho da missão: os discípulos de Jesus haveriam de ir  pelo mundo anunciando o evangelho, na pobreza, sem aparato, sem calçados, gente pobre e simples explodindo de alegria. Em suma, uma vida evangélica, um  retorno ao Evangelho, uma renovação evangélica.  Com o Papa Francisco, os discípulos de Jesus, de modo particular os franciscanos, queremos restaurar a Igreja pela volta ao evangelho.

4. Éloi Leclerc, no seu livro  ”Francisco de Assis, o Retorno ao Evangelho”,   falando sobre o mundo que nascia na Itália daquele tempo, mundo do dinheiro, mundo da falta de vigor da Igreja de então, assim se exprime: “Nesse contexto é que surge o caminho evangélico de Francisco de Assis. Oriundo deste  meio urbano e de mercadores, o filho de Pedro Bernardone  traz em si a efervescência de sua época. Partilha suas aspirações, ambições e todas as turbulências Esse ser excepcional  está insatisfeito com o que vê e o que vive. Descobre a miséria dos pobres. Remexe-se alguma coisa dentro dele. Procura e reza. Finalmente ouve o Evangelho, não somente com os ouvidos, mas com todo o seu ser. E descobre o que esperava. Produz-se, então, no coração desse jovem, um encontro  extraordinário entre as exigências da Boa Nova e os anseios profundos de seu tempo. Francisco descobre, efetivamente, o Cristo humilde e pobre que caminha entre os homens revelando-lhes o amor do Pai. O exemplo de Cristo se torna a grande luz de sua vida. Coloca-o no caminho que conduz a uma verdadeira fraternidade. Francisco vai até o fundo nesta vida da pobreza e da humildade. Logo surge uma multidão de discípulos. Esses homens e essas mulheres se sentem atraídos pela qualidade desta vida nova que o pobre de Assis lhes propõe e que se caracteriza pela  ausência de qualquer espécie de dominação nos relacionamentos” (p. 124).  Renovar o homem e a Igreja a partir do  espírito de Assis.

5. Não temos condições, no curto espaço desta reflexão, de tocar em todos os desafios e transformações de nosso tempo que fazem dificuldade à Igreja em sua missão e ao amadurecimento humano e cristão das pessoas. Limitamo-nos a evocar alguns desses desafios:

● Cultura da “intranscendência” que prende as pessoas ao aqui e agora, fazendo com que vivam na superficialidade, somente para o imediato, não experimentando necessidade de abrir-se para a transcendência, para Deus, para o Altíssimo e Bom Senhor.

● Cultura da evasão que faz com que a pessoa entre num esquema de fuga, sem querer assumir compromisso, relativizando os reclamos da consciência, tempo do “vale tudo”, cultura sem reflexão, sem busca do silêncio, sem discernimento.

● Cultura do ter que desenvolve o espírito de posse  de coisas e pessoas, levando  ao mero desfrute de bens e de pessoas. Tempo de consumismo e de gastança. Tempo em que se fala de dinheiro, de cotação do dólar e do euro, de crise, de corrupção, de vontade de gastar, de ter, sempre de ter…

● Tempo da curiosidade: saber o que se passa, estar informado, mesmo  que isto signifique um conhecimento superficial e de pouco alcance e que dispersa. Amanhã acontecerão outras coisas que farão esquecer as de hoje.  Pessoas antenadas nas novidades que dentro de minutos ficarão velhas e obsoletas. Ninguém vai ao fundo das coisas… Tudo é rápido demais… rápidos os casamentos, tudo fugaz… fugaz como a eletrônica midiática.

6. Mundo do imediato, do aqui e agora, do consumismo, do descartável, do provisório. Frei  Giacomo Bini, antigo Ministro Geral OFM, escrevia: Devemos substituir a cultura da aparência, do imediato, da eficiência  de nosso mundo global pela cultura do silêncio, da escuta obediente e da fecundidade divina  (Carta de Pentecostes, 2000).

7. Frei  José  R. Carballo, em texto dirigido aos Frades Menores,  mas que, com as devidas mudanças pode aplicar-se aos leigos, escrevia:  “A tentação do individualismo esteve presente em todos os tempos, mas aparece que em nosso tempo a tendência ao isolamento e ao egoísmo nas relações tenha se manifestado com renovado vigor, também na vida franciscana. Por vezes, tenho  a impressão que não temos tempo para pensar nos outros, porque nossos problemas nos ocupam demais, ou que em nós reine a lei do  “salve-se quem puder”. Constatei muitas vezes que nos falta tempo  para estar com os outros: para rezar, comer, fazer recreio juntos. Com tristeza vejo que o individualismo de muitos frades está destruindo, como um maligno câncer, sua identidade franciscana”  (Texto do Ministro Geral OFM para o Capítulo Extraordinário de 2006).

8. Há desafios na vida da comunidade da Igreja.  Não somos pessimistas.  O bem é feito e realizado. Há vigor em dioceses e paróquias.  Há movimentos que sabem dar uma formação sólida aos seus membros. A Igreja se faz presente nos meios de comunicação. Cuida de modo particular dos mais abandonados. Não se esquece dos que vivem encarcerados ou doentes. A Ordem Franciscana Secular haverá de dar a sua decidida colaboração na obra da evangelização.  Alguns desafios  de nossos dias:

● Precisamos pensar num trabalho sério da formação da fé dos cristãos. Muitos foram batizados em criança, herdaram uma tradição cristã mas nunca tiveram uma sólida formação catequética. Sério desafio!

● Em alguns lugares, não poucos católicos deixam a prática da missa dominical, questionam os sacramentos e, sem uma formação adequada,  praticamente conservam apenas vagos sinais de religiosidade. Dizem que acreditam em Deus, mas não querem viver na Igreja.

● Precisamos sempre de novo lutar para que os sacramentos sejam recebidos por pessoas que estejam em estado de conversão. Fugimos sempre do sacramentalismo.

● Estamos convencidos de que há urgência na formação de um laicato vigoroso, maduro e adulto. Não poucos leigos são mais auxiliares do clero nas tarefas para dentro do que transformadores da sociedade.  A Igreja necessita de leigos capazes de viver a fé no coração da realidade: trabalho, política, família,  respeito e cuidado pelo criado.

● Apesar de todos os pesares os cristãos precisam viver em comunidades, manifestar seu bem-querer,  rezar em comum, perseverar na comunhão fraterna.  Nesses espaços se faz presente o  Cristo ressuscitado. A Igreja deveria poder ser uma rede comunidades vivas. Os franciscanos seculares não seriam peritos na arte da fraternidade?

● Campo delicado e sempre importante é o da solidificação e santificação das famílias. Como, em nossos dias, preparar o  casamento, construir a conjugalidade, acolher a vida dos filhos, educá-los? Como acompanhar os casados? Como acolher os que se separam e se recasam? Que pastoral fazer com os recasados? Como transmitir aos filhos a fé, não apenas uma religiosidade? Como abordar com carinho e firmeza a questão das  uniões homossexuais? Como respeitar os idosos e acompanhar sua história? Como fazer de nossas casas uma verdadeira Igreja doméstica?

● Num tempo de indiferença e de individualismo fazer-se presentes na vida das pessoas: no interior da família, na vizinhança, junto aos que são indiferentes e não acreditam. Não somos daqueles que recebemos o mandato de ir pelo mundo sem dinheiro anunciando, à maneira de Francisco, um mundo novo?

● Adorar comportamentos éticos que transpirem convicções profundas. Agir com limpidez.

● Diante da pluralidade cultural e religiosa os cristãos serão pessoas de diálogo. Haverão de colocar sobre a mesa  todos os grandes temas da atualidade sem medo.

9. Algumas urgências urgentíssimas para tornar mais visível a Igreja e colaborar na evangelização?

● praticar um diálogo verdadeiro em todos os níveis;

● cultivar um estilo de vida cristão;

● reservar um lugar especial  à oração (oração e contemplação);

● formar comunidades fraternas e apostólicas;

● praticar a esperança.

10. Lembramos alguns desafios internos da Ordem Franciscana Secular:

● A OFS não tem suficiente visibilidade no seio da Igreja e do mundo.

● Como melhorar o entrosamento entre JUFRA e OFS? Será que os jufristas que se tornam irmãos e irmãs da OFS são formados convenientemente?

● Há toda a questão da renovação de nossas fraternidades por demais envelhecidas contando com irmãos e irmãs que não puderam assimilar a riqueza da Regra de 1978.

● Até que ponto os assistentes espirituais estão em condições de acompanhar nossas fraternidades?

● Um desafio não dos menores: desmotivação de muitos irmãos.

Então, o que o Papa Francisco pode esperar de nós? Que contribuição os irmãos e irmãs da OFS estão dispostos a oferecer? Teria vontade, nesta altura da reflexão, de citar toda a Regra. A Regra da OFS  constitui um programa de evangelização ad intra e ad extra. O novo Papa quer renovar a Igreja com Francisco.  Alguns tópicos de nossa Regra que poderiam ajudar na evangelização nova:

● Seguimento de Cristo na trilha de São Francisco  (1) :uma vida cristã engajada, compromissa, que não se limita  a cumprir obrigações.

● Buscam a santificação, a perfeição  da caridade no estado secular (2). Insistência no secular.

● Regra: observar o  Evangelho, acolhendo a vida de Cristo passando do Evangelho à vida e da vida ao Evangelho (4).

● Procurem a pessoa vivente do Cristo nos irmãos, na Sagrada Escritura, nas ações litúrgicas, de modo especial na Eucaristia (5).

● “Sepultados e ressuscitados com Cristo no Batismo, que os torna membros vivos da Igreja, e a ela mais fortemente ligados  pela Profissão, tornem-se testemunhas e instrumentos de sua missão entre os homens, anunciando Cristo pela vida e pela palavra. Inspirados por São Francisco e com ele chamados a reconstruir a Igreja, empenhem-se em viver em plena comunhão com o Papa, os Bispos, os Sacerdotes num confiante e aberto diálogo de criatividade  apostólica”  (6).

● Estado de conversão e atenção para a delicadeza de consciência (regularidade na recepção do sacramento da reconciliação (7).

● Tenham intensa vida de oração: Eucaristia, oração litúrgica, vivendo os mistérios da vida de Cristo( 8).

● Como Cristo escolheu o caminho da pobreza procurem no desapego um justo relacionamento com os bens materiais, simplificando as exigências materiais. Adotem a postura de peregrinos e forasteiros (11).

● “O senso de fraternidade os tornará alegres e dispostos a identificar-se com todos os homens, especialmente com os mais pequeninos, para os quais procurarão criar condições de criaturas remidas por Cristo”(n.13).

● Exercerão com competência suas atividades no espírito cristão do serviço (n. 14).

●  “Estejam presentes pelo testemunho da própria vida humana, e ainda por iniciativas corajosas, individuais e comunitárias, na promoção da justiça, em particular no âmbito da vida publica…” (n.l5).

● Os esposos se estimem em Cristo, eduquem  cristãmente os filhos, abram seus corações à vocação cristã (17).

● Respeitem as criaturas e trabalhem pela paz, sejam alegres e não temam a chegada da irmã Morte  (n. 18-19).

Conclusão:
Permitam-me voltar a Éloi Leclerc. Ela escreve sobre o mundo de hoje: “Neste mundo em mutação elevam-se pungentes apelos humanos, algumas vezes angustiantes: apelo de mais tolerância e liberdade, de mais justiça, de mais participação nas decisões e nas responsabilidades, desejo de paz garantida pelo respeito dos direitos do homem e dos povos… Hoje, como no tempo de Francisco, estes apelos partem do coração dos pobres e dos pequenos. Constituem o grito de todos os famintos e oprimidos de todos os lados.  Homens e mulheres carregam, em sua carne ferida e em sua dignidade desrespeitada, as verdadeiras ânsias do homem e o segredo do mundo  futuro”  ( Idem, p. 127). Dom Claudio disse ao que tinha sido eleito Papa:  “Não se esqueça dos pobres…”.

A Ordem Franciscana Secular vai fazendo seu caminho no meio do mundo. Esse grupo de leigos e leigas, de casados, solteiros, viúvos existe  no seio da Igreja.  Não constituem eles um mundo à parte. Precisam dar o que têm de melhor à Igreja e caminhar nas trilhas que pretende ir abrindo o Papa Francisco. Escolhendo para si o nome de Francisco, manifestando seu carinho e seu apreço por Francisco de Assis ele nos convoca a darmos o melhor de nós mesmos para o bem da Igreja e do mundo.

Questões:

1. O que chamou sua atenção depois de uma leitura atenta destas páginas?

2. Quais os grandes desafios que a Igreja experimenta em sua vida de todos os dias e na tarefa da evangelização?  Conversamos sobre esses desafios em nossas reuniões de fraternidade?

3. Individualismo, provisoriedade, indiferentismo… Consumismo… Que contribuição a OFS pode dar para que essa cultura seja diferente?

4. Em sua opinião, quais os tópicos da Regra que mais ajudam a evangelizar o tempo presente seja simplesmente pelo testemunho de vida ou por um engajamento pastoral?

5. Diante do que foi exposto e discutido em grupo  poderíamos destacar duas contribuições maiores que a OFS pode abraçar de verdade já que o novo  Papa quer renovar a Igreja com Francisco?

6. Nossas Fraternidades Franciscanas Seculares dão sua  contribuição nas atividades das dioceses e das paróquias.  Primeiramente os franciscanos seculares evangelizam pelo testemunho.  Será que alguma atividade pastoral seria mais própria para o trabalho dos irmãos e irmãs terceiros?