28° DOMINGO DO TEMPO COMUM – Ano C – 2019

28° DOMINGO DO TEMPO COMUM – Ano C

13/10/2019

Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da Palavra: 2Rs 5,14-17; Sl 97; 2Tm 2,8-13; Lc 17,11-19

Tema-mensagem: Fé e gratidão, primeiros frutos da graça do encontro com Cristo que nos purifica da imundície da lepra da soberba e nos reintroduz na intimidade de Deus e na comunhão dos irmãos.

Sentimento: gratidão e louvor

 Introdução

            O Domingo – Dia do Senhor – é, essencialmente, o dia do louvor, da ação de graças; dia da festa e da celebração da graça da fé que nasce da alegria do encontro com Jesus e de seu chamado; encontro e chamado que nos libertam da imundície da lepra da soberba e do infernal isolamento como podemos ver, hoje, com o conhecido milagre da cura dos dez leprosos.

  1. Fé, uma sementinha que cria laços e purifica (2Rs 5,14-17)

Em muitas ocasiões, ao longo da história, Deus manifestou o desejo de libertar seus filhos da lepra da soberba e da prepotência, pecados que, a partir de Adão e Eva, dão origem a toda a decadência humana. Na primeira leitura de hoje, celebramos uma dessas suas iniciativas: a cura miraculosa do pagão sírio Naamã. Golpeado por esta doença mortífera, este comandante do rei, aconselhado por uma escrava judia, fiel seguidora de Javé e de sua Lei, humildemente apresentou-se ao profeta Eliseu. Eliseu, cujo nome significa “Deus salva”, ordena-lhe, que vá tomar banho sete vezes no rio Jordão (3Rs 5,0).

 No princípio, levado pela soberba, não queria ir. Estava decepcionado porque em vez de um tratamento rico e imponente, à altura de sua posição, o profeta lhe oferecia um tratamento que lhe parecia por demais vulgar. Mas, aconselhado pelos seus amigos, pois se tratava de algo tão simples, aceitou e foi. E a cura aconteceu: “sua carne voltou a ser pura como a de uma criança” (2Rs 5,14).   

O pecado da lepra da soberba que tira o homem  do convívio com sua origem e da comunhão com seus semelhantes só é extirpado com um banho de fé, isto é,  na acolhida paciente e lenta (sete vezes) da oferta que o Senhor nos faz para que voltemos à nossa origem; que aceitemos suas intervenções de bondade e misericórdia como Ele fizera com Israel conduzindo-o, pacientemente, da escravidão do Egito para a terra da liberdade e da comunhão com Deus e com os irmãos. Símbolo da purificação, da graça desta fé é a travessia pelas águas purificadoras do rio Jordão. Travessia que simboliza um deixar para trás todos os outros deuses para abraçar e servir seu único Deus e Senhor: Javé. Essa foi a razão porque Eliseu ordenou a Naamã que fosse se banhar nas águas não de qualquer rio, mas no rio Jordão, o rio sagrado, da libertação e purificação do Povo de Deus.

Vem então, o coração de toda a mensagem deste milagre: Agora estou convencido de que não há outro Deus em toda a terra, senão o que há em Israel. A mensagem é reforçada pela recusa indignada de Eliseu à oferta de Naamã. Este, queria que Eliseu aceitasse como recompensa um presente. Eliseu, porém, alto e bom som, exclama: “Pela vida do Senhor, a quem sirvo, nada aceitarei”. E por mais que Naamã insistisse ficou firma na recusa.

A insistente recusa de Eliseu era para que ficasse bem claro que aquela cura não era resultado de alguma intervenção humana, muito menos de algum ritual mágico, mas fruto da ação salvadora e libertadora de Deus que se serviu, primeiramente, de uma simples e humilde escrava e depois pela palavra insistente dele, seu servo e profeta. Deus não pode nem jamais quis ou aceitou qualquer recompensa ou pagamento a não ser a pura fé, isto é, o reconhecimento de que Ele é seu e único Deus.

A cena termina com o inusitado pedido de Naamã de que lhe fosse permitido levar uma carga de terra daquele solo bendito para a sua terra a Síria. Retornando para junto dos seus não mais oferecerá holocaustos ou sacrifícios a outros desuses, mas somente ao Senhor Deus do solo, da terra, do Povo de Israel. Em outras palavras, Naamã quer ter ou construir em sua terra um centro um lugar, um solo no qual se pudesse prestar culto ao Deus de Israel, a Jahvé. Assim, Naamã transportando para a Síria um pouco da terra da Samaria estaria transportando parta lá o Deus de Israel a quem a partir de então passaria a adorar e seguir.                                                                                                                                                                                                                                          

É através de concepções assim um tanto ou aparentemente grosseiras que Deus aos poucos, vai purificando a fé de seus fiéis até chegar à fé da samaritana quando então não mais precisará “adorar a Deus neste ou naquele lugar ou monte, mas em espírito e verdade” (Jo 4,21-24).

  1. Em primeiro lugar e acima de tudo Jesus Cristo (2Tm 2,8-13)

A segunda leitura é tirada da 2ª Carta a Timóteo. Paulo, mesmo preso e algemado, continua exercendo seu zelo apostólico de pastor, procurando dar ao seu amado filho na fé uma boa e sólida fundamentação para a consolidação das comunidades cristãs nascentes da Ásia menor. Diante da diversidade de questões teológicas e pastorais que começavam a fermentar nas comunidades, principalmente a questão dos judaizantes, Paulo começa com esta significativa e importante exortação: “Lembra-te de Jesus Cristo, da descendência de Davi, ressuscitado dentre os mortos, segundo o meu evangelho” (2Tm 2,8).

Paulo começando com um “lembra-te de Jesus Cristo” nos remete para o sentimento mais profundo de Cristo deixado na Última Ceia: o Memorial de sua Paixão:  ”Fazei isto em memória de mim”. Timóteo e todo cristão, portanto não deve olhar para si mesmo, considerar as suas habilidades e potenciais para enfrentar as dificuldades e problemas e principalmente para fundar, edificar ou reconstruir a Igreja. A igreja precisa ouvir sempre de novo essa santa exortação, pois tem sido continuamente tentada a se esquecer que Jesus é a raiz, o centro, o coração, o memorial, a fonte de seu início, meio e fim.

Quando isso não acontece, ela se perde nos labirintos tenebrosos do mundanismo espiritual e material no qual impera quase sempre a soberba e a busca da glória humana e o bem-estar pessoal (Cf. EG 93). Recordemos mais uma vez a famosa exortação de Bento XVI em 2005 e que, desde então, vem repetida seguidamente nos principais documentos da Igreja: “No princípio do ser cristão não está uma decisão ética ou uma grande ideia mas o encontro com a Pessoa de Jesus Cristo” (EG 7). Por isso, insistia São Francisco exortando os seus frades: recorramos a Ele como ao pastor e Bispo de nossas almas, que diz: Eu sou o bom pastor. Eu apascento as minhas ovelhas. E por elas exponho a minha alma (RNB 22,32).

 

Lembrar-se de Jesus Cristo significa dispor-se a trilhar o caminho Dele, participando da sua Cruz; significa, a exemplo dele sofrer os horrores das algemas, como se fosse um malfeitor. Além do mais, Jesus Cristo é “da descendência de Davi”, nosso rei, portanto. Mas um Rei que, ao contrário dos poderosos deste mundo, em vez de pedir nossa vida dá sua vida por nós, por nossos pecados, até a morte e morte de cruz. Timóteo, os cristãos, as comunidades dos fiéis, não podiam, portanto, jamais esquecer este fundamento de sua fé, de sua vida. Vale repetir aqui o que já escrevera para os coríntios: “Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. (1 Co 15.3,4).

Por tudo isso, Paulo conclui sua exortação com um dos mais belos hinos da Igreja primitiva: “Se com Ele morrermos com Ele viveremos. Se com Ele ficarmos firmes com Ele reinaremos. Se nós o negarmos Ele também nos negará. Se lhe somos infiéis, Ele, porém, permanecerá fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2,11-13).

  1. O encontro com Jesus nos purifica da lepra da soberba e reintegra na comunidade de Deus e dos irmãos (Lc 17,11-19)

O mistério ou obra da recuperação de nossa pureza originária que reestabelece nossa intimidade com o Pai e refaz nossa comunhão com suas criaturas, nossas irmãs, vem documentado neste Domingo, pelo conhecido evangelho da cura dos dez leprosos.

  • Jesus o bom pastor em saída

Lucas inicia o evangelho de hoje dizendo que a caminho de Jerusalém, Jesus passava pela divisa entre Samaria e Galileia. Ao entrar num povoado, dez leprosos dirigiram-se a ele (Lc 17,12).

Naquele tempo, o que Jesus estava fazendo era um tanto inaudito por ser muito perigoso devido à ferrenha rivalidade entre samaritanos e judeus. Estes consideravam aqueles como violadores das sãs tradições mosaicas e da sagrada lei de Deus. Ambos os lados, olhavam-se movidos pelo ódio e pela raiva. Jesus, porém, era movido pela compaixão do Pai. Por isso, em vez de seguir reto entrou numa aldeia, totalmente desarmado, acompanhado não por lutadores ou guerreiros, mas apenas por aqueles simplórios e indefesos pescadores.

O caminho da compaixão, porém, como a palavra mesma diz, é de padecimento, de cruz. É o que Lucas quer insinuar ao dizer que Jesus estava indo para Jerusalém a cidade sagrada, a capital de seu povo onde Ele dará sua vida como testemunho da compaixão da misericórdia e do perdão do Pai. Era movido por este fogo que Jesus atravessava a Samaria e entrara numa de suas aldeias. Por que esperar, então, se já podia realizar agora a salvação daqueles pobres miseráveis que imploraram misericórdia e compaixão?

Como vimos acima pior não podia ser a desgraça dos leprosos. Considerados por eles mesmos como condenados por Deus só tinham uma coisa a dizer e a gritar: “Somos imundos, somos imundos! Não se aproximem de nós”. Jogados à margem da sociedade ninguém podia ou tinha condições de ajuda-los, nem mesmo seus familiares ou amigos íntimos. Até os religiosos do seu tempo, dos quais se deveria esperar um gesto de salvação, costumavam escorraçá-los até morrerem em lugares desérticos. O único consolo, ajuda ou companhia era a deles mesmos, os leprosos.

Por isso, a chegada ou aproximação de Jesus, justamente um estranho e judeu, um inimigo, a situação muda pelo avesso. Se antes era tudo desgraça, desânimo, agora é confiança, fé. Se já havia chegado até eles alguma notícia a respeito dos feitos e das pregações de Jesus não se sabe, mas aquele gesto estranho de se aproximar deles de modo tão humilde, desarmado e pacífico, certamente os comoveu e os levou àquele grito de esperança, confiança, fé: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”.

Certamente, a palavra “compaixão” mexeu com a fibra mais íntima e profunda do coração de Jesus, de sua identidade, vocação e missão. Pois, não era justamente para isso que saíra do Pai e viera para este mundo? Mostrar as entranhas mais profunda de seu Pai: sua misericórdia, seu perdão? O modo de ser da compaixão, porém, é sempre, muito discreto, humilde e simples, sem jamais buscar qualquer vantagem ou promoção de si mesmo. Por isso, sem nenhum estardalhaço, Jesus ordena simplesmente que fossem se mostrar aos sacerdotes a fim de que esses os reintegrassem na sociedade civil e religiosa.

Uma legislação especial (cf. Lv 13-14) reservava aos sacerdotes a tarefa de declarar a pessoa leprosa como tal, ou seja, que era impura; e, igualmente, competia ao sacerdote constatar a sua cura a fim de possibilitar-lhe a volta e seu reingresso ou readmissão na vida normal da comunidade.

  • A ação de graças do estrangeiro

Vem então a segunda parte: só “um dos dez, vendo que estava curado, voltou glorificando a Deus em alta voz; atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra e lhe agradeceu”.

A ausência dos nove não deixa de ser uma representação de todos nós. Como eles, também nós costumamos considerar-nos curados não por obra ou graça de Deus, mas por nossos merecimentos, por nossa fidelidade às leis. Só um – justamente o samaritano, isto é o estrangeiro, o não cristão, diríamos hoje  – voltou para dar glória a Deus.

Todos haviam sido curados fisicamente, mas apenas um salvo humano-religiosamente, pela raiz. Pois, somente esse pôde fazer a experiência da gratuidade do encontro com Jesus, a experiência da verdadeira purificação que  reintroduz o pecador na alegria, na festa da intimidade com o Pai através da força do olhar e da palavra de Jesus.

Mui oportuno este evangelho. Pois, embora o sentimento da gratidão esteja profundamente enraizado no coração dos homens e por isso um os primeiros ensinamentos de nossos pais é, justamente, o de sermos agradecidos, somos uma geração de mal agradecidos, principalmente em relação a Deus. Respiramos e vivemos cada vez mais fortemente, o espírito de uma sociedade e religião mercantilista: do “dou se me deres”. Nada ou muito pouco se dá e se faz de graça. Cada um tem o que se mereceu ou ganhou com o próprio esforço.

Os nove libertos da lepra física continuaram impuros, tomados pela lepra da soberba  do egocentrismo. Assim, à alegria da festa do convívio com o Senhor, preferiam se auto satisfazerem com a pseudo alegria do merecimento através da observância da lei. O samaritano, ao contrário, conheceu Deus provando de sua  misericórdia e compaixão através da palavra de Jesus; um Deus que, como canta Maria em seu Magnificat, olhou para baixo, para os pobres, desprezados, miseráveis, desgraçados, aqueles que não são nada, aqueles que nem mais Deus podem ter. Então, Ele passa a ser visto, conhecido e amado como de fatos é: um Deus, um Pai muito querido, amável e digno de louvor. Então, a alma engrandece o Senhor e o espírito exulta em Deus Salvador;  na humildade do coração os pés se dobram e o rosto agradecido se prostra até o chão. Eis a verdadeira salvação que nos reintegra à nossa origem primeira e última e nos põe em comunhão com os irmãos e as criaturas porque todos e todas filhos e filhas do mesmo Pai (São Francisco no Cântico do Irmão Sol).

A cena termina com este jubiloso ordenamento ou missão de Jesus: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou”. Curado e salvo pela raiz, o leproso em vez de arrastar-se às margens da vida podia agora pôr-se de pé e andar livre no convívio dos irmãos como testemunho vivo das maravilhas que o Senhor operara em seu favor. É o que mais tarde vai fazer também São Francisco logo após ter ele também provado a misericórdia de Deus através do encontro com o Crucificado: levantando-se e entrando na cidade, começou a louvar a Deus pelas praças e vielas como que ébrio de espírito. Terminada esta louvação do Senhor, volta-se a conseguir pedras para a reparação da dita igreja, dizendo: “Quem me der uma pedra, terá uma recompensa. Quem, porém, der duas, terá duas recompensas. Mas quem der três, terá outras tantas recompensas” (LTC 21).

Conclusão

Mergulhados até o pescoço numa sociedade cujo espírito é o mercantilismo egocêntrico e utilitarista, uma sociedade cujas relações se baseiam unicamente na utilidade de suas ações e no prazer dos sentidos; uma sociedade, enfim, que se fundamenta na vanglória é muito difícil para os homens e cristãos de hoje contemplar e fazer a experiência do amor gratuito de Deus. Só a graça de uma conversão poderá tirar-nos da tristeza dessa lepra que nos mantem separados, marginalizados da alegria, da Festa do encontro com Deus e com os irmãos, pincipalmente com as pessoas vis e desprezadas, pobres, débeis, enfermas, leprosas e mendigos de rua (RNB 9,2). Lembremo-nos que Ele, o Senhor se fez nosso servo,  tomou sobre  si nossas enfermidades, sofreu nossas dores; limpo e puro encheu-se com nossas chagas e lepras (Cf. Is 52) a fim de que através de seu encontro conosco fossemos curados e salvos.

Bento XVI gostava de propor como exemplo dessa conversão São Francisco: Um maravilhoso comentário existencial deste Evangelho é a célebre experiência de são Francisco de Assis, que ele resume no início do seu Testamento: «Assim o Senhor concedeu-me, a mim Frei Francisco, começar a fazer penitência: porque, quando eu vivia no pecado, parecia-me demais amargo ver os leprosos. E foi o próprio Senhor quem me levou para o meio deles, e fui misericordioso para com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo transformou-se para mim em doçura da alma e do corpo; e depois, detive-me um pouco e saí do século (Test).

Naqueles leprosos, que Francisco encontrou quando ainda vivia no pecado — como ele mesmo diz — estava presente Jesus; e quando Francisco se aproximou de um deles e, vencendo a própria repugnância, abraçou-o, Jesus curou-o da sua lepra, ou seja do seu orgulho, de sua soberba, convertendo-o ao amor de Deus. Eis a vitória de Cristo, que é a nossa cura profunda e a nossa ressurreição para a vida nova! veio ao nosso encontro,  para dentro da aldeia do nosso coração (Bento XVI 01/12/2012).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini