Assunção de nossa senhora
18/08/2019
Pistas homilético-franciscanas
Liturgia da Palavra: Ap 11,19a; 12,1.3-6a.10ab Sl 44; 1Cor 15,20-27a; Lc 1,39-56
Tema-mensagem: Na assunção, Deus leva à consumação a vocação maternal e missionária de sua Mãe
Sentimento: júbilo
Introdução:
Celebramos hoje, umas das mais belas e admiráveis maravilhas que Deus operou numa de suas criaturas, a mais predileta: o mistério da assunção de Maria.
- Um grande sinal no Céu – uma mulher vestida de sol (Apc 11,19a; 12,1.3-6a.10ab)
Quem nos introduz no mistério desta solenidade é São João que em seu Apocalipse descreve a seguinte visão: Abriu-se o templo de Deus que está no céu e apareceu no Templo a arca da Aliança. Então, apareceu um grande sinal: “uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas” (Apc ,1).
Os místicos cristãos sempre viram nesta mulher tanto a nova Eva, a nova mãe da nova humanidade como também e principalmente, o Antigo e novo Povo de Deus, a Igreja. Esta mulher é envolta numa grande contradição: se de um lado vem adornada como rainha, com adereços celestes (a lua, o sol, as estrelas), por outro lado, tem de enfrentar as dores de um parto e a perseguição de um grande Dragão postado à sua frente e pronto para devorar-lhe o Filho, logo que nascesse.
Está aí muito bem descrita uma visão dialética da realidade existencial da Igreja: um complexo de grandeza e de miséria, de luz e de sombra. Assim, a uma cristologia do Filho do Homem, da cruz, corresponde sempre e da mesma forma e com o peso da mesma tradição uma mariologia e um eclesiologia também do Filho do Homem, da cruz. No Filho desta Mulher e nela mesma se cumpre, portanto, o protoevangelho, isto é, o vaticínio mais arcaico do Cristo na Escritura, que anuncia a sua vitória sobre a “antiga serpente” (“Satanás”: o adversário, o acusador), isto é, sobre a soberba diabólica e todas as forças inimigas de Deus. Uma pensadora de nossos tempos, Gertrud von Le Fort, em um livrinho intitulado “A mulher eterna”, evoca esta decisiva participação da mulher no mistério da salvação, incluída no dogma da Igreja Católica:
A Igreja não só compara a mulher – cada mulher – na doutrina do sacramento do matrimônio, com ela mesma, mas ela também glorificou uma mulher como Rainha do Céu, ela a chamou de “Mãe do Redentor”, de “Mãe da divina graça” (…).
A Assunção de Maria contem, assim, e expressa um sentido de salvação (sentido soteriológico), tanto para a Igreja (sentido eclesiológico) como para toda a criação (sentido escatológico).
- A assunção de Maria consumação da ressurreição (1Cor 15,20-27)
A segunda leitura de hoje, tirada da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, nos faz mergulhar inteiramente no âmago deste mistério salvífico de Cristo e de sua mãe: “Com efeito, visto que a morte veio por um homem, é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos: assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos serão vivificados” (1 Cor 15, 21). Há, pois uma ordem no mistério da salvação operada por Deus: primeiro, Cristo. Ele é primícia (aparché) dos que adormeceram na morte, isto é, princípio do novo mundo; depois, os que são de Cristo, isto é, os que a ele pertencem. A ressurreição de Cristo é a morte da morte. É, pois, o triunfo definitivo da vida. Deste triunfo devem participar os que “são de Cristo”. Entre estes, assim confessa a Igreja, em primeiro lugar, vem a sua Mãe: Maria. Nela, a participação na ressurreição já se consumou. Mas, como para Cristo a ressurreição marca não o fim, mas um novo começo de sua presença e missão, também para Maria, sua assunção significa uma nova maneira de fazer-se presente no meio da humanidade. Foi assunta para assim com seu Filho ressuscitado poder fazer-se presente em todos os lugares e momentos da história dos homens. Não seria esse o significado de tantas aparições suas ao longo da história!?
- Maria e seu Magnificat (Lc 1,39-56)
Para marcar a solenidade da Assunção de Maria a Igreja escolhe o evangelho que narra, primeiramente, o encontro de Maria com sua prima Isabel grávida de João Batista e, depois, seu famoso “Magnificat”.
3.1. Maria partiu apressadamente para a região montanhosa
No seu anúncio, o mensageiro celeste dera um sinal a Maria: sua prima, Isabel, velha e estéril, também daria à luz um filho. Assim, ela poderia crer que para Deus nada é impossível.
A subida apressada de Maria pelas montanhas da Judeia, onde habitava a família de Zacarias, não longe de Jerusalém, indo ao encontro de Isabel é contemplada pelos Padres da Igreja num clima claro-escuro e com um sabor agridoce. Para Crisóstomo, Maria precisava aliviar sua aflição: sua ida para junto de Isabel serviria para ocultar o seu segredo e, assim, não ser ultrajada e incriminada não apenas ela, mas principalmente seu Filho que nasceria como um bastardo. Junto a Isabel encontraria um refúgio para ambos: para ela e o Filho vindo de Deus. Por outro lado, outros, como Ambrósio, ressaltam a alegria de Maria. “Já cheia de Deus, para onde devia ela ir, senão para as alturas”? – Pergunta Ambrósio. Sua pressa é um sinal da graça: “a graça do Espírito Santo não conhece demoras”, diz ele. Como cordeiro saltitante sobre os montes, o Senhor vem ao encontro do seu povo, trazido no ventre de Maria, que corre leve, ágil e pressurosa, ao encontro de Isabel.
Somos, então, convidados a contemplar o encontro de Maria com Isabel. É o encontro de duas mulheres grávidas, que se revelam, neste momento, duas profetizas. Falam inspiradas pelo Espírito Santo. Isabel sentiu a vinda de Maria e, ao mesmo tempo, João, a vinda do Cristo. O nome “João” evoca o “filho da graça”. Como tal graça se alegra com a vinda do gracioso Salvador, Jesus.
A graça insinuou coisas que eram escondidas à natureza, diz um comentador grego. O véu do mistério não obstruiu a mística visão, que não acontece com os olhos da carne, mas do espírito. Com a saudação de Maria, Isabel ficou cheia do Espírito Santo, e pronunciou uma palavra de bênção. A que outrora se envergonhava, agora se alegra e bendiz. Maria, aquela que o mensageiro divino saudou como “plenificada de graça”, é a bendita entre as mulheres. Bendita de uma maneira singular, pois só ela é mãe de um fruto divino, que se fez carne.
Contemplando este mistério assim se encanta e canta São Francisco na introdução de todas as horas do Ofício que compôs para celebrar a Paixão do seu Senhor: “Santa Virgem Maria, não há entre as mulheres nenhuma nascida no mundo semelhante a ti, filha e serva do altíssimo Rei Pai celestial, mãe do santíssimo Nosso Senhor Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo” (Antífona, vv. 1-2). Assim, bendita pelo Arcângelo Gabriel e por Isabel, Maria é digna de veneração pelos anjos e pelos homens. Por isso, a Igreja não cansa de repetir principalmente no princípio, no meio e no fim de cada dia “Ave Maria” e de, nas litanias, evocá-la e invocá-la com vários títulos de honra: também o de “Rainha assunta aos Céus”.
3.2. Bendita és tu e bendito o fruto do teu ventre
“Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”. Eis a palavra de benção que Isabel dirigiu a Maria. Palavra que foi dita por inspiração, por espírito profético. Teofilato, autor bizantino, diz que este “e” significa “porque”. Assim, podemos ler: “Bendita és tu entre as mulheres, porque bendito é o fruto do teu ventre”. O fruto do ventre de Maria não procede de varão. É um fruto divino. Procede unicamente de Deus. O que nela aconteceu – a encarnação do Filho do Altíssimo – é obra da graça. Divino é este fruto, como também humano. Afinal, a árvore – Maria – é humana. E o fruto é da mesma natureza que a árvore. Isabel evidencia este mistério, quando chama Maria de “mãe do meu Senhor”. A Igreja, por isso, não hesitaria de chamá-la de “theotókos”: genitora de Deus.
Maria, a Mãe de Deus, tomada pelo Espírito, que vai pressurosa ao encontro de Isabel e de seu filho, é a missionária que ajuda seu Filho a ir ao encontro de seu precursor e da humanidade. Assim, a vinda de Jesus Cristo, encerrado no útero de Maria, ao encontro de João, encerrado no útero de Isabel, o santifica e o constitui como profeta, precursor e primeiro discípulo.
3.3. E então Maria começa a enaltecer o seu Senhor
Maria e Isabel, tomadas pelo espírito profético, cheias do Espírito Santo, vaticinam. E o vaticínio de Maria nos chega como um cântico. Cantar, mais que um mero sopro da boca é vibrar em Deus. E, como este cântico de Maria é obra do Espírito do qual estava grávida, continua ecoando pelos séculos afora, como o cântico da Igreja, todas as tardes, no ofício divino: “Magnificat anima mea Dominum”. É o cântico dos que são bem-aventurados porque creram: Deus vai consumar o que sua palavra prometeu. A obra que ele começou em nós há também de levar à perfeição.
O salmo de ação de graças de Maria começa dizendo: “engradece a minh’alma ao Senhor, e exulta o meu espírito em Deus, meu salvador”. Em Maria tudo é obra do Espírito do Senhor. Por isso, ela não diz “Eu”, mas “minha alma enaltece o Senhor”, isso é sua vida misteriosa. Maria não é mais (nunca fora) dona de si mesma. Assim, Maria fala do engrandecimento de Deus que vem acontecendo na alma dela. Basílio comenta: Maria considera a imensidão do mistério e, avançando em suas profundezas, engrandece o Senhor.
Em segundo lugar, Maria fala da exultação do seu espírito em Deus, seu salvador. Orígenes comenta: primeiro, a alma engrandece o Senhor, para depois alegrar-se em Deus. Pois se antes não cremos, não podemos nos alegrar. Assim como Maria, também a Igreja pode e deve exultar no Espírito Santo, por causa de Deus, seu salvador. Também a Igreja gera Jesus Cristo para o mundo. Ambrósio diz: se, segundo a carne, uma só é a mãe de Cristo, segundo o espírito, isto é, segundo a fé, ele é o fruto de todos os crentes. Por isso, dirá bem mais tarde São Francisco que nós somos mães de Jesus Cristo quando o levamos no coração e em nosso corpo por amor divino e de consciência pura e sincera e assim o damos à luz pela santa operação que deve brilhar [1CFi 10].
3.4. O Senhor olhou para a humildade de sua serva
Maria continua dando o motivo de sua exultação: “porque ele pôs os olhos sobre a humildade da sua serva”. A humildade, os humildes e pequenos atraem, apaixonam Deus porque ao vê-los eles tocam na fibra mais profunda de sua identidade, revelada por Jesus Cristo, principalmente no presépio, na Cruz, na Eucaristia: sua compaixão, sua misericórdia. Assim, o abismo da humildade atrai a Deus de tal modo que Deus nele quer se precipitar da altura da sua grandeza. É a condescendência de Deus. Foi assim que o Pai, o Altíssimo, olhou para a baixeza de Maria, deixando-se atrair pela sua humildade. Num sermão atribuído a Agostinho a humildade é exaltada como mãe de Deus e escada para o homem ascender ao céu: “Oh verdadeira humildade, que pariu um Deus para os homens, deu aos mortais a vida, renovou os céus, purificou o mundo, abriu o paraíso e libertou as almas dos homens. A humildade de Maria se converteu em escada para subir ao céu, pela qual Deus baixou à terra”. Na mesma tonalidade, também nos instrui frei Egídio: “Todos os perigos e todas as grandes quedas que aconteceram no mundo, não aconteceram senão através da elevação da cabeça, assim como se manifesta na queda daquele que foi criado no Céu, e em Adão e no fariseu do Evangelho e muitos outros. E todos os grandes bens que aconteceram, foram feitos pela inclinação da cabeça, assim como se manifesta na Bem-aventurada Virgem, no publicano, no santo ladrão e em muitos outros” (DE 4).
O Senhor põe a sua graça nos humildes. Isto nos recorda ainda o frei Egídio: “Através da humildade, o homem encontra graça diante de Deus e paz com os homens. Assim, se um grande rei quisesse enviar sua filha para algum lugar, não a poria num cavalo indômito, soberbo e recalcitrante, mas num cavalo manso e de trote suave. Assim o Senhor não põe a graça nos soberbos, mas nos humildes” (DE 4).
Quanto mais baixo, pobre, desvalido alguém mais visto, olhado, amado por Deus. Em seu relacionamento com Deus, há uma grande diferença entre o pobre e o rico. O primeiro é capaz de agradecer a Deus quando nada tem enquanto que o segundo é incapaz de louvar a Deus até mesmo quando cheio de bens. Isso porque o pobre em sua pobreza tem o Tudo, que é Deus, enquanto que o rico em suas riquezas nada tem, nem mesmo a Deus.
3.5. Grandes coisas fez o poderoso por mim
No verso 49 a pergunta pelo motivo da sua exultação Maria encontra uma nova resposta: “porque fez por mim grandes coisas o Poderoso, e santo é seu nome, e a sua misericórdia é de geração em geração para os que o temem”. Que coisas grandes (megála) são essas de que fala Maria? A criatura dá à luz o Criador, a serva gera o Senhor, diz um sermão agostiniano. Que o pequeno seja acolhido pelo grande isso é natural. Mas, que o Grande se deixe acolher pelo pequeno isso é coisa grande, inaudita, admirável, santa. A humildade de Deus é coisa grandiosa! “Ninguém pode chegar ao conhecimento de Deus senão através da humildade”, dizia frei Egídio (DE 4). É que conhecimento de Deus, na verdade, é assemelhação/assemelhar-se com Ele: tornar-se como ele é. Maria conheceu Deus – isto é, uniu-se a Ele – tornando-se como Ele é, na sua humildade. A humildade de Deus encontrou uma acolhida na humildade de Maria.
Maria chama Deus de “o Poderoso” (ho dynastós). Já o anjo a tinha recordado: “nada é impossível a Deus”. Ele é capaz de transformar a impossibilidade em possibilidade. O testemunham o nascimento milagroso de Isaac, de Sara, idosa e estéril (cfr. Gn 18, 14) e, nos novos tempos, o nascimento de João Batista, de Isabel, do mesmo modo, idosa e estéril.
Acerca deste inaudito milagre em Maria, a estória franciscana, com sua beleza e simplicidade, narra como frei Egídio libertou um frade pregador que não conseguia compreender e muito menos admitir tal milagre. Frei Egídio, advertido pelo Espírito Santo, lhe foi ele mesmo ao encontro “e, antes mesmo de chegar a ele, antecipando-se às suas palavras, batendo na terra com o báculo que carregava na mão, disse: ó irmão Pregador, virgem antes do parto! E, imediatamente, lá onde batera com o báculo nasceu um lírio formosíssimo. E batendo pela segunda vez disse: Ó irmão Pregador, virgem no Parto! E nasceu outro lírio. E batendo pela terceira vez: Ó irmão Pregador, virgem depois do parto! E nasceu um terceiro lírio. Feito isso, retirou-se. Aquele frade Pregador foi imediatamente libertado da tentação” (VE 59).
3.6. O poderoso é santo.
Aquele a quem Maria chama de “o Poderoso” é santo. Maria diz: “e santo (é) o seu nome”. A palavra para “santo”, aqui, em grego, é “hágion”, que significa “digno de temor”, no sentido da veneração, por ser transcendente, separado, livre, solto em si mesmo (absoluto), leve, desprendido da terra. Por isso, também, do seu poder de gravidade prende, segura, sustenta os homens. Em sua santidade, porém, Deus não despreza o humano, antes o ama com terno e visceral amor, com amor de Pai. “E a sua misericórdia (é) de geração em geração para os que o temem”, isto é, para os que o veneram em seu mistério de grandeza e de santidade. Aqui é nomeada a misericórdia (éleos) de Deus. Misericórdia é o amor que brota das “entranhas” de Deus e que se revela no rosto de Jesus. Amor “visceral”, matricial e paterno. Amor que gera e cuida com ternura. Este amor permanece imutável, inabalável, indeclinável, perpassando toda a história da humanidade. Não se limita a esta ou àquela geração. De geração em geração ele abraça os que o veneram no mistério de sua grandeza e santidade. Por isso, em qualquer tempo, isto é, em qualquer geração, o homem pode se relacionar com o eterno amor misericordioso de Deus. Por onde quer que vão os caminhos que o homem trilhar, por mais perdidos que sejam, o amor misericordioso de Deus o acompanhará. Está colado a este homem, esperando apenas que ele se volte para a sua misericórdia. Maria, diz um comentador grego, concebe pela misericórdia que Deus tem para com todas as gerações. E convém não desesperar na misericórdia de Deus na morte. Aqueles que encontraram misericórdia no tempo não terão recusada a misericórdia na eternidade. Assim, mais humano será o homem quanto mais misericórdia despertar, pois a misericórdia é a linguagem mais universal que possa existir. Mais que a caridade, pois ela é a mãe da caridade, do amor.
3.7. Dispersou os soberbos de coração
A atuação do poder de Deus continua sendo cantada por Maria: “dispersou os soberbos de coração”. Observemos que Maria não fala de qualquer soberba, mas da soberba que atingiu o âmago mais profundo do homem. São aqueles que mais do que das coisas deste mundo estão cheios de si mesmos, de sua própria santidade, virtudes, sabedoria, mas vazios de Deus e dos seus semelhantes como aquele fariseu que orgulhosamente rezava de pé: “Ó meu Deus eu te agradeço por não ser como os outros homens que são ladrões, injustos, adúlteros… Jejuo três vezes por semana, pago o dízimo de tudo o que possuo” (Lc 18,11). Deles dizia João Batista “raça de víboras” (Lc 3,7) e o próprio Mestre: “fariseus, hipócritas” (Mt 23,15). São os que se consideram sábios e entendidos (Mt 11,25). Na verdade, esses são os mais miseráveis dos homens porque nada se encontra em seus corações senão suas próprias vaidades e por isso condenados eternamente à infelicidade do vazio, da ausência do encontro.
Falando desse tipo de cristão, assim se expressa Lutero: Os ricos são os inimigos menores; os poderosos são os maiores. Mas, esses sábios superam tudo. Eles provocam os outros. Os ricos destoem a verdade entre eles próprios; os poderosos a expulsam dos outros; mas os sábios a extinguem completamente e introduzem outra coisa: suas próprias pretensões, para que não tenha chance de se reerguer. Quando a verdade em si é melhor que os seres humanos nos quais mora, tão piores são os sábios do que os poderosos e ricos. Com razão Deus resiste especialmente a eles (Magnificat, o Louvor de Maria, Martin Lutero, pág 92).
3.8. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes
Maria continua enaltecendo o Senhor: Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Se antes Deus dispersou os soberbos, agora vai destituir de seus tronos os poderosos deste mundo. A lógica é a mesma: como aqueles também estes estão vazios de Deus e de seus semelhantes e por isso não tem nenhuma autoridade sobre os outros senão a da força, da violência. Mas, Deus não derruba logo estes poderosos. Ele é paciente e misericordioso. Não deseja jamais que aguem se perca [Cf. Pd 9]. Permite, por isso, que eles mesmos vão cavando o vazio de suas covas. Quem sabe, assim, um dia, como aconteceu com Saulo de Tarso, com os romanos e tantos outros, através do contato com os pobres que eles maltratam e perseguem descubram neles o Cristo e seu Corpo, a Igreja e se convertam.
Maria não diz que Deus irá acabar com os tronos, mas que irá derrubar deles os poderosos. Como também, não diz que deixará os humildes na humildade, mas que irá elevá-los. Deus não veio destruir a ordem humana, mas temperá-la com o sal de sua sabedoria e misericórdia.
A este respeito assim se expressa Lutero: Enquanto a terra existir, tem que haver autoridade, governo, poder e tronos. Mas Deus não tolera por muito tempo que abusem deles e os usem em oposição a Ele, para praticar injustiça e violência contra os piedosos … do mesmo modo, Deus também não destrói a razão, a sabedoria e a justiça. Pois tem que haver razão, sabedoria e justiça para que o mundo possa subsistir. Mas destrói a arrogância e os arrogantes que usam estes belos dons de Deus em proveito próprio… e perseguem com eles os piedosos e a justiça divina, abusando dessa forma dos belos dons de Deus contra Deus (idem, pág. 92).
São Francisco, ao organizar sua Ordem não extinguiu os cargos, mas proibiu que fossem exercidos como autoridade ou poder. Por isso dizia que ninguém devia chamar-se de prior, mas, neste gênero de vida, todos deviam chamar-se de irmãos menores. E que um devia lavar os pés dos outros (RNB 5).
Beda diz: em toda as gerações os soberbos não cessam de perecer e os humildes de ser elevados.
A mesma coisa é dita de outro modo no verso 53: “os famintos, ele os cobriu de bens, e os ricos, despediu-os de mãos vazias”. Os humildes são os que se esvaziam de si mesmos e das cobiças do mundo. São os pobres no espírito. E assim a plenitude de Deus, a sua riqueza super fluente e essencial os preenche.
3.9. Lembrou-se de sua misericórdia
O cântico de Maria termina recordando a fidelidade de Deus à sua aliança com Abraão e, por conseguinte, com Israel. “Veio em socorro de Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia”. A encarnação é Deus vindo ao encontro do homem, acolhendo-o em sua humanidade e humildade. “Israel” está, aqui, como representante de toda a humanidade. Dizer que Deus se lembra de sua misericórdia significa dizer que Ele confirma sua fidelidade, que sua promessa não ficou sem cumprimento. Em Maria e em Jesus as promessas feitas por Deus a Abraão, o pai dos crentes, e à sua descendência, se realizaram. Todas as nações são abençoadas e agraciadas com a benção da fé no filho de Abraão, Jesus. A salvação se torna, agora, universal.
Assim, se a misericórdia é a fibra mais profunda do coração de Deus toda vez que alguém, pelo fato de ser criado à sua imagem e semelhança, usar de misericórdia estará contribuindo para elevar a humanidade e a criação ao sumo de sua perfeição, felicidade e alegria. A Perfeita Alegria que nasce da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo de que fala São Francisco [Cf. Fi 8].
Conclusão
Maria, encontrou a consumação de sua vocação-missão pela sua coparticipação, de corpo e alma, no mistério da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, seu Filho. Por isso, hoje, é assumida plenamente no mistério do Deus uno e trino: Pai e Filho e Espírito Santo.
Quem compreendeu bem este mistério foi São Francisco. Abraçava com amor indizível a mãe do Senhor Jesus, porque fez do Senhor da majestade nosso irmão e, por ela conseguimos a “misericórdia” (LM 9,3). Além do mais distinguiu-a também com esta bela saudação: Ave, ó Senhora, santa Rainha, Santa Mãe de Deus, Maria, que és virgem feita Igreja. Eleita pelo santíssimo Pai do Céu, a quem consagrou com seu santíssimo dileto Filho e com o Espírito Santo Paráclito (SVM)
Finalmente, para ver bem a participação de Maria neste mistério em benefício do momento atual da humanidade ouçamos nosso Papa. Depois de dar-lhe o honroso título de “Rainha da Criação”, escreve:
Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente transfigurada, e todas as criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher «vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça» (Ap12, 1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de toda a criação. No seu corpo glorificado, juntamente com Cristo ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude da sua beleza. Maria não só conserva no seu coração toda a vida de Jesus, que «guardava» cuidadosamente (cf. Lc2, 51), mas agora compreende também o sentido de todas as coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a contemplar este mundo com um olhar mais sapiente.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini