18º Domingo do Tempo Comum – 2019
04/08/2019
Pistas homilético-franciscanas
Liturgia da Palavra: Ecl 1,2; 2,21-23; Sl 89; Cl 3,1-5.9-11; Lc 12,13-21
Tema-mensagem: Não nos bens deste mundo, mas em Deus está nossa vida e segurança
Sentimento: Atenção e cuidado
Introdução
Vivemos quase sempre tomados de angústias por causa da insegurança. A cada momento não apenas nossos bens, mas também nossas vidas podem ser assaltadas e tiradas. Onde e em quem encontrar segurança a fim de levarmos uma vida tranquila e feliz? Eis o sentido e o mistério de nossa celebração de hoje: despertar-nos acerca da desgraça do vazio absoluto da “ganância” (no latim, “avareza”) a fim de abrir-nos para a segurança de sermos filhos do Pai do Céu.
- Atentos à desgraça de uma vida vazia (Lc 12,13-21)
Para trabalhar este ensinamento, o Evangelho de hoje começa com uma questão muito comum e tão antiga quanto o homem: a briga entre irmãos pela herança deixada por seus pais. Jesus responde, primeiramente através de um ensinamento direto e explícito e depois por meio de uma parábola ou melhor, de um exemplo.
- Alguém do meio da multidão
Diferentemente de outras ocasiões, quem dá início ao evangelho de hoje não é Jesus, mas “alguém do meio da multidão”. Neste “alguém”, o evangelista parece dizer que está toda a multidão e toda a humanidade. Desde que Adão, contrariando sua natureza de criatura, quis fazer-se senhor e dono das criaturas, e não seu servo, introduziu no seio da humanidade as brigas e tensões entre os irmãos pela sua posse e domínio. E o pior é que, às vezes, pede-se ou invoca-se a intervenção de Deus e dos religiosos para que ajudem em favor de um ou de outro. Entre os judeus, não era raro que se pedisse este tipo de arbitragem aos rabinos. Jesus, então, é claro: “Homem, quem me estabeleceu para ser juiz ou repartidor sobre vós?” Sua missão, em vez dos bens perecíveis, era repartir os bens eternos e que realmente nos dão a verdadeira vida, a verdadeira segurança. Bens que só seu Pai pode nos dar e pelos quais devemos trabalhar e lutar.
Além do mais, empregando a palavra “homem”, Jesus quer dizer que aquele pedido é de “homens carnais” (cfr. 1 Cor 3, 3) e não “de homens de Deus”. Por isso, se recusa a assumir uma tarefa temporal, de chefe e juiz, se distinguindo, assim, de Moisés (cfr. Ex 2, 14; Atos 7, 27-35). Recordemos que Ele está a caminho de Jerusalém para dar, repartir aos homens o Bem de todos os bens, sua própria vida, seu amor, sua misericórdia e perdão. Como, então, ocupar-se com estas ninharias humanas vazias e repletas de ganância?!
- Ficai atentos e tomai cuidado
Jesus, então, aproveita esta oportunidade para o seu ensinamento: “Ficai de olho e ponde-vos em guarda contra toda avareza” (pleonexía). A exortação toca aqui num dos princípios básicos para que o homem não se engane na busca dos bens de sua felicidade: atenção e cuidado. Ser atento e cuidadoso implica e exige que saibamos e tenhamos a coragem de parar para ver, pensar, refletir, sentir melhor e mais de perto, em maior profundidade, o sentido de tudo o que nos atinge, cerca e toca. Eis um dos grandes desafios do homem de hoje atrelado ao sistema, à máquina da globalização padronizada em todas as partes do mundo.
São Cirilo comentando este dito diz que é preciso ficar vigilante contra toda a avareza, tanto contra a grande quanto a pequena, pois a avareza é sempre vã, isto é, vazia, ilusória e danosa. Ela arruína as almas, isto é, as vidas dos homens, não só na dimensão pessoal, mas também comunitária e social.
Segundo nosso Papa Francisco, esta falta de atenção, de cuidado é que impede de vermos e ouvirmos o gemido da humanidade e da terra na ânsia pela liberdade dos “filhos de Deus”; os problemas sociais, o clamor das pessoas e dos povos pobres da terra; o absurdo da “autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira”, causa da “desigualdade social”, que, por sua vez, são “a raiz dos males sociais”. Somente se cultivarmos a atenção e o cuidado parta com todos e para com tudo, haveremos de ver aos poucos a necessidade de trocar o princípio (vício) da ganância pelo “da dignidade da pessoa humana e do bem comum” (EG 202).
Assim, a admoestação de Jesus, exige uma “metánoia”, uma transformação, uma revolução principalmente no pensamento, no espírito. É preciso romper com a nescidade, isto é, a ignorância, a insensatez, a estupidez, que está na base do comportamento avarento do homem: “pois, mesmo na abundância, a vida de alguém não procede de seus bens” (Lc 12, 15).
Na sociedade de hoje, só se conhece a pobreza como miséria. Para ela, o que unicamente importa é o ter. Não o ser. Desconhece a pobreza do ser, aquela que o evangelho chama de “pobreza no espírito”, tão bem vivida e amada por São Francisco. Por isso, um dos mais fiéis discípulos de São Francisco, Frei Junípero, a fim de nunca cair na avareza, estava sempre atento para dar aos pobres, pelo amor de Deus, tudo o que podia, até mesmo, se necessário, livros, paramentos do altar, mantos dos frades e o próprio hábito. Por isso, o Guardião teve de proibir-lhe tais “loucuras”. Mas, certa vez, aproximou-se dele um pobre pedindo-lhe esmola. Frei Junípero, todo ferido pela compaixão, disse: “Caríssimo, nada tenho que te possa dar senão a túnica. Mas, também esta não te posso dar porque estou ligado ao preceito da obediência. Contudo, se ma tirares, não proibirei de modo nenhum”. O pobre, de fato, espoliando-o e tomando-lhe o hábito, retirou-se e o deixou desnudo (VJ 4). Assim é o Deus revelado por e em Jesus Cristo: suplica para que O despojemos.
- Parábola do louco avarento
Jesus, completa seu ensinamento com a parábola do louco avarento. Mais que uma comparação, Jesus quer dar um exemplo, isto é, fazer ver, de modo concreto a loucura da ilusão daquele que sem pensar decide garantir sua velhice amontoando bens deste mundo: “Insensato, esta noite mesmo irão reclamar a tua alma, e o que tu preparaste, quem é que o terá?”. Segue então o ensinamento: “Eis o que acontece a quem reúne um tesouro para si mesmo, em vez de se enriquecer junto a Deus” (Lc 12, 21).
O pecado deste homem é de não ver a coisa mais clara do mundo: que os frutos que colheu patenteiam a generosidade de Deus que age, trabalha através da natureza; que faz cair a chuva sobre justos e injustos. Esqueceu sua essência, que é a de receber e doar, na gratuidade. São Basílio nota que a pergunta que aquele homem faz à sua alma – “que farei? ” – é a pergunta dos pobres, quando estão oprimidos pelas suas penúrias e misérias. Esta alma está, sim, oprimida, mas pelas preocupações com suas riquezas e rendas. É paradoxal! É, pois o mais pobre de todos os pobres. Tomado, feito escravo, de si mesmo, não consegue ver os pobres que o rodeiam. Por isso, São Basílio lhe faz esta consideração:
“De onde os recebeste para leva-los pela vida? […]. Porque se qualquer um, que, tendo recebido o necessário para satisfazer as suas necessidades, deixasse o que sobra aos pobres, não haveria nem ricos nem pobres”.
São Basílio, por sua vez, é ainda mais categórico: “O pão do faminto é o que tu tens, o vestido do desnudo, o que tu conservas no guarda-roupa, o calçado do descalço, o que amontoas, e o dinheiro do indigente, o que tu escondes debaixo da terra. Cometes, pois, tantas injustiças, quantas são as coisas que podes dar”.
- Voltai ao pó filhos de Adão (Sl 89)
O quanto a vida terrena do homem é ilusória o demonstra muito fortemente o salmista da missa de hoje:
“Vós reduzis o homem ao pó da terra
e dizeis: «Voltai, filhos de Adão».
Mil anos a vossos olhos são como o dia de ontem que passou
e como uma vigília da noite.
Por isso, pede:
“Ensinai-nos a contar os nossos dias,
para chegarmos à sabedoria do coração.
- Vaidade das vaidades, tudo é vaidade (Ecl 1,2; 2,21-23)
Quem, já no Antigo Testamento, captara e expressara de modo contundente o ensinamento que Jesus faz no evangelho de hoje foi o autor do livro do Eclesiastes: Vaidade das vaidades! Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade (Ecl 1,2). Esta abertura é tão marcante para o autor que faz dela o refrão de todo o seu escrito. Como homem religioso, isto é, duplamente ligado a Deus, o autor, descobriu que fora Dele nada existe, nada é. Tudo um grande vazio: um nada, pura vaidade, ilusão.
No pequeno trecho, proclamado hoje, como uma prova a mais de muitas que enunciara antes, apresenta o caso de um homem que trabalhou com inteligência, competência e sucesso e no fim se vê obrigado a deixar tudo em herança a um outro que em nada colaborou (Ecl 2,21). E então conclui: Também isso é vaidade e uma grande desgraça (Idem). Ou seja, todos os empreendimentos, esforços, conquistas não conseguirão jamais satisfazer as aspirações do homem: que nele e por ele sozinho jamais chegará ao seu fim.
- Cristo tudo em todos
Na segunda leitura de hoje, Paulo, falando aos colossenses, volta a insistir na mensagem central de toda a sua evangelização: Se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Aspirai as coisas celestes e não as terrestres. Porque vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus (Cl 3,1).
Temos assim e aqui o argumento final ou primeiro para acolhermos com alegria e coragem a mensagem evangélica de hoje acerca do cuidado e da atenção com o perigo da vaidade dos bens deste mundo. Conduzidos pelo vigor desta pertença teremos força para fugir da idolatria da cobiça, da avareza e de todos os outros vícios. Pois, de fato, o avaro, em vez de servir a Deus, serve ao dinheiro. E, em vez de se servir do dinheiro, serve ao dinheiro, tornando-se seu escravo e adorador. Em vez de adorar o Deus vivo e santo, adora o poder que o valor do dinheiro parece lhe proporcionar. Mas, há que se ter cuidado, também com a avareza espiritual que busca satisfazer-se em acumular virtudes, graças e até mesmo santidade. Essa é pior que a anterior, porque procura adorar a si mesmo. Só libertando-nos das duas é que teremos a graça de confraternizar com tudo e com todos, sem nenhuma distinção, entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto, selvagem, escravo e livre (Cl 3,11). E tudo isso porque Cristo é tudo em todos (idem).
Conclusão
Quem elaborou uma bela e ao mesmo tempo dramática aplicação da mensagem evangélica deste Domingo é São Francisco, na sua Carta aos Fiéis:
“Nada tendes neste século nem no futuro. Julgais possuir por muito tempo as vaidades deste século, mas estais enganados, porque virá o dia e a hora em que não pensais, nem sabeis e ignorais. Enfraquece o corpo, a morte se aproxima, chegam os parentes e os amigos, dizendo: ‘dispõe os teus bens’. Eis que sua esposa e filhos, parentes e amigos fingem chorar. E, virando-se, os vê chorando. Movido, então, por uma falsa comoção, pensando consigo mesmo, diz: ‘eis que ponho em vossas mãos a alma, meu corpo e todas as suas coisas’. É verdadeiramente maldito este homem que confia e entrega em tais mãos sua alma, seu corpo e todas as suas coisas. Por isso, diz o Senhor pelo profeta: ‘Maldito o homem que confia no homem’. E imediatamente fazem vir o sacerdote. Diz-lhe o sacerdote: ‘queres receber a penitência de todos os teus pecados? ’ Responde: ‘quero’. Queres satisfazer com os teus bens, e como podes, pelas faltas e por aquilo que fraudaste e enganaste os homens? Responde: ‘não’. Diz o sacerdote: ‘por que não?’ Por que entreguei tudo às mãos dos parentes e amigos’. E começa a perder a fala e assim morre aquele miserável. Mas, saibam todos que, onde e como quer que o homem morra em pecado mortal, sem a satisfação, e que ele pode satisfazer e não satisfaz, o diabo rouba-lhe a alma do corpo com tanta angústia e tribulação que ninguém pode saber, a não ser quem experimenta. E todos os talentos, poder e ciência que julgava ter ser-lhe-ão tirados. Aos parentes e amigos deixa os seus bens. Estes, tomando-os e dividindo-os entre si, dizem depois: ‘maldita seja sua alma porque pôde dar e adquirir mais para nós e não o fez’. Os vermes comem o corpo. Assim, perde ele o corpo e a alma neste breve século e irá para o inferno, onde será atormentado sem fim”.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini