SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE

SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE

27/05/2018

Pistas homilético-franciscanas

 

Leituras: Dt 4,32-34.39-40; Sl 32 (33);  Rm 8,14-17; Mt 28,16-20

Tema-mensagem: Batizados e enviados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo

Sentimento: temor, amor e adoração

Introdução:

Com a solenidade de Pentecostes, domingo passado, concluímos as celebrações do mistério da presença histórica de Cristo em nosso mundo e em nossa história. Hoje, com a solenidade da SS. Trindade, iniciamos o assim chamado Tempo Comum, Tempo da presença mística de Cristo. É, também, o Tempo da Igreja e de sua Ação evangelizadora. Por isso, a Igreja ao colocar este Mistério no princípio deste Tempo, está proclamando que os protagonistas de toda a sua vida e de toda a sua obra missionária não são outros senão o Pai e o Filho e o Espírito Santo, a Comunidade do Amor.

  1. Uma história movida pelo amor do Deus único e verdadeiro

Quem nos introduz neste mistério, é um pequeno trecho do livro do Deuteronômio, que, por sua vez, faz parte de um trecho maior, uma espécie de Testamento de Moisés. Prestes a morrer, Moisés quis deixar sua última palavra, sua última vontade ao Povo que Deus lhe confiara para tirá-lo da escravidão do Egito: que, ao entrarem na terra prometida, não se esquecessem e não abandonassem jamais a aliança de seu Deus porque Ele é o único Deus, vivo e verdadeiro.

  • As provas de Deus

Para fortalecer e fundamentar sua exortação, Moisés, começa assim: “Interroga os tempos antigos que te precederam…”. É um convite à memória, tendo como objetivo esta conclusão final: “Reconhece, pois hoje e grava-o em teu coração que o Senhor é o Deus lá em cima do céu e cá embaixo na terra e que não há outro além Dele” (v. 39).

Quem está exortando é o maior de todos os servos de Jahvé do Antigo Testamento, a maior autoridade religiosa depois de Abraão, o homem que viu a glória de Deus e que falava com Ele de amigo para amigo, que testemunhou as maravilhas que Ele operara em favor de seu povo; o homem escolhido para libertar seu Povo da escravidão do Egito; que recebera Dele, Jahvé, os mandamentos a partir dos quais pôde  organizar aquele Povo de cabeça dura e conduzi-lo à terra da promissão. Por isso, prestes a morrer, não podia pedir-lhes outra coisa senão que olhassem bem para trás, admirassem e guardassem bem na memória os inúmeros e admiráveis feitos de seu Senhor; que não esquecessem jamais que Jahvé é a única origem da humanidade e de todas as coisas; que Ele sempre os amou, os tratou com amor misericordioso e compassivo e que, por isso, podia confiar em sua presença salvadora para o futuro, principalmente nos momentos de fraqueza e de infidelidade, uma vez que: “O Senhor teu Deus é um Deus misericordioso. Ele não vai te abandonar… nem esquecerá jamais a aliança que jurou a teus pais” (Dt 4,31). Enfim, o que Moisés pede é que este seu Povo não esqueça jamais as provas do quanto o Senhor já o amara.

  • Convite à profissão de fé

Esses são, pois, os grandes marcos da história de Israel, recolhidos em suas antigas tradições religiosas e que culminarão com a expressiva “profissão de fé”, isto é, com o “credo histórico” que o próprio Deuteronômio irá propor mais adiante: “Quando tiveres entrado na terra que o Senhor teu Deus te dará por herança… irás apresentar-te ao sacerdote e lhe dirás: ‘Reconheço hoje, diante do Senhor meu Deus que entrei na terra que o Senhor jurou aos nossos pais dar-nos… Agora pois trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor’” (Dt 26,1-10).

O objetivo da ordem de se fazer a memória de todos estes eventos não é outro, portanto, senão o de despertar sempre de novo a consciência do Povo para o fato de que Deus em vez de viver alheio, distante das alegrias, angústias, conquistas e derrotas de seu Povo, é um Deus que, a modo de esposo, entrou na vida de Israel como o Deus único, como o “seu” Deus e ele, o “seu” povo predileto.

Por isso, mais que de um historiador, teólogo ou mestre, o discurso de Moisés é de um profeta, pastor e pai que procura fortalecer no coração de seu povo a fé, a confiança e a esperança em seu Deus; que não se permita jamais desanimar, muito  menos desesperar diante de suas contínuas quedas, abandonos e repetidas infidelidades pondo sua esperança nos ídolos escravizadores, em vez do Deus vivo e libertador. 

Enfim, para Moisés, no final de sua missão, não podia deixar de recordar ao seu Povo sua vocação eterna de “Povo de Deus”. Recordemos, porém, que a história da criação, a história de Abraão e de Israel é também a nossa história. Ou seja, Deus se comprometeu conosco, deu-nos a sua palavra que é seu próprio Filho. Ele é e deve ser nosso único Deus vivo e verdadeiro, exigindo, pois, que abandonemos, também nós, todos os possíveis ídolos. Enfim, “é preciso que o ser supremo seja de fato único, isto é, sem igual. Pois se Deus não fosse único não seria Deus” (Tertuliano).

A unidade de Deus, porém, traz diversos aspectos do seu mistério, que podem ser admirados e contemplados por nós. Deus é um. Mas ser um não é, em Deus, número. Deus não é um entre outros. Mestre Eckhart, que foi um apaixonado do Um que é Deus, dizia: “nisso, que Deus é Um, realiza-se a deidade de Deus”. Unidade significa, aqui, pureza de ser. O ser de Deus é puro enquanto é indivisível. Onde não há divisão não pode haver guerra. Em Deus há paz. Sua unidade é paz: a serenidade da unidade. Unidade significa também simplicidade. Simples é o que é sem enrolação e sem dobra. Deus é simples, significa: inteiramente doado, exposto, expropriado, no seu amor. Nele o “ensimesmamento” não tem vez. Ele é puro amor e pura comunicação, doação de si.

Contemplar a unidade de Deus é contemplar essa sua cordialidade amorosa. É o mistério da pobreza de Deus, fonte da qual provém a superabundância de sua doação, que mostra sua riqueza essencial, abissal. A unidade de Deus, no sentido de sua simplicidade, fala da disponibilidade sem dobras de ser: inteira e inteiriça auto-doação da Bondade sumamente difusiva de si, efusiva. Da identidade de Deus efluem todas as diferenças. Mesmo o capim tenro e frágil, efêmero, ao existir, emerge do abismo dessa Bondade. São Francisco foi um homem que viu todas as coisas, cada uma na sua singularidade, emergindo do abismo desta unidade-bondade de Deus. Via, assim, todas as coisas como irmãs. Via-as, a cada momento, saindo, emergindo da Bondade de Deus. Esta Bondade, para ele, estava além do bem e do mal, divisão que nós trazemos no coração, e que projetamos sobre as coisas. A unidade de Deus lhe apareceu, assim, como a Bondade, isto é, a cordialidade, a gratuidade, a jovialidade que se comunica em tudo e em todos, no ser e no não ser, além do bem e do mal. Como o Jesus Crucificado, ser um com o Um que se doa nesta Bondade fontal, no bem e no mal, era o seu propósito, a sua perfeita alegria.

  1. Batizados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo

No Evangelho de hoje nos encontramos com a última perícope do Evangelho de Mateus. Jesus reúne pela última vez os onze discípulos na Galileia. “Prostrados”, a modo de discípulos atentos e prontos, recebem, então, de Jesus o mandato missionário: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.

  • No último anúncio o primeiro e o mais importante

Novamente, todos os elementos que formam esta cena guardam ou escondem um significado misterioso. A cena se dá lá, onde tudo começou, onde Jesus teve com eles o primeiro encontro do qual nasceu o primeiro chamado e a primeira resposta. Além do mais, a Galileia era também a região na qual os moradores, muitos de origem pagã, ao contrário da Judeia, melhor acolheram Jesus e sua Boa Nova. 

 E é lá, na Galileia dos pagãos, que se dá a última fala e o último encontro de Jesus com seus discípulos. Na despedida, a última palavra é sempre a mais pesada, a mais significativa, a que deve permanecer sempre. Parece que Jesus deixou para o fim o auge, o sumo de toda a sua Boa Nova. É a primeira vez que se refere tão explícita e claramente a este que é o mistério central dos cristãos. Pois, “a fé de todos os cristãos consiste na trindade”, já dizia São Cesário de Arles.

Estamos, pois diante do resumo, o sumo, a fórmula número um, o princípio, a raiz a partir da qual deverá se erguer o novo povo de Deus, formado, agora, não apenas de israelitas, mas dentre todos os povos do mundo inteiro.   Assim, a última revelação, o último anúncio de Jesus, passa a ser o primeiro, o originário, porque é a partir dele que agora vão nascer os seus novos discípulos. Por isso, o mistério da Santíssima Trindade passa a ser o princípio e o fim de toda a ação evangelizadora da Igreja bem como o princípio de todas as ações e de todos os empreendimentos da vida de um cristão. É com ele que começamos e terminamos o dia, a noite, as orações, principalmente a missa, o ofício divino, os sacramentos, etc.; é com ele que nos persignamos com o sinal do crucificado quando passamos na frente de uma Igreja. Assim, a Santíssima Trindade passa a ser o resumo da Boa Nova, a forma de vida, a regra que deve animar, a luz que deve orientar e conduzir o dia a dia do cristão.

Assim, antes de deixar este mundo, para que sua obra – o reinado de seu Pai – fosse adiante, criasse raízes e florescesse, Jesus envia seus discípulos pelo mundo inteiro não apenas para anunciar a Boa Nova, mas também e principalmente para imergir e banhar a todos no mistério da Trindade Santíssima.

  • Batizados em nome…

Neste mandato, Jesus, além do anúncio da Boa Nova, inclui a grande novidade: “batizando-os em nome …”

  “Batizados”, significa, literalmente, “mergulhados”, inseridos, enxertados. E “em nome”, por sua vez, significa no vigor da presença que vem à proximidade pela invocação, na potência de todas e de cada uma destas três pessoas divinas. No nome, significa também na confiança, na fé, no amor delas, ou melhor, no amor que elas testemunham durante toda a história para com toda a humanidade e para com cada uma de suas criaturas.

Não diz no plural “nos nomes”, indicando, claramente pois que se trata de um único Deus. Por outro lado, diz claramente o nome próprio de cada uma delas, indicando que este único Deus se constitui numa comunidade: O Pai que ama e doa a deidade, o Filho que recebe a deidade do Pai e que a Ele corresponde no amar de volta, o Espírito Santo que é o Dom do Amor, a força da Vida divina em que vivem o Pai e o Filho. Eis o mistério da Trindade, que, em unidade, opera na criação do mundo, por um transbordamento de sua Bondade; na salvação do homem, pela mesma superfluência de sua Bondade; na santificação do mesmo homem, pelo mesmo fervilhar e derramar da gratuidade de sua Bondade. Se a criação, a redenção e a santificação são uma única obra da Trindade, no entanto, para nós, na criação se destaca a fecundidade do Pai, na redenção, a generosidade do Filho e na santificação, o vigor purificador, iluminador e unificante do Amor, isto é, do Espírito Santo.

Em um assunto de tão grande importância, convém, recordar que a evocação de um nome pessoal e próprio está sempre ligada à experiência do encontro, da amizade ou familiaridade. Por isso, quando duas pessoas começam a se relacionar, a primeira coisa que fazem é conhecer e guardar os seus nomes. Deus conhece cada ser humano pelo nome e pelo nome próprio o chama. Assim, o homem, para Deus, deixa de ser uma criatura qualquer. Passa a ser-lhe um companheiro, um amigo com o qual reparte a missão de criar, guardar e cultivar a criação toda.

Por isso, pronunciar o nome de alguém, significa marcar presença, encontro com a própria pessoa, com sua identidade misteriosa e seu vigor edênico. Ora, se esse é o poder criativo na evocação de todo e qualquer nome, o que não dizer da evocação do nome do próprio Deus!? Assim, ser batizado ou iniciar e terminar o dia  Em nome do Pai… é fazer ressoar o advento e a presença retraída do vigor do mistério do que ou de quem nos é mais sagrado e mais próximo, nossa própria origem e da origem de todas as criaturas e de todos os eventos: indica a disposição de sempre e em todos os momentos da vida, deixar-se “im-portar” para o âmago da Autoridade do retraimento do mistério do próprio Deus que, por suas inúmeras intervenções na história, cheias de misericórdia,  feriu também o nosso coração.

  • Em nome da Trindade Santa

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em tom de exclamação (!), como fez Jesus e como sói acontecer no batismo e em nossas orações, mais que uma ocorrência, verdade ou dogma de nossa fé significa dispor-se a nascer, crescer e florescer a partir da raiz mais profunda, a Boa Nova, agora revelada por Jesus em toda a sua plenitude: a Comunhão das Três Pessoas divinas. Além do mais, no anúncio do nome de cada Pessoa não segue uma vírgula “,”, que tem a função de separar, mas um “e” para dizer que estamos diante de uma unidade, comunhão ou familiaridade.

Quem compreendeu muito bem o significado e o vigor desta mensagem de Jesus, além dos apóstolos e dos primeiros cristãos, foi São Francisco de Assis. É surpreendente que ele inicie e termine quase todos os seus escritos, principalmente sua primeira Regra de modo tão simples e expressivo com esta fórmula batismal tirada diretamente do Evangelho: “Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo! Esta é a Vida do Evangelho que Frei Francisco pediu ao Senhor Papa…” (RNB Pró).  

Na verdade, toda a vida dele, desde as primeiras manifestações do Espírito e de seus primeiros ensaios de conversão, até sua morte, vem perpassada pelo mistério Trinitário. Por isso, também, sua pregação vem sempre marcada pela doxologia trinitária: Que creiam no Deus todo poderoso: Pai e Filho e Espírito Santo (RNB 16,9).

Colocar a Trindade Santa como fonte originária, como regra ou forma de vida, implica em compreender que todos os nossos afazeres diários não estão aí, soltos, nascidos a partir de um mero acaso ou de um destino inexorável, mas ligados e dançando sempre ao ritmo e ao sabor do amor intra-trinitário.

Assim, Em nome da Trindade Santa, indica que somos todos da mesma estirpe divina: o mistério de Três Pessoas tão profundamente doadas umas às outras que, as três juntas, formam a Comunhão originária, o Uno, o único Deus. Nesse sentido a grande tradição do Povo de Deus, em vez de entender a História da Salvação como uma sequência fortuita de fatos, considera-a, antes como História do Amor Daquele que nos amou por primeiro. Indica também que nossa vocação cristã é essencialmente vocação à comunhão universal, à fraternidade, à Igreja.

Assim, ao evocar a unidade de Deus nós somos convidados a re-cordar, isto é, a trazer de volta ao coração, ao saber cordial do âmago de nós mesmos, a antiga e  sempre Boa Nova de Jesus. A Boa Nova “de um Deus que sempre de novo e cada vez novo atravessa as epocalidades da humanidade, todas as suas medidas e grandezas, a partir do que há de mais profundo, oculto e íntimo nela mesma, a partir da simplicidade, i. é, a partir da disponibilidade sem dobras de ser” (Harada).

  • Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo

Assim, a última revelação da Boa Nova, a mais expressiva, profunda e radical vem expressa com os nomes mais caros, familiares e significativos que temos: Pai, Filho e Espírito Santo. Deus é Pai e Deus é Filho e Deus é Espírito Santo.

Pai

“Ao designar a Deus com o nome de “Pai”, a linguagem da fé, indica principalmente dois aspectos: que Deus é origem primeira de tudo e autoridade transcendente, e que ao mesmo tempo é bondade e solicitude de amor para com todos os seus filhos. Esta ternura paterna de Deus pode também ser expressa pela imagem da maternidade que indica mais a imanência de Deus, a intimidade entre Deus e a sua criatura. A linguagem da fé inspira-se assim, na experiência humana dos pais (genitores) que são de certo modo os primeiros representantes de Deus para o homem. Mas esta experiência humana ensina que os pais humanos são falíveis e que podem desfigurar o rosto da paternidade e da maternidade. Convém então lembrar que Deus transcende a distinção humana dos sexos. Ele não é nem homem e nem mulher, é Deus. Transcende também à paternidade e à maternidade humanas, embora seja a sua origem e medida: ninguém é Pai como Deus o é” (Catecismo da Igreja Católica, 239).

 Filho

A segunda Pessoa da Santíssima Trindade nos é revelada não tanto como “servo”, “senhor” ou “rei”, mas primeiramente com este expressivo e carinhoso nome da esfera da família: “Filho”.

Jesus Cristo é o Filho, a Palavra, a Imagem, a Verdade do Pai, a Revelação de sua deidade, de sua unidade, de sua bondade, de sua misericórdia. Jesus Cristo é o caminho pelo qual Deus entra na finitude de nossa existência humana. É também o caminho pelo qual o Homem ascende a Deus, comungando com Deus, como filho no Filho, de sua deidade.

Jesus Cristo é o desprendimento, a pobreza, de Deus, o vigor da bondade da deidade, encarnado, isto é, concretizado na carne, ou seja, na finitude, de nossa humanidade. É a Bondade in-finita de Deus, isto é, a Bondade de Deus que entra na finitude de nossa humanidade, que se abisma nos nossos abismos. No “tudo está consumado” da cruz Ele se torna a concreção e a revelação plena dessa Bondade que vem ao nosso limite.

Espírito Santo

Como em relação às duas primeiras Pessoas, também o nome da terceira é sumamente belo: “Espírito Santo”. Literalmente, espírito significa “Sopro, hálito, alento vital” e “santo” diz “sagrado, divino”. Quem é, pois este que leva tão belo nome? Para responder a esta pergunta temos que partir do Pai e do Filho. Ora, o Pai é a fonte, a raiz da deidade como unidade. O Filho eflui (“é gerado, não criado”) do Pai como sua verdade na plena igualdade, identidade, unidade com Ele. E Espírito Santo, por sua vez, eflui do Pai e do Filho como o Amor do Pai e do Filho – o Hálito, o Sopro, a Vitalidade desse Amor.

O Espírito Santo é Amor desprendido, puro, de Deus. É o contentamento, a alegria, a festa da plenitude de ser como desprendimento-doação. Por isso, Dante o decanta com este significativo nome, “Sorriso de Deus”:

O luce eterna, che sola in te sedi – Ó luz eterna, que, só, repousas em ti mesma

Sola t’intendi, e da te intelletta – Só, te entendes, e por ti mesma entendida

Ed intendente te ami ed arridi! – E “entendente”, te amas e sorris!” [1].

Assim:

– O Pai é a transbordância fontal da Vida: a generosidade sem medida, sem fundo; a gratuidade difusiva de si mesmo: o Ser em sua própria jovialidade, o princípio gerador do universo e de cada criatura;

– O Filho é a acolhida da jovialidade que, qual lactente, na cordialidade jovial da sucção do leite materno, toma o corpo da sua existência, como o fruto prenhe e perfeito da obra;

– O Espírito Santo, que não é o terceiro de uma série, ou de um e mais um, é, antes, a convocação do uno, da comum-união do Pai-e-do-Filho como a identidade da diferença do Pai e Filho na jovialidade do dar e receber no empenho da acolhida.

  1. A graça da filiação divina

Quem, na missa de hoje, proclama alto e bom som a graça maior, o benefício mais precioso nascido do mistério trinitário é São Paulo: “Vós não recebestes um espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abbá – ó Pai” (Rm 8,15).

Assim, se comungarmos da identidade divino-humano de Jesus, se participarmos de seus sofrimentos seremos introduzidos e mergulhados no mistério da Trindade, como o expressa muito bem o rito do batismo. E, certamente, a mais bela de todas as prerrogativas desta filiação – nascida do Espírito e não da carne – é que nos faz próximos, íntimos, familiares de Deus, podendo chamá-lo, simplesmente, de “Abbá”: “Pai”, ou melhor ainda: “Paizinho”.

Conclusão

Com esta solenidade, estamos dando início a uma nova caminhada.  Pela mistagogia das celebrações do mistério de Cristo, na liturgia, somos conduzidos “por paulatinas aproximações ou subidas”, como diz São Gregório Nazianzeno (séc. IV), à contemplação do mistério de Deus Uno e Trino. À medida que vamos “avançando e progredindo de glória em glória, brilha a Trindade com luz cada vez mais resplandecente”, diz ele. A própria revelação de Deus aos homens na história da salvação, que as Escrituras nos expõem, é paulatina e ascendente. É uma verdadeira anagogia (subida).

Assim, viver batizados, mergulhados Em nome do Pai…deverá ser sempre exercício de disponibilidade, humilde e graciosa, para bem ouvir e bem acolher o toque desse mistério insondável com todas as suas exigências, colocando-se, benevolamente, em condições de bem segui-lo, imitá-lo e “copiá-lo”; é fazer ecoar, sempre de novo, o vigor da afeição originária que transforma os vocacionados a esta vida de estranhos em filhos, amigos, irmãos e, acima de tudo em discípulos e seguidores do Pai criador e do Filho salvador e redentor e do Espírito Santo santificador e iluminador.

Ouçamos, finalmente, como o nosso Papa Francisco nos convida a relacionar este Mistério maior com a criação e nossa história:

“O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, «quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira Trindade».

Para os cristãos, acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que o ser humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura «testemunha que Deus é trino». O reflexo da Trindade podia-se reconhecer na natureza, «quando esse livro não era obscuro para o homem, nem a vista do homem se tinha turvado». Este santo franciscano ensina-nos que toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária, tão real que poderia ser contemplada espontaneamente, se o olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio de tentar ler a realidade em chave trinitária” (LS 238-239). Ensina também o doutor Seráfico, que o livro das Escrituras Sagradas nos foi dado para que nós, pela fé e pela graça, pudéssemos, no exercício de nosso intelecto, recuperar esta visão trinitária que vê a Trindade se comunicando, transbordando a si em sua Bondade sumamente difusiva de si, em todas as coisas, especialmente na interioridade do ser humano, que traz a efígie da Trindade gravada em si.

Por tudo isso, como São Francisco, no final de sua Regra, exclamemos: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém!” (RNB 24,5).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

 

[1] Dante Alighieri, A Divina Comédia, Paraíso, canto XXXIII, n. 124-126. Elaborei, aqui, uma tradução própria. Cf. Alighieri, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo-SP: Landmark, 2005, p. 886-887.