PENTECOSTES
09/06/2019
Pistas homilético-franciscanas
Leituras: At 2, 1-11; Sl 103 (104); 1Cor 12, 3b-7.12-13; Jo 20,19-23
Tema-Mensagem: Este é o dia em que o Espírito do Senhor foi derramado definitivamente e em plenitude sobre toda a humanidade, sobre toda a criação e sobre todo o universo.
Sentimento: júbilo-espanto
Introdução
Muitas são as manifestações do Espírito Santo ao longo da História Sagrada, como, por exemplo na criação, no dilúvio, sobre Nossa Senhora na Encarnação, sobre Jesus no Batismo, etc. Em todas elas manifesta-se sempre o milagre da vida, seja em forma de criação ou de recriação. Hoje, porém, dia de Pentecostes, celebramos a consumação de todas as suas manifestações e vindas; dia em que o Espírito do Senhor foi derramado de uma vez por todas e inteiramente sobre todo o orbe da terra e sobre toda a humanidade.
- Recebei o Espírito Santo (Jo 20,19-23)
No Novo Testamento, a Vinda do Espírito Santo é narrada de duas formas e com datas diferentes. No Evangelho de São João, lido na missa de hoje, ela acontece no primeiro dia da semana, isto é, no dia da Ressurreição e é descrita como um sopro de Jesus crucificado-ressuscitado sobre os Apóstolos.
1.1. Ao anoitecer daquele dia, o primneiro da semana
São João gosta de chamar o dia da Ressurreição de “primeiro dia da semana” porque vê nele uma relação muito expressiva com o primeiro dia da semana da criação. Em outras palavras, se outrora, na primeira criação, o homem foi criado a partir do barro, da terra, de baixo, deste mundo, agora, na segunda, isto é, com o mistério pascal, o novo homem é nascido do alto, do espírito, do sopro expirado do peito de Jesus, na cruz; se o primeiro homem era terrestre o novo é celeste, divino; se o primeiro se regia pelas leis da natureza este se regerá pelo espírito de Jesus crucificado-ressuscitado, a misericórdia do Pai. No primeiro Adão – alma vivente – nós nascemos para a vida mortal e morremos a morte vital a cada dia, desde o útero materno até o túmulo. No segundo e último Adão, isto é, Cristo – espírito vivificante – nós morremos para o pecado enquanto doença mortal e para a morte enquanto separação de Deus, e nascemos para a vida de encontro eterno com Deus.
Fica claro, portanto, que os discípulos ainda não haviam recebido o Espírito Santo em sua plenitude porque Jesus ainda não havia sido glorificado (cf. Jo 7, 39). Isso quer dizer que o dom da plenitude do Espírito Santo nasce da glorificação de Jesus, do mistério pascal, isto é, quando, na cruz, “ao consumar toda a sua obra, inclinando a cabeça, entregou o espírito”.
1.2. O dom da paz
Chama-nos a atenção a insitência de Jesus em conceder aos discípulos a paz e antes do dom do Espírito Santo. A explicação é simples e dada pelo próprio evangelista: “por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam estavam fechadas”.
Os discípulos, embora já tivessem recebido, por parte de Maria Madalena, a notícia do sepulcro vazio, não só não conseguiam crer na ressurreição do mestre, mas continuavam perturbados, com medo, atribulados e envergonhados por causa de sua fuga e traição do Mestre. Consequentemente, ainda não haviam se reencontrado com Ele. Ora, Jesus sabe muito bem que sem isto, ou seja, sem o reencontro com Ele – o crucificado-ressuscitado – não há como receberem o seu Espírito, muito menos sua missão. Por isso, e para isso era necessário, primeiro, pôr ordem na casa: paz no coração, reconcilia-los com a cruz, liberta-los da vergonha e do medo de abraçar e seguir o caminho da cruz, palmilhado por Ele. Daí a insistência e a repetição: “A paz esteja convosco”.
Trata-se, porém, da paz que nasce não do empenho humano, das nossas combinações e tratados, mas da mesma fé, da mesma confiança que Ele testemunhou até a morte e morte de Cruz. Jesus sabe que um coração perturbado seria como terreno pedregoso ou espinhento que sempre impedirá que o Espírito Santo seja recebido e acolhido. Por isso, quem toma a iniciativa é Ele. É Ele quem abre a porta, põe-se no meio deles, mostra-lhes as mãos e o lado, isto é, os sinais de sua cruz e diz: “a paz esteja convosco”. Este reencontro, a reconciliação com o Senhor crucificado-ressuscitado era indispensável, pois será justamente este o Evangelho, a Boa Nova, que eles deverão viver a partir de agora e anunciar aos quatro cantos do mundo até o fim dos tempos. Um reencontro, que apaga o pecado da desconfiança, da traição e da fuga da Cruz; mas, também, que não tem nada de auto-satisfação, uma vez que os unge e os encoraja para o mesmo caminho e para a mesma missão que Ele recebera do Pai: “Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Ora, este “como” não é outro senão o caminho e a missão da Cruz.
Por isso, a Igreja, mãe amável e mestra sábia, sempre, no início de cada celebração eucarística, bem como no momento da comunhão, antes de receber o Corpo do Senhor, renova e reatualiza para seus fiéis este gesto e esta saudação de Jesus com os Apóstolos: “A paz do Senhor esteja sempre convosco”. O dom da Paz se concretiza, logo em seguida, com o perdão dos pecados, com a reconciliação com Deus e com os irmãos. Só então, pode-se partir para o reencontro com o Senhor na Palavra e na Eucaristia.
1.3. Jesus soprou sobre eles
Continuando, o evangelista escreve: “E depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito santo”.
Estamos diante da primeira e mais significativa experiência crística da Igreja primeva: a presença criativa do Espírito. Pode-se discutir muita coisa acerca de sua Vinda, de sua natureza, mas quanto à sua presença como uma realidade que começou a marcar radical e definitivamente a vida daqueles homens e daquelas mulheres a ponto de transformá-los por dentro e por fora, não há como duvidar. Todo livro dos Atos dos Apóstolos tem como único protagonista o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar.
Trata-se de uma realidade misteriosa que não pode ser vista e explicada por argumentos e razões humanas, mas tão somente através de metáforas, como estas do sopro, do ar, do vento, do fogo. Se em João o sopro desce em forma de brisa suave para expressar sua ternura, já em Lucas vem como forte ventania.
A alegoria do vento leva o leitor e o ouvinte para o princípio da criação onde o Espírito de Deus pairava sobre as águas abismais (cfr. Gn 1, 2) a fim de fecunda-las, tornando-as assim, princípio da vida terrestre. Agora um novo sopro irá adejar sobre todos os povos de estirpes diferentes e congrega-los na unidade de um novo povo, de uma nova nação, sem fronteiras geográficas nem de raça ou cultura.
No crucifixo que São Francisco contemplou na Igrejinha de São Damião, em Assis, o Cristo Crucificado aparece com o peito luminoso e pleno do Espírito Santo que o acompanhou e lhe deu alento desde a sua encarnação até a sua glorificação na morte de cruz; um Espírito pronto, sedento e desejoso de ser comunicado a todos os que fossem atraídos e viessem a Jesus.
1.4. A suavidade do perdão dos pecados
Ao dom do Espírito Santo, segue o dom do perdão dos pecados: “A quem perdoardes os pecados…”. Trata-se do fruto maior de toda a obra de Cristo, sua grande Boa Nova, repetida inûmeras vezes em todas as suas pregações, gestos e atitudes, culminando no supremo ato de misericórdia, a Cruz: o perdão, a reconciliação com o Pai. Estamos diante do supremo poder do amor-caridade: o perdão dos pecados, maior que curar enfermos e paralíticos, sim, maior até mesmo que ressuscitar mortos. No perdão, porém, atua o Espírito da Caridade, ou melhor, o Espírito que é a própria Caridade incriada, o Espírito Santo, o Dom do Amor, que vive na doação-recepção de Pai e Filho na Trindade Santa. Por isso, “quem realmente perdoa em todo e qualquer perdão é sempre Deus. Nos atos de perdoar reverbera e repercute a presença de Deus. Em Deus, perdoar não é ato, é ser” (E. Carneiro Leão). Ou como se expressou nosso papa: “o nome de Deus é misericórdia”. Ao homem compete apenas abrir-se ou não à misericórdia. Os que se abrem são perdoados. Os que se fecham, permanecem nos seus pecados, pois Deus não pode arrombar a sagrada porta da liberdade nem se impor, muito menos vir às brutas. Suas vindas são sempre suaves como o pouso da pomba e suas batidas leves como a brisa da tarde.
- O Espírito Santo como vento forte (At 2, 1-11)
No trecho dos Atos dos Apóstolos, lido na missa de hoje, a Vinda do Espírito Santo acontece no dia de Pentecostes e se manifesta em forma de uma forte ventania que encheu a casa onde os discípulos se encontravam e em forma de línguas de fogo que se repartiam e pairavam sobre a cabeça de cada um deles.
2.1. O novo Pentecostes
“Pentecostes”, cujo nome significa o quinquagésimo dia após a Páscoa, era chamada também de a “Festa das Colheitas” ou “Dia das Primícias”, ou seja, dos primeiros frutos colhidos (Yom Habikurim). Era uma festa, portanto, intimamente ligada a Páscoa, isto é, à libertação da escravidão do Egito e da saída para uma terra fecunda e acolhedora. Assim, se na Páscoa se celebrava a alegria da libertação, em Pentescostes se celebrava os primeiros frutos colhidos da Terra Prometida.
Ao sentido histórico da festa de Pentecostes, veio agregar-se, por volta de 450 a.C., também a festa da “Torah”, que tinha como objetivo celebrar a graça da redescoberta da Lei que selara a antiga aliança de Deus com seu povo predileto.
Ora, não foi muito difícil para os primitivos cristãos-judeus ver a Vinda do Espírito Santo como um novo Pentecostes que veio selar uma nova Aliança não mais com uma lei escrita em pedras, mas com o derramamento do Espírito de Deus no coração dos homens. Por isso, segundo Lucas, o mistério de todo este dom se realiza cinquanta dias depois da Ressurreição de Jesus: o novo Pentecotes.
2.2. Universalidade da Igreja
São Lucas, diferentemente de João, coloca a Vinda do Espírito Santo dentro da Festa de Pentecostes com a nítida intenção de realçar que este dom não é apenas para um pequeno grupo de pessoas, os judeus, mas para todas as raças, povos e nações de todo orbe terrestre e de todos os tempos. Pois, naquela festa se reuniam em Jerusalém judeus vindos de todas as partes do mundo.
O sinal escolhido para manifestar o poder maravilhoso deste dom foi o milagre da universalidade das línguas descidas sobre os Apóstolos (Cf. At 2, 2-3). Assim, a partir de Jerusalém, o Evangelho de Jesus Cristo, a modo de um fogo alastrante, iria se difundir por toda a terra e ser pregado em todas as línguas, reunindo todos os povos na comunidade universal da caridade, que é a Igreja.
A partir de então, como se poderá ver ao longo de todo o livro dos Atos dos Apóstolos, não só os judeus, mas também os gentios convertidos ao Evangelho do Cristo farão parte de uma nova humanidade, representada pela universalidade do novo Povo de Deus, a Igreja. Magistral é esta conclusão de Pedro em seu famoso discurso em Cesaréia: “Na verdade, eu me dou conta de que Deus não faz acepção de pessoas e de que, em toda nação, quem quer que o tema e pratique a justiça é acolhido por ele” (At 10, 36). E, no meio do seu discurso, o Espírito Santo se manifestou naqueles que o escutavam. “Foi uma estupefação entre os crentes circuncisos que acompanhavam Pedro: o dom do Espírito Santo era agora derramado sobre as nações pagãs! De fato, ouviam essas pessoas falar em línguas e celebrar a grandeza de Deus” (At 10, 46).
2.3. O Fogo que se repartia em línguas
Lucas, para expressar a riqueza do mistério do Dom do Espírito Santo, além da forte ventania, usa também a metáfora do fogo: “Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e repousaram sobre a cabeça de cada um deles” (At 1,3). Entre os vários significados deste evento deve-se realçar primeiramente que o fogo é um só. Repartindo-se, porém, igualmente sobre cada um dos discípulos quer expressar que o princípio da união dos cristãos, da Igreja é um só e vem do alto. São Paulo dirá mais tarde que, na Igreja, muitos são os ministérios, mas “todas estas coisas as realiza o mesmo e único Espírito que as distribui a cada um como quer” (1Cor 12,11).
Entre as diversas propriedades do fogo – o Espírito do Amor que é Deus – deve-se destacar a de queimar todas as arestas do individualismo e purificar todas ambições do subjetivismo para assim conduzir tudo e todos à unidade. Assim, o fogo do amor que arde no coração das pessoas cria comunidade. Não é a toa que desde os primórdios foi ao redor do fogo, do seu crepitar, do seu expandir e concentrar que foram surgindo e se criando a família, a comunidade humana, e, ao mesmo tempo foi ao redor do fogo que os homens adquiriam interioridade, se iluminavam.
O fogo do amor produz comunhão (koinonía). Por isso, quando as pessoas se deixam conduzir e iluminar pelo fogo do amor conseguem falar e se entender, mesmo que suas línguas sejam diferentes. Eis o milagre das línguas. Bem o contrário das pessoas que movidas pelo amor a si mesmas construíram a torre de Babel. Estavam todos juntos mas não unidos. Enquanto isso e ao contrário, os primeiros cristãos podiam não estar juntos, mas estavam unidos.
Conclusão
A partir do mistério de Pentecostes, através do júbilo e do fogo do reencontro com Jesus Cristo crucificado-ressuscitado, os discípulos, os homens e as criaturas não são mais os mesmos. Tomados pelo poder do Espírito Santo, que invadiu o universo inteiro, agora são mais que homens e mais que criaturas: tornaram-se ‘deuses”, seres espirituais.
Começa a surgir, assim uma nova humanidade dentro das humanidades, uma nova criação dentro das criaturas, uma nova história dentro da história: o Reino de Deus, assentado não mais no poder da lei ou da carne, isto é, de contratos ou decisões humanas, mas na paz que brota da reconciliação e do perdão dos pecados que nos mereceu o Cordeiro imolado, Cristo crucificado-ressuscitado.
As maravilhas que então começaram a surgir a partir deste processo de transformação, gerado e incendiado pela presença contínua deste Espírito, podem e devem ser contempladas ainda hoje nos famosos Atos dos Apóstolos.
Hoje, depois de alguns séculos, um tanto ou muito esquecida do fogo do Espírito Santo, como o protagonista de toda a sua vida e missão, a Igreja volta a sentir a necessidade de evangelizadores com Espírito (Papa Francisco, em EG 259). E, como exemplo de tais evangelizadores, o Papa nos recomenda São Francisco e seus primitivos companheiros (Cf. LS). De fato, poucas vezes na história se pode ver tão bem o ressurgimento da Igreja primitiva, a Igreja dos Apóstolos, como em São Francisco e seus companheiros (Cf. Jacques de Vitry, em FF, pág. 1306). Como os primitivos cristãos também estes tiveram no Espírito Santo seu primeiro e principal protagonista. Por isso, como aqueles também estes possuem os seus “Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus Companheiros”, seus “Fioretti”, isto é, seus feitos heroicos, seus prodígios e milagres; como aqueles também estes tem no Espírito Santo seu principal orientador, a ponto de São Francisco dizer que o verdadeiro Ministro geral da Ordem é o Espírito Santo. Mas, tanto lá como cá, em tudo e com todos, era sempre o mesmo Espírito o autor de tantas maravilhas. Por isso, São Francisco exortarva seus Irmãos que, ao comungarem, estivessem muito atentos, pois, dizia ele, “quem comunga, quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor não somos nós, mas o Espírito do Senhor que habita nos seus fiéis” (Ad I,12).
Enfim, evangelizadores com Espírito, diz o Papa Francisco, são “evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo” (EG 259).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini