1º Domingo da Quaresma 10/04/2019 – Ano C

 1º Domingo da Quaresma

10/04/2019 – Ano C

 Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da Palavra: Dt. 26, 4-10; Sl 90 (91); Rm 10, 8-13; Lc 4,1-13.

Tema-mensagem: Seguir a Jesus Cristo na fé e na tentação.

Sentimento: obediência da fé – obediência filial

 Introdução

Neste primeiro domingo da Quaresma começamos a acompanhar o início da caminhada de Jesus rumo à sua Vida pública que culminará com a subida a Jerusalém, onde, pela sua morte na cruz e ressurreição, lançará o princípio de uma nova humanidade, de um novo povo de Deus. Um povo universal, uma humanidade capaz de se libertar das tentações de todas as discriminações e ídolos.

  1. A confissão da fé em Israel [Dt. 26, 4-10]

Quem nos introduz no mistério deste primeiro Domingo da Quaresma é um pequeno trecho do Deuteronômio. Trata-se de uma exortação de Moisés acerca do que Israel deverá fazer quando tiver entrado na Terra prometida como Povo consagrado: “O sacerdote receberá de tuas mãos a cesta e a colocará diante do  altar do Senhor teu Deus. Dirás, então…: ‘Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito com um punhado de gente e aí viveu como um estrangeiro…”.

Trata-se de um memorial no qual se proclama a fé não num deus estranho e distante, mas num Deus bem próximo e que está na origem e na orientação dos patriarcas; que veio para tirar da escravidão do Egito o seu Povo escolhido com sua mão poderosa e braço estendido; e que viera pata transportá-lo sobre asas de águia [Cf. Ex 19,4] à Terra prometida.

No coração desta memória estão os feitos e as palavras do Senhor (Iahweh/Adonai), que é o verdadeiro protagonista de todo este memorial e não o povo. Este povo tem seu ancestral num “arameu errante”. Errante significa, aqui, não somente nômade, mas também perdido; aquele que caminha no erro e que não encontra o seu lar, a sua morada; que não encontra uma terra em que possa se saber e se sentir em casa.

Entretanto, esta é a condição não somente do ancestral mor de Israel, mas. de todo homem. Todo o homem é um estranho, um alienado, um errante, um caminheiro perdido, em busca de uma viagem bem-aventurada, que o leve para ali onde ele encontre sua terra acolhedora, onde sua vida possa vicejar no seu próprio.

 Por tudo isso, a confissão de fé do israelita interessa não somente a Israel, mas a todos os homens, de todos os povos e tempos.

É ao encontro deste homem errante que vem o Senhor. Ele vem como libertador. Ele o retira da escravidão e inaugura para ele, na terra, um reino de liberdade. Enfim, Ele cria uma humanidade livre. Por isso, a confissão de fé de Israel ao invés de uma recitação de artigos de uma doutrina ou tradições vãs é o memorial de uma história e de seus eventos. Uma história assentada em dois gonzos: a perdição do homem e a salvação do Deus misericordioso que vem ao seu encontro com vigor libertador. Por isso, a partir de então, toda a história humana se torna história sagrada, isto é, história da salvação divina nas sendas perdidas da história dos homens.

Chama a atenção que os fiéis que proclamam este memorial não estiveram presentes aos eventos mencionados. Mesmo assim, proclamam: “O Senhor nos tirou do Egito… E conduziu-nos a este lugar…”. É a afirmação de uma unidade ou identidade comum: de uma grande e profunda comunhão do presente com o passado e com o futuro. O passado não é o que passou, mas o que se recolhe no escondido, e que, latente, vige e vigora no presente. O passado é contemporâneo. Melhor, pela fé, o crente vive na contemporaneidade com o passado como sua origem, sua raiz, sua fonte. Por isso, cada vez que celebramos a memória da fé, nós participamos da história e da vida de todos aqueles que a construíram. E, assim, é-nos dado um novo porvir, um novo futuro. Por isso, em sua despedida, Jesus ordenou aos Apóstolos que sempre fizessem aquela Ceia em sua memória.

 

  1. A confissão da fé no viver cristão [Rm 10, 8-13]

A segunda leitura, é um trecho tirado da Carta de São Paulo aos Romanos. Naquele momento a Igreja nascente se apresentava a Paulo em toda a sua grandeza, esplendor e universalidade. Paulo encontrou, em sua missão anunciadora do Evangelho, a oposição de muitos judeus. Em contrapartida, muitos gentios acabaram aderindo à fé de Cristo. Muitos judeus se escandalizaram com o Evangelho. Este se lhes tornou uma pedra de tropeço. Frente ao mistério deste escândalo, Paulo não se põe como juiz de seu povo, mas como intercessor. Ora para que eles cheguem à salvação (Rm 10, 1). Testemunha que eles têm um zelo por Deus, mas seu zelo, diz o Apóstolo, não é segundo a Escritura, pois ignoram que “o fim (a realização, a consumação) da Lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que nele crê” (Rm 10,4). Todo o homem, seja ele judeu ou gentio, pode ter acesso à salvação pela fé de Cristo e Cristo crucificado/ressuscitado. A discriminação (diferenciação) judeu-gentio, circunciso/incircunciso, não faz mais sentido. Este é o contexto da leitura de hoje.

Paulo, começa, na perícope de hoje, recordando o dito do Senhor: “Perto de ti está a palavra (rhema), na tua boca e no teu coração” (Dt 30,14: Rm 10, 8). Trata-se não da palavra apenas como etiqueta ou meio de comunicação, mas da palavra-acontecimento, palavra-evento, palavra-operosa, palavra-tempo, palavra-história (rhema), papalvra-pessoa, palavra encontro [Cf. Prólogo de São João]. Esta palavra não está distante do crente, daquele que a ouve e a ela adere com todo o seu ser.

Esta palavra está não apenas na sua boca, mas no seu coração, isto é, seu íntimo mais íntimo, como a raiz de todo o ser do homem. Trata-se do anúncio, do testemunho (kerýgma) do Evangelho, isto é, da ditosa notícia: Jesus Cristo, o encarnado-crucificado-ressuscitado. É aquilo que, na liturgia eucarística, principalmente nas solenidades, como conclusão da liturgia da Palavra, nós proclamamos como “símbolo dos Apóstolos”, ou “Credo”. Na antiguidade, símbolo era um sinal que reunia e que atestava a unidade de duas partes que se haviam separado (amigos, casais, sócios, etc.). Assim, no símbolo da nossa fé se reúnem os diversos povos ou humanidades da terra, sejam elas compostas de judeus ou gentios. Esta diferença, ou discriminação, desde o advento de Jesus Cristo, segundo Paulo, não conta mais, foi destruída.

O requisito para participar desta nova humanidade que reúne diversas humanidades no vigor da fé de Cristo (Igreja), é confessar com a boca que Jesus é o Senhor. “Adonai” (Senhor) era o título que Israel dava ao seu Deus (elohim), a Iahweh (Aquele que é). Dizer, então “Jesus é Senhor” significava proclamar que na obra e na pessoa de Jesus se revelava a obra e pessoa de Iahweh; que Jesus era Iahweh;, o mesmo Deus dos Patriarcas que se manifestava na carne humana, no seu nascimento, na sua vida e morte, na sua ação e paixão, no seu rebaixamento ao abismo e na sua elevação ao mais alto dos céus.

Proclamar com a boca que “Jesus é Senhor” mais que declarar um estado de coisas, fatos, ocorrências, é, antes, aderir a esta palavra-ação, que por si e imediatamente, tem o poder de comunicar salvação, isto é, o vigor essencial do princípio, da fonte da nova humanidade, da nova história.

 E isto vale para todos uma vez que “todos têm (como raiz) o mesmo ‘Dominus’  (Senhor), rico para com todos os que o invocam” (Rm 10, 12). Em Jesus se manifesta paradoxalmente e ao mesmo tempo, a grandeza de Deus, sua majestade, sua autoridade bem como sua condescendência, sua humildade, sua benevolência, sua misericórdia para com os míseros homens que somos todos nós. Em Jesus se manifesta a superabundância, a superfluência, da gratuidade do amor de Deus. Invocar seu Nome é solicitar, pois, esta presença e assistência libertadora-salvadora de Deus: “com efeito, todo aquele que invocar o Senhor será salvo” (Rm 10, 13).

Entretanto, esta fé que está radicada no coração, e que é confessada com a boca, é vivida em meio às tentações… Por isso, o Evangelho de hoje nos põe em face do episódio da tentação de Jesus no deserto.

 

  1. Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado [Lc 4,1-13]

Jesus, após o batismo, repleto do Sopro Sagrado, descido sobre Ele no Batismo, é conduzido à solidão e ao silêncio do deserto para um jejum de quarenta dias, no fim do qual é assediado e tentado por três vezes pelo diabo.

O que chama a atenção é que Jesus foi pra o meio das tentações não por iniciativa própria, mas conduzido por aquele mesmo Espírito que desceu sobre Ele na inaudita e admirável teofania do Pai quando então ouviu Dele: “Tu és meu filho, amado, de ti eu me agrado” (Lc 3, 22).

Ato contínuo, Lucas fala da genealogia de Jesus, que remonta, enfim, a Adão, filho de Deus (Lc 3, 38). Tanto a narração do batismo quanto a exposição da genealogia preparam o leitor para o episódio da tentação, que soa como uma réplica da tentação de Adão. Este Adão, protótipo de toda a humanidade, é, segundo Paulo, o tipo, isto é, o esboço, a imagem, a figura, a prefiguração do novo Adão, do Adão vindouro (typos tou méllontos) (Rm 5, 14). Assim, na história de Jesus ressoa a história de Adão como uma réplica ao contrário. Adão abandona o jardim do paraíso da convivência do seu Criador e vem para o deserto – o inferno – de sua autoreferencialidade. Jesus, o homem vindouro, o segundo, o último Adão, vem ao deserto e, do deserto ao paraíso da vontade, do convívio do Pai.

Assim, conduzido pelo Sopro Sagrado, pelo hálito e alento do Amor, que é Deus, Jesus realizou esta obra de salvação conduzindo de volta o homem ao paraíso.

  • As três tentações de Jesus

Por trinta anos Jesus tinha vivido em Nazaré a vida cotidiana anônima dos filhos dos homens. Mas, uma vez que soou a hora de n’Ele se manifestar o ser Filho de Deus, soa também a hora da tentação, do combate com os ídolos, isto é, com aqueles que querem se fazer passar por Deus; daqueles que querem seduzir e enganar o homem, desviá-lo e separá-lo da comunhão com Deus, seu Pai, levando-o para o vazio de si mesmo.

  • A tentação do prazer carnal

Ao fim de quarenta dias de jejum, Jesus tem fome. É a oportunidade da primeira tentação diabólica: “Se tu és o Filho de Deus, ordena que esta pedra se transforme em pão”.

O ataque é aberto e atinge em cheio a identidade, a vocação de Jesus. No batismo, tinha soado a seu respeito a palavra de Deus: “Tu és o meu Filho muito amado…”. Agora, com uma ponta de inveja, o Diabo, aquele que divide, quer que Jesus ponha à prova, isto é, duvide da declaração divina, duvide de sua identidade. Ora, amor jamais duvida, jamais ousa pedir provas de que é amado, mas ao contrário, dá provas de que ama, confia.

Assim, ao contrário de Adão, que outrora preferiu pôr à prova a palavra do Criador, alimentando-se da palavra do demônio, Jesus prefere fazer da Palavra do Pai seu alimento.

Comer é assimilar, é fazer daquilo que ingerimos corpo do nosso corpo, vida da nossa vida. Deixando de comer o pão sugerido pelo Adversário, Jesus faz da Palavra de Deus e do próprio Pai, o corpo de seu Corpo, a vida de sua Vida.

A primeira tentação atinge, assim, a esfera da sensibilidade, da carne. É a tentação de trocar a alegria duradoura da liberdade e da responsabilidade pelo breve deleite e pelo passageiro prazer que vem da satisfação dos sentidos e dos instintos. Comodismo, acídia, gula e luxúria estão na raiz deste tipo de tentação. Ora, onde ou quando isso acontece o homem age de modo a se pôr abaixo dos animais.

 O animal é inocente porque sua regência procede dos instintos. No homem, porém a sensibilidade e os instintos são regidos pelo dom maior: o espírito – a inteligência e a vontade livre. Por isso, quando o espírito se submete à carne dá-se uma inversão e uma subversão da ordem natural e o homem perde sua inocência e se perverte. Torna-se escravo de suas paixões. Esquece que não é uma coisa, um vegetal ou  animal, mas alguém capaz de se conhecer, de possuir e de livremente se doar e entrar em comunhão com as pessoas [Cf. Catecismo da Igreja Católica, 357].

 Por isso, é da natureza do homem não apenas nutrir-se de pão, mas também, e sobretudo, da sabedoria, isto é, da “Palavra de Deus”. A vitória de Jesus nesta primeira tentação é o penhor da nossa vitória: a garantia de que podemos integrar todas as forças de nosso ser, submetendo nosso corpo ao nosso espírito e nosso espírito a Deus, fonte, princípio, vida de nossa vida.

Ao veneno das tentações carnais o bem-aventurado frei Egídio contrapõe o remédio de manter o coração sempre ocupado com as celestes meditações e os santos desejos de nossa vocação cristã e franciscana [Cf. VJ 7].

3.1.2. A tentação espiritual

Insatisfeito com o fracasso da primeira tentação, “o diabo conduz Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos da terra”. Jesus podia tornar-se o senhor e o dominador do mundo com toda a sua história, empreendimentos e conquistas. Se na primeira tentação o diabo pôs em campo a concupiscência da carne (epithymia tes sarkós), na segunda vem com a jactância, a soberba da vida (alazoneía tou bíou) (cf. 1 Jo 2, 16). É a cobiça de ser amado e temido pelos homens; de ser o senhor do mundo.

Jesus recusou subjugar-se à dinâmica e à lógica do diabo que transforma o poder e a autoridade em despotismo e autoritarismo. O vigor da autoridade é o serviço do aumento da vida. O poder só é restituído à inocência quando exercido a serviço da autoridade, isto é, do vigor da humildade e do amor, que faz crescer a vida. É o que Jesus mostrou no lava-pés, e na Cruz.

A vitória de Jesus Cristo sobre a tentação do poder é o penhor da nossa vitória. É a garantia de que também nós, seguindo pela via da humildade e do amor, prestando nossos serviços aos homens, poderemos aceder ao Reino de Deus. O Filho de Deus vive na liberdade. Não adora nada nem ninguém. Não é escravo da cobiça do louvor, do amor e do temor dos homens. Não faz do poder seu amo e senhor e ídolo. Ele se atém à palavra de Deus que diz: “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e a ele só prestarás culto (latreúseis)” (Lc 4, 8).

A segunda tentação é espiritual. É o perigo do envenenamento do espírito pela ambição do mundo, vale dizer, pela busca da glória humana, dos próprios interesses e pelo bem-estar pessoal em detrimento da glória do Senhor e de seu Reino; é o que nosso Papa chama de mundanismo espiritual [Cf. EG 93-97]. Um mundanismo que leva muitos religiosos e eclesiásticos ao desejo e à pretensão de “dominar o espaço da Igreja”, a um exibicionismo da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja em detrimento da preocupação com o Evangelho e sua inserção no povo fiel.

Jesus Cristo venceu esta tentação pelo seu desprendimento, pela sua pobreza, mansidão, magnanimidade e humildade. A vitória de Jesus sobre esta tentação é o penhor de nossa própria vitória. É a garantia de que, seguindo a Jesus pobre e humilde, nós poderemos entrar nessa mesma liberdade dos Filhos de Deus.

Ao veneno das tentações espirituais Francisco propõe “que ninguém se ensoberbeça, mas glorie-se na cruz do Senhor” [RNB 5], que sejamos menores e “súditos de toda humana criatura, a exemplo de Deus” [RNB 16,6].

 

  • A tentação radical e total

Finalmente, o diabo conduz Jesus a Jerusalém. Ele o postou na cumeeira do santuário e lhe diz: “Se és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo, pois está escrito: Ele dará a teu respeito ordem a seus anjos de te guardarem, e ainda: eles te carregarão nas mãos, para que não contundas o pé em alguma pedra”. E respondendo Jesus lhe diz que foi dito: “não tentarás o Senhor teu Deus”.

Importante notar que o Adversário agora usa as Escrituras como armas contra Jesus. Escolhe passagens que lhe sejam convenientes e deixa de lado aquelas que lhe sejam prejudiciais. E, de novo, a provocação: “Se és Filho de Deus…”. Como outrora no paraíso, na tentação de Adão e Eva, também aqui está em jogo uma certa compreensão ou desejo de ser como Deus contra Deus; na negação, recusa e revolta com a própria finitude e fragilidade humana. É a presunção temerária de igualar-se a Deus sem conformar-se a Ele na boa vontade do amor, sem querer o que e como Ele quer. O diabo deturpa, leva para baixo, para a desonra, a compreensão do que é ser Filho de Deus, do que é ser como Deus. Nessa compreensão se imiscui o ressentimento e a revolta com a própria finitude. Aqui a finitude aparece não como finitude agraciada, mas como finitude desgraçada. Para ser divino, pensa o Adão de todos nós, seria necessário não ser este humano limitado, finito, frágil, doente e destinado à morte.

Entretanto, Jesus Cristo não se recusou o ser irmão dos homens, mesmo e principalmente dos fracos e pecadores: “ele não se envergonha de chamá-los de irmãos” (Hb 2, 11). Ele não rejeitou participar de nossa natureza e condição finita, corpórea, de carne e sangue: “Já que os filhos têm em comum o sangue e a carne, também ele participou da mesma condição, a fim de, por sua morte, reduzir à impotência aquele que detinha o poder da morte, isto é, o diabo, e libertar os que, por medo da morte, passavam a vida inteira numa situação de escravo” (Hb 2, 15).

Não à toa a terceira tentação se passa no cume do Templo, em Jerusalém, onde Jesus iria oferecer o sacrifício de si mesmo, a oferenda da Cruz, em que, no mais abissal abandono, ele quis querer o querer do Pai, e o quis com a mesma boa vontade do amor do Pai. Ele quis, na tentação total, do abandono da cruz, receber sobre si a maldição, para se tornar fonte de bênção para os homens, seus irmãos; Ele quis arruinar-se para tornar-se para os seus irmãos fonte de salvação. Só assim ele se manifestou como o Filho de Deus, que ele era.

O diabo pediu a ele um espetáculo de seu poder, e ele, na fraqueza da Cruz, deu um espetáculo do poder de seu amor incondicional ao Pai e aos homens. O embate com a última tentação levou-o assim ao cume de sua identidade, vocação e missão: “Depois de ter consumado a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade nas alturas, tornando-se tão superior aos anjos que herdou um nome bem diferente do deles. De fato, a qual dos anjos disse ele alguma vez: Tu és meu filho, eu, hoje, te gerei, e ainda: eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (Hb 1, 4-5).

A vitória de Jesus sobre esta terceira tentação é o penhor de nossa vitória. É a garantia de que, seguindo a Jesus Crucificado, no abandono da cruz, na boa vontade do amor, também nós poderemos sair vencedores e, com Ele, participar do Reino do Pai, como Filhos diletos. Por que Ele se tornou semelhante a nós, nós podemos nos tornar semelhantes a Ele, e, assim, semelhantes ao Pai. Enfim, podemos ser como Deus, não contra Deus, na presunção, ressentimento e revolta, mas com Deus, na plena comunhão da boa vontade do amor.

À tentação total e radical, Francisco propõe: “Atende, ó homem, a que excelência te pôs o Senhor Deus, porque Ele te criou e te formou à imagem do seu dileto Filho, segundo o corpo, e à sua semelhança a, segundo o espírito” [Ad 5,1].

 

3.2. Na cruz a última tentação

“Tendo então esgotado toda tentação possível, o diabo afastou-se dele até o momento fixado” (Lc 4, 13). Assim termina o episódio narrado por São Lucas. A tríplice tentação sofrida por Jesus é toda a tentação. Tendo vencido Jesus o combate, não resta ao diabo outra alternativa que retirar-se, derrotado. Mas ele retornaria, “no momento (kairós) fixado”, isto é, no momento da cruz: “Então, profundas trevas caíram por sobre toda a terra, do meio-dia às três horas da tarde daquele dia” E, por volta das três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: “Eloí, Eloí, lamá sabactâni?”, que significa “Meu Deus, Meu Deus! Por que me abandonaste?” [Mt 27,45-46]

 

Conclusão

Toda a vida do homem é uma contínua tentação. É o que nos recordam os quarenta dias de Jesus passados no ermo. No contexto o número 40 significa os anos todos da vida de um homem. Isso significa que sempre de novo ele é posto à prova. Desde o nascer até o morrer, desde o acordar até o adormecer,  está posto à prova e tem de decidir-se: está na tentativa e na tentação. Mas, é justamente através deste embate que ele amadurece e se torna sábio no conduzir sua vida.

Mas, na existência da Fé, no seguimento de Jesus, o ser tentado é mais do que uma questão ética. No seguimento, no discipulado cristão (ser cristão, ser católico), o ser tentado é exercício de fé, de comunhão com Cristo e, em Cristo, com o Pai: Vós sois os que permanecestes comigo nas minhas tentações. Eis por que eu confio a vós o Reino, assim como o Pai o confiou a mim (Lc 22,28-29). Para o discípulo, permanecer com Cristo na tentação, é o maior testemunho e a maior confissão da fé.

De São Francisco dizem os biógrafos que foi pelas tentações que saiu mais provado e esclarecido acerca de sua vocação (LTC 18,4); que ele mesmo chegou a chamar os demônios de “ajudantes e ministros de Deus” (CAs 117) e que “ninguém pode dizer-se servo de Deus enquanto não passar por tribulações e tentações” (2C 83,4).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini, ofm