Um episódio contado por numerosas fontes cristãs e basicamente ignorado no mundo islâmico, no qual podemos perceber especialmente o espírito franciscano.
A reportagem é de Maria Teresa Pontara Pederiva, publicada por Vatican Insider, 03-01-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Foi definido como um dos gestos mais extraordinários de paz na história do diálogo entre o cristianismo e islã: hoje se falaria de diálogo inter-religioso, um termo desconhecido na época medieval, exatamente 800 anos atrás. Estamos no mês de junho de 1219, no auge da Quinta Cruzada, quando Francisco de Assis deixa sua cidade para se encontrar com os muçulmanos, depois de algumas tentativas fracassadas. Em um barco de militares e comerciantes alcança com alguns frades o porto de São João do Acre, no norte da Palestina (atual cidade israelense de Acre) com o objetivo de abandonar o acampamento cristão e visitar ao sultão de Egito, Melek-el-Kamel.
O encontro aconteceu alguns meses depois, talvez no trégua das lutas em setembro, no porto de Damieta, no delta do Nilo a cerca de 200 km ao norte do Cairo, onde o sobrinho de Saladino recebeu os frades (Francisco e, provavelmente, o frei Iluminato) com grande cortesia, apesar da contrariedade do resto da corte, e também ofereceu-lhes presentes que o Poverello, no entanto, como se poderia imaginar, recusou.
Existem várias fontes cristãs que relatam o episódio: a partir da Prima Vita de Tomás de Celano no cap. 20 (FF 422), a Lenda Maior de São Boaventura no cap. 9 (FF 1172-1174), a Lenda menor no cap. 3 (FF 1356), os Fioretti no cap. 24 (FF 1855), além das cartas de Jacques de Vitry (FF 2226-2228), das Crônicas de Ernoul (2231-2234), para citar algumas (mais “históricas” e confiáveis as duas últimas, por serem isentas de intenção hagiográfica: “Não teve medo de se colocar no meio o exército de nossos inimigos e por alguns dias pregou para os sarracenos a palavra de Deus, mas com pouco proveito”, escreve Jacques de Vitry).
Exatamente o contrário, no entanto, no lado islâmico, onde “nenhum historiador, contemporâneo ou posterior a São Francisco e ao Sultão al-Malik al-Kamil, deixou qualquer descrição ou, pelo menos, uma simples menção a esse encontro”, como ressalta ao Vatican Insider Bartolomeo Pirone, estudioso de história islâmica e membro do Centro Franciscano de Estudos Orientais no Cairo: “Em algum histórico muçulmano tardio aparece uma expressão singular que diz, falando de um conselheiro do Sultão de nome Fakhr al-Farisi: “suas belas qualidades ou virtudes são bem conhecidas por todos e também é bem conhecidas a sua história com al-Malik al-Kāmil e o que lhe aconteceu por causa do rahib”. No ano de 1924 um arqueólogo egípcio, percorrendo os sepulcros e mausoléus espalhados no imponente cemitério do Cairo chamado Al-Qarāfah, parou junto ao túmulo desse personagem, percebeu uma coluna funerária ao lado do túmulo e decifrou a inscrição, publicando-a mais tarde. No texto da coluna, porém, nenhuma menção é feita ao sultão ou ao rahib ou religioso ou frade. Infelizmente, tempos atrás, começando na década de 1950, acreditava-se ter encontrado a confirmação do encontro entre São Francisco e o Sultão usando como evidência arqueológica justamente o texto gravado na coluna. Tratou-se, porém, de um grande equívoco”.
Mesmo assim, ao longo dos séculos no mundo ocidental esse encontro estimulou a fantasia de muitos, inclusive no campo da literatura, da arte pictórica e, mais recentemente, no cinema e até na música (Angelo Branduardi dedicou uma canção em se álbum monográfico “O infinitamente pequeno” de 2000). Acima de todos, despontam os versos de Dante no XI canto do Paraíso e o afresco atribuído à Escola de Giotto que pode ser visto em Assis na Basílica Superior onde é representada a ordália ou “prova de fogo” narrada por São Boaventura, segundo a qual Francisco teria proposto a prova ao sultão para determinar qual era a verdadeira fé. Um particular hoje considerado altamente improvável, como de resto outros narrados por fontes com uma intenção abertamente hagiográfica, a ponto da historiadora Chiara Frugoni, bem como vários outros estudiosos, o considerarem altamente alheio à personalidade de Francisco.
Mas é justamente das próprias palavras de Francisco que podemos conhecer suas intenções, se formos ler o que ele escreveu na Regra Não Bulada que dedica à questão no capítulo XVI, intitulado Dos que quiserem ir entre os sarracenos e os outros infiéis:
“Diz o Senhor: ‘Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, pudentes como serpentes e simples como pombas’. Se, pois, houver irmãos que quiserem ir para entre os sarracenos e outros infiéis, que vão com a licença de seu ministro e servo. Se o ministro reconhecer que eles são idôneos para serem mandados, dê-lhes a licença e não a recuse; pois terá que dar contas ao Senhor (cf. Lc 16,2), se nisso ou em outras coisas agir sem a devida discrição”.
“E os irmãos que partirem poderão proceder de duas maneiras espiritualmente com os infiéis: o primeiro modo consiste em absterem-se de rixas e disputas, submetendo-se ‘a todos os homens por causa do Senhor’ (1Pd 2,13 ) e confessando serem cristãos. O outro modo é anunciarem a palavra de Deus quando o julgarem agradável ao Senhor: que creiam no Deus Todo-Poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo, Criador de todas as coisas; no Filho, Redentor e Salvador; e se façam batizar e se tornem cristãos, porquanto ‘quem não nascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino dos céus’”. O texto continua com algumas citações evangélicas, a fim de exortar os frades a fazer um corajoso testemunho da sua fé, mesmo sofrendo perseguição, até à aceitação do martírio já que “se entregaram ao Senhor e lhe deram direito sobre seus corpos.”
A sucessiva Regra Bulada (um texto canônico), em vez disso, dedica apenas algumas linhas ao capítulo XII. De acordo com o franciscano Gwenolé Jeusset, OFM, membro da Fraternidade Internacional de Istambul para o Diálogo Inter-religioso e presidente da Comissão Internacional Franciscana para as relações com os muçulmanos (autor de vários textos sobre o tema, incluindo “Francisco e o Sultão”, Jaca Book: d2008 ) que remete com frequência em seus discursos para a declaração conciliar Nostra Aetate – o documento do Vaticano II sobre religiões não-cristãs – diz que foram necessários sete séculos antes que Charles de Foucauld redescobrisse esse método de presença e compartilhamento fraterno espalhando a paz e a justiça, uma modalidade que hoje sabemos ter sido testemunhado, até dar a vida, pelos monges de Tibhirine na Argélia, recentemente beatificados.
Quanto às comemorações do aniversário (que já teve um prólogo no Cairo em outubro de 2017) e ao autêntico espírito de Francisco de Assis entrevistamos o frei Francisco Patton, custódio da Terra Santa, envolvido diariamente no diálogo inter-religioso como todos seus antecessores, testemunhos de uma presença de paz nos lugares onde a fé cristã começou.
Eis a entrevista.
Vocês, frades, recentemente celebraram os 800 anos de presença na Terra Santa e agora, em 2019, ocorrerão os 800 anos do encontro de Francisco com o Sultão: como pretendem rememorá-lo?
Haverá, claro, celebrações formais, acompanhadas de eventos culturais e de estudo, tanto na Itália, como aqui em Jerusalém e no Egito, e quase com certeza, haverá uma exposição dedicada a este evento no Encontro de Rimini. Mas eu acredito que a maneira mais significativa de comemorar este evento histórico será de continuar a cultivar todas as iniciativas de diálogo, de encontro e de amizade que já estamos cultivando e que vão na direção oposta da cultura do choque de civilizações. Aqui temos a possibilidade de fazer isso no dia-a-dia, através de encontros de conhecimento recíproco e de compartilhamento que estão se tornando regulares tanto com realidades muçulmanas como com realidades judaicas. Para mim, aliás, o grande ponto de encontro são as nossas escolas na Terra Santa, onde tentamos oferecer uma educação que cultive o “espírito de Damieta”, ou seja, do encontro vivido de maneira tão profunda e recíproca por São Francisco e pelo Sultão Malek El Kamel, oito séculos atrás, em plena Quinta Cruzada. Pessoalmente, acredito que o “sonhador” Francisco tenha mostrado uma visão bem mais ampla, senso prático e eficácia do que todos aqueles que preferiram o confronto ao diálogo. O resultado reside precisamente no fato de que, oito séculos depois, nós, franciscanos, ainda estamos na Terra Santa, vivos e ativos.
Terra Santa, uma terra que foi campo de batalha entre religiões, mas também um lugar de diálogo e de convivência: qual é a mensagem franciscana que pode ser enviada daqui para o resto do mundo, especialmente ocidental, onde a rejeição do Islã (que muitos vinculam ao terrorismo) e, muitas vezes, também as regurgitações antissemitas, eventualmente têm implicações inquietantes?
Para mim, o coração da nossa experiência reside no fato de que somos chamados a ousar entrar em uma relação com as pessoas. Nós não encontramos ‘os muçulmanos’ ou ‘os judeus’, encontramos pessoas que vivem sua fé muçulmana ou judaica, e hoje em dia também pessoas que não vivem dentro do horizonte da fé, mas são justamente pessoas com as quais é possível entrar em relação, seguir juntos por um trecho da estrada e até mesmo cooperar. Por exemplo: a nossa escola de música, que não por acaso se chama Magnificat e é afiliada ao Conservatório de Vicenza, tem professores e alunos que são judeus, muçulmanos e cristãos e a experiência de tocar juntos é uma escola extraordinária de convivência e também de amizade. Entre os nossos colaboradores não há só cristãos, mas também judeus e muçulmanos, que colaboram conosco e colaboram uns com os outros e o fazem por uma instituição cristã como a Custódia da Terra Santa. Os estudantes muçulmanos das nossas escolas e suas famílias participam e colaboram e se identificam nas nossas instituições. No meu gabinete, tenho um presépio feito à mão por garotas muçulmanas do Mosaic Center, que o presentearam para mim como sinal de gratidão pela oportunidade de crescimento que a Custódia lhes ofereceu. E eu poderia continuar com muitos outros exemplos.
Se tivermos a coragem de nos encontrar com as pessoas e também de colaborar com instituições muçulmanas que trabalham no campo da cultura e da educação, certamente poderemos contribuir para reduzir entre os próprios muçulmanos formas de interpretação fundamentalista do Alcorão, que acabam levando a um desvio de tipo terrorista. Quanto ao mundo judeu, é ele próprio um mundo com muitas diferenciações internas. Nos últimos anos, iniciamos um caminho de colaboração e amizade com a comunidade judaica de Ain Karem, entre outras. Inclusive neste caso, a cultura é um ponto de encontro muito importante, junto com a espiritualidade. O conhecimento da história é fundamental para evitar a repetição de erros que, no passado, levaram a verdadeiras tragédias, como o Holocausto no século XX.
Na Mensagem de Natal você falou que hoje todos nós precisamos ser iluminados pelo nascimento de uma criança em Belém: o quais são, em sua opinião, as tarefas prioritárias para um cristão que hoje pretende ser testemunha disso?
Eu sei que estou dizendo algo que pode parecer trivial, mas na minha opinião a tarefa prioritária de um cristão que quer testemunhar é de testemunhar com a vida. Este é o método que o Evangelho nos sugere e que São Francisco sintetizou no convite de não ter rixas ou disputas com ninguém, colocar-se ao serviço de todos por amor a Deus e manter uma clara identidade cristã. Só depois vêm as palavras, e só quando vemos que aquele que está à nossa frente tem algum interesse pela mensagem do Evangelho, que realmente dá sentido à nossa vida. Como franciscano, gostaria de dizer que o testemunho efetivo sempre tem uma conotação de “menoridade”, isto é, de entrar na vida dos outros na ponta dos pés, sem pretensões, com abertura de coração e disponibilidade. Se esta premissa não estiver presente, nossas palavras, que são muito importantes e devem ser um eco da Palavra, ressoarão no vazio ou como uma tentativa de persuasão que não sabe respeitar a ação do Espírito na consciência do irmão.