SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS -2019

SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS

01-01 de 2019

Pistas homilético-franciscanas

 

Liturgia da palavra: Nn 6,22-27; Sl 66; Gl 4,4-7; Lc 2,16-21

Tema-mensagem: Maria, a santa Mãe de Deus, gera e oferece ao mundo o Príncipe da paz

Sentimento: júbilo

 Introdução

“Solenidade de Maria, Mãe de Deus! ” É assim que a Igreja, hoje, dentro da oitava do Natal, expressa e celebra jubilosa a identidade mais profunda, misteriosa e encantadora, mas, também dramática de Maria. Com Maria, a Mãe de Jesus, a Mãe de Deus e, por extensão, nossa Mãe, a Mãe do Príncipe da Paz universal, temos também a graça de podermos, hoje, começar um novo ano civil.

 

  1. A grande bênção patriarcal

A primeira leitura de hoje traz a bênção aarônica, benção sacerdotal da Antiga Aliança, à qual foram incumbidos Aarão e seus filhos: «Invocarão o meu nome sobre os filhos de Israel e Eu os abençoarei» (Nm 6, 27).

 “Bênção” (eulogia, em grego; benedictio, em latim) vem de “bendizer”: dizer bem – tanto no sentido de falar bem, isto é, com propriedade, nobreza, com beleza; quanto no sentido de falar algo bom de alguém (elogiar, louvar). Os antigos povos tinham uma compreensão de que a bênção trazia consigo um poder que proporcionava boa fortuna àquele que era abençoado. Na fé de Abraão e de Moisés, porém, o sentido da benção é bem mais do que isto. A benção é uma dádiva divina graciosa, dispensada pelo Senhor, com liberdade soberana, a partir de seu bem-querer pessoal. Por isso, na tradição bíblica, a bênção sempre se expressa num relacionamento de intimidade de um “Tu” para outro “tu”: “O Senhor te abençoe e te guarde…” (Nm 6, 24).

“Abençoar ou ser abençoado, portanto, implica uma aproximação estreita com a esfera do divino, e principalmente com Aquele que é o Santo; evoca e expressa um clima e um relacionamento de intimidade da criatura com seu Criador. Por isso, pode-se dizer que abençoar é conduzir-se, e conduzir o abençoado para dentro da dimensão divina, propiciando-lhe um clima de comunhão e participação com o próprio Deus” (Fontes Franciscanas, p. 159). Na bênção, na “bendição”, portanto, a palavra põe em obra esta condução ao nosso originário; faz ecoar e eclodir a dinâmica da graça divina pela qual acontece o bem-querer e o bem-fazer de Deus para com o sua criatura.

A bênção aarônica invoca o Nome do Senhor sobre o povo por três vezes. Trata-se de pôr o nome do Senhor sobre o seu povo. A partir da bênção, o povo carrega em si mesmo o Nome do Senhor, isto é, a assinatura e o selo de pertença a Ele. Ao repetir o Nome do Senhor por três vezes esta pertença do Senhor ao seu povo e do seu povo ao Senhor se atualiza e se confirma. A cada vez que o Nome do Senhor é invocado uma dádiva é concedida. Três, pois, são as dádivas: proteção, graça (favor, benevolência), paz.

 “Que o Senhor te abençoe e te guarde! ” (Nm 6, 24) – doa proteção. O homem é um ser exposto ao perigo. Por isso, o Senhor o protege como à menina dos seus olhos. O homem é a menina dos olhos de Deus – alumnus, a pupila, o pupilo de Deus. No homem, Deus vê o seu Filho muito amado, Aquele no qual Deus põe a sua complacência. Daí o cuidado paterno com que Deus quer guardar o homem.

O Senhor faça resplandecer sobre ti o seu olhar e te conceda sua graça! ” (Nm 6, 25). Este modo hebraico de dizer significa: “Que o Senhor te mostre o seu rosto sorridente e te seja favorável na sua gratuidade! ”. Deus quer mostrar-nos um rosto sorridente – um rosto alegre de benevolência e de favor – não um rosto de ira, que expressa condenação e recusa. Deve ser este o rosto que o pai na parábola dos filhos (Lc 15) mostrou ao filho pródigo, que retornara para casa: um rosto de alegria por ter recuperado o filho que estava perdido. É este rosto de misericórdia do Pai Celeste que Jesus veio mostrar aos homens, oferecendo-lhes a graça, o favor divino aos homens, sem que eles o mereçam. Basta mostrar ter acendido uma centelha de boa-vontade e, pronto, eis que o Pai se lança apressadamente ao encontro do Filho perdido, para, sorridente, benévolo, acolhê-lo em seu retorno para a casa.

 “O Senhor volte para ti o seu olhar e te dê a paz! ” (Nm 6, 26). Literalmente é: “Que o Senhor levante o seu rosto para ti e te dê a paz! ”. Levantar o rosto significa acolher. Que o Senhor te acolha! Que ele não desvie o rosto de ti! Esta é a vontade paterna de Deus: acolher o homem que se volta para Ele. Jesus ensinou, diversas vezes, no Evangelho, esta vontade do Pai de acolher os homens, de acolher sobretudo aqueles que os homens mesmos não querem acolher, de acolher aqueles que os “justos”, os “separados”, excluem e recusam. Esta é a Boa Nova de Jesus: ele é o médico que vem para os enfermos; o pastor que vai em busca da ovelha perdida, etc., e, em tudo isso, ele revela o rosto da misericórdia do Pai, de seu amor entranhado, visceral, cheio de ternura, para com os humanos. Ama-os não porque eles merecem ser amados. Pelo contrário, torna-os dignos de ser amados, por tê-los amado gratuitamente, misericordiosamente.

Paz, no Antigo Testamento, é muito mais do que um estado de não guerra. “Paz” nomeia a plenitude dos bens da salvação. Esta plenitude de salvação, a Paz, na visão dos profetas de Israel, é dádiva divina que é concedida com o advento do Messias (Ungido). Em Isaías, o Messias, o Ungido pelo Espírito, se apresenta com um quádruplo nome: «Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz» (Is 9, 5). E estes quatro nomes se resumem em um só: “Emanuel” (Deus conosco) (Is 7,14). A paz é, pois, uma das dádivas do Emanuel. Paz é o estar abrigado, salvaguardado, na liberdade. É a tranquilidade, a serenidade, do abandono na salvaguarda, da proteção salvadora do maior que se faz menor: Deus que se faz Menino.

“Assim, invocarão o seu nome”. O Nome do Senhor é secreto, maravilhoso (Gn 32,30; Jz 13, 18). É um nome inominável, inefável. O homem não tem poder sobre este Nome. Ele é livre e soberano em seu mistério. E, no entanto, Ele quis se revelar a Moisés num Nome que se tornou um nome próprio no qual o povo de Israel poderia invoca-lo: Iahweh (“Eu sou Aquele que sou”) (Ex 3, 14).  Neste Nome se dá o aceno para o retraimento do seu Mistério. E, ao mesmo tempo, se revela aquilo que Deus quer ser para o seu povo: “Iahweh” é o Deus que quer se fazer presente junto aos homens, que quer caminhar com eles, quer estar no meio deles. Por isso, é o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó.

Assim, receber a bênção do Senhor significa receber a assinatura do seu Nome em nós, receber o seu selo em nós, como a atestar que nós pertencemos a Ele, que levamos o seu Nome, não só como sua obra, criatura sua, mas como seus filhos. E, se pertencemos a Ele, caminhamos na história sob a sua guarda, na sua graça, recebendo a dádiva da Paz.

 

  1. Filhos no Filho

A segunda leitura da missa de hoje, tirada da Carta aos Gálatas, começa com o anúncio do cumprimento do tempo messiânico: “Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou seu Filho…”

A vinda de Cristo na história humana, porém antes de uma chegada repentina, a modo de um meteorito, vem de dentro, num processo de nascimento: “nascido de uma mulher, nascido sujeito à lei”. Neste processo Jesus vai assumindo todas as consequências e vicissitudes da condição humana decadente desde a queda de Adão. Para a mensagem de Paulo é de suma importância insistir que o Filho de Deus é um homem como todo e qualquer homem, um homem inteiramente humano e por isso plenamente inserido naquele “estado da maldição da lei”, no qual e pelo qual se tornou” maldito a ponto de ser suspenso no madeiro” (Cf. Gl 3,13).

A importância desta insistência de Paulo é para mostrar que só assim o homem se liberta de modo radical e inteiramente de sua condição de escravo da lei; só assim ele – o homem – passa, como Ele, a ser filho do Pai. Esta identificação libertadora segue o caminho da kénosis, isto é, do abaixamento, através da qual Ele imerge inteiramente na miséria humana até a morte mais vergonhosa que é a morte de cruz, atraindo assim, a si todos os que comungam daquela miséria. É pois por essa atração amorosa que Ele se torna um libertador perfeito e não por uma imposição externa como geralmente acontece com as libertações dos heróis e poderosos deste mundo. Por isso, também, essa libertação, ou melhor, esta herança é para todos. Todos os homens de todas as raças, religiões e tempos recebem a filiação divina pela qual podem clamar “Abá – ó Pai!”.

Estamos diante de um novo princípio para todas as relações humanas, sociais, políticas, econômicas e religiosas. Por isso, todos aqueles que realmente proclamam esta fé de filhos do único Pai, devem considerar a si e a todos como verdadeiros irmãos, não podendo admitir nenhuma discriminação de qualquer tipo e em qualquer nível social ou religioso. Bem dizia São Francisco: “Todos vós sois irmãos! Por isso, não vos chameis de pai sobre a Terra, pois, um só é vosso Pai que está nos Céus. Nem vos chameis de mestre. Pois um é o vosso mestre que está nos Céus. Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes e vos será dado. Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles (RNB 22,33-36).

 

  1. Maria fazendo-se Mãe de Deus nos dá o Príncipe da Paz

Entre os diversos aspectos (mistérios) que envolvem o nascimento de Jesus está o de Maria sua Mãe. É sobre este mistério que a Igreja se debruça, hoje, o oitavo dia do Natal.

3.1. Os acontecimentos dos oito primeiros dias da vida de Jesus Cristo

O evangelho de hoje começa com a vinda dos pastores a Belém. Eles vêm pressurosos e encontram Maria e José e o Menino deitado no coxo. Eles vieram e viram e, nisso, fizeram a experiência do mistério do Menino. E saíram a anunciar a Boa Nova deste nascimento cheio de mistério. Entoavam glória e louvores a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, segundo o que lhe fora anunciado (Lc 2, 20). Foram os primeiros evangelizadores. Em seguida, vemos Maria salvaguardando no seu âmago os acontecimentos e as palavras procurando-lhes o sentido. Ela tentava recolher e reunir (symbállousa) todas as coisas que via e ouvia. Buscava a conexão de tudo. Entrelia nos acontecimentos-palavras (tà rhémata)  um sentido divino. Este era o seu empenho maior.

Oito dias depois, no momento da circuncisão do menino, lhe põem o nome de Jesus, como o anjo o chamara antes de sua concepção (Lc 2, 21). Toda a humanidade é circuncidada na circuncisão de Jesus, diz Orígenes. Já não é necessária uma circuncisão carnal. É o Apóstolo quem testemunhou: “nele fostes circuncidados com uma circuncisão na qual a mão do homem não intervém e que vos despojou do corpo carnal: tal é a circuncisão de Cristo” (Cl 2, 11). Ser despojado do homem velho e ser revestido do homem novo: eis a circuncisão espiritual do discípulo de Jesus Cristo, que o batismo celebra.

No oitavo dia também é imposto ao filho de Maria o nome de Jesus. Pronunciar o nome de Jesus, invocá-lo e evocá-lo em suas histórias, é, para o cristão, participar no vigor da salvação que ele torna presente e comunica. Este nome significa: Salvador. Invocá-lo e evocá-lo é participar na força de salvação desta pessoa, desta presença, do filho de Maria, filho querido do Pai. Participando desta força, somos curados de nossas enfermidades, e, assim, chegamos à saúde, ao vigor da vida plena. Somos, graças à participação neste Nome, salvaguardados e abrigados em nosso ser e vigor originários. Nisso consiste, pois, a salvação. O oitavo dia remete ao primeiro dia da nova criação, do novo céu e da nova terra, do novo homem: o dia da ressurreição. Jesus, com efeito, pela sua encarnação, pela sua paixão, morte e ressurreição, fez viver todas as coisas, fazendo-as ressurgir no novo céu e na nova terra.

Com Maria, somos chamados a guardar todas as coisas, palavras e acontecimentos da nossa salvação, em nossos corações, tentando reuni-las na dinâmica de sentido. Por nossa disposição e boa vontade, na fé e no amor, somos chamados, também nós, a gerar Cristo para o mundo, sim, a gerarmos Deus de volta. Se Deus nos gerou de novo para a nova vida em Jesus, por sua graça, é por nossa gratidão que nós o geramos de volta. Pelo louvor e pela gratidão, nós restituímos a Deus o que nos vem de Deus. Pelo louvor e pela gratidão, nós reconstituímos a evidência de Deus, de seu amor e bondade, nós o damos a luz; neste sentido, também nós somos “mães de Deus” como diz São Francisco em sua Carta aos Fiéis.

 

3.2. Maria a “Theotokos

O primeiro mistério da solenidade de hoje diz respeito a Maria como a Mãe de Jesus. Jesus para ela como também para nós e para todos os homens é o Tudo porque Nele, numa única pessoa, se realiza o mistério da unidade de Deus e homem, isto é, natureza divina e natureza humana. Trata-se do outrora (século IV) tão discutido e famoso mistério, dogma, da “união hipostática”. Este mistério significa que Jesus é uma única pessoa, portadora de duas naturezas, a divina e a humana, que, sem se confundirem, encontram-se unidas intimamente. Consequentemente, Maria, antes de tudo, comunga de corpo e alma, inteiramente, do mistério desta união sendo não simplesmente a mãe do homem Jesus, mas sim do Deus-homem, do Verbo encarnado, ou, como a saudou Isabel “Mãe do Senhor” (Lc 1, 43), verdadeira “Theotokos”, isto é, verdadeira genitora de Deus. Eis o título com o qual nós a saudamos hoje e em todas as “Ave Marias”: “Mãe de Deus”. É o título mais nobre que uma mulher mortal poderia receber. Todos os seus outros títulos emanam dessa sua dignidade de mãe de Deus, “mãe do Senhor”.

Segundo Santo Efrém, o Sírio (+ 373), com esse título,  “Theotokos” (Mãe de Deus), a Igreja antiga quis manifestar para com ela toda a sua devoção, reverência e amor. Ouçamos como ele expressou este culto: “Mas, ó Virgem Senhora, imaculada Mãe de Deus, minha Senhora gloriosíssima, minha Senhora beneficentíssima, mais sublime do que o céu, muito mais pura do que os esplendores, os raios, os fulgores solares, … Vara germinante daquele Aarão, vara que verdadeiramente apareceste, e mostraste a flor, o teu Filho, nosso Cristo verdadeiro, meu Deus e meu autor. Tu, segundo a carne, geraste o Deus e Verbo, antes do parto, servindo na virgindade, virgem permaneceste após o parto, e nós fomos reconciliados com Deus, o Cristo, teu filho!”.

 

3.3.  Maria, a Bendita que crê sem dizê-lo

A encarnação do Verbo eterno do Pai no útero da Virgem Maria, porém, vem dentro de uma longa história de fé.  Fé dos antigos Patriarcas, reis, profetas e milhares de outros servos e servas de Deus do Antigo Testamento. Maria é o resumo, o auge, a culminância desta fé. Assim, se ela pôde conceber em seu útero a Palavra eterna do Pai é porque ela já a havia concebido, desejado e amado antes na e pela fé. Foi o que reconheceu Isabel: “Bendita aquela que creu que se cumprirá o que lhe foi dito da parte do Senhor” (Lc 1, 45). E mesmo após o parto, passando pela perda e pelo encontro do Menino no Templo e culminando na Cruz, “teve” de continuar gerando-O na fé, pois em nenhuma razão humana encontrava explicação para suas respostas, gestos e atitudes.

Tratava-se, porém de uma fé empenhativa, que queria compreender e ser compreendida pelo mistério de que participava. Fé é, aqui, “participação na ação transcendente de Deus; não se trata de um ato de inteligência que capta Deus, mas de um ato de Deus que capta a nós; não se trata de conhecer a Deus, mas de ser conhecido por Deus” (P. Evdokimov). Maria participava do mistério da encarnação deixando-se compreender pelo incompreensível, deixando-se captar, fecundar, pelo inapreensível. Por isso, ela recolhia todas as palavras que se tornavam “acontecimentos, guardando-os em seu coração”, isto é, em sua mente, procurando interpretar-lhes o sentido, como se tratassem de oráculos divinos, que o devir encarregaria de tornar inteligível.

Ela se tornava, assim, a mãe do Verbo, não só carnalmente, mas espiritualmente. E nisso, nesta maternidade espiritual, estava a sua bênção, a sua bem-aventurança. Ora, Maria, a Mãe de Deus, no tocante a esta maternidade espiritual, é o princípio que proporciona a toda alma humana poder e dever também se tornar mãe do Verbo, gerando-o, pela graça da fé e da caridade, e pela disponibilidade atenta, que se põe em busca do sentido, se deixando conduzir sempre mais para a sombra mais que luminosa da deidade.

 

3.4.  Maria Mãe da Igreja

Por ser a Mãe de Jesus ela se torna também a mãe de todos os seus seguidores, a Mãe da Igreja. Costumamos argumentar que Maria se torna Mãe da Igreja quando no auge da Cruz Cristo dirigindo-se a ela e indicando o discípulo que ele amava, diz: “Mulher eis aí teu filho”, e depois dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” (Jo 19,26-27). Mas, talvez, Jesus esteja dizendo que, agora sim, pela participação dela na paixão da Cruz, Maria consumara sua Maternidade: que agora sim Maria acabava de se tornar a verdadeira mãe Dele – Jesus – dele João e de todos quantos O seguirem.

Quem compreendeu bem esta exclamação foi São Francisco quando redigiu a seguinte saudação: “Ave Domina, sancta Regina, sancta Dei genitrix Maria, quae es virgo Ecclesia facta”, isto é: “Salve, Senhora, santa Rainha, santa genitora de Deus, que és virgem feita Igreja” (SVM).

Segundo esta saudação, Maria e a Igreja fundem-se na mesma alma, vocação e missão: a maternidade divina. Assim, quem vê Maria vê a Igreja e quem vê a Igreja vê Maria. Na maternidade de Maria a Igreja contempla e vive a sua maternidade. Na maternidade da Igreja Maria vê prolongar-se sua Maternidade divina.

Assim, o mistério da maternidade divina de Maria em vez de restringir-se apenas a ela, estende-se à toda a Igreja e a toda a humanidade, a toda a Terra. Sim a “nossa irmã mãe terra” também participa deste mistério da maternidade divina gemendo em dores de parto (Cf. Rm 8,22). Sim, todos e todas as criaturas, somos chamados a ser, em Jesus, filhos de Maria e filhos de Deus, como também chamados a ser em Maria mães de Jesus. Maria, à medida que concebe e gera também é concebida e gerada. Assim, cada pessoa, cada povo tem sua Mãe Maria. Nós temos Nossa Senhora Aparecida, os franceses Nossa Senhora de Lourdes, os franciscanos Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula, “A Pequenina”, “A Pobrezinha”, etc. O mesmo diga-se de Cristo. Ele será sempre o mesmo, mas gerado, acolhido e amado de modo diferente pelos africanos, brasileiros, franciscanos, jesuítas, etc. O que equivale dizer que cada povo ou nação gerará sempre o “seu” Cristo. Embora um em si e sempre o mesmo, um será o Cristo dos brasileiros, outro dos africanos, dos jesuítas, dos franciscanos, etc.

Tanto quanto a morte, também, concepção e nascimento são sempre um evento misterioso. Mistério da vida, em que criança e mãe são um. Em Maria, este mistério é ainda maior. Nela, segundo o Apocalipse, capítulo 12, a Mulher triunfa sobre a antiga serpente. A maternidade natural torna-se sobrenatural. A natureza é suplantada pela graça. Ou melhor: a graça subsume a natureza, elevando-a a um estado de nobreza e dignidade ainda maior do que o da primeira criação, pois agora o “Deus-conosco” é, também, o “Deus-com-ela”. Maria torna-se assim a Nova Eva (Mãe da vida e dos viventes) assim como Cristo, seu Filho, se tornou o Novo Adão. Deles devém a Nova Criação: o Natal do Novo Céu e da Nova Terra, a Paz e a Fraternidade universal.

 

3.5.  A maternidade de Maria nos mistérios do Rosário

A disponibilidade da virgem Maria tornou-se maternidade fecunda sob a ação do Espírito Santo e da sua graça. A contemplação piedosa e devota deste mistério fez surgir no coração dos fiéis o tão conhecido e popular exercício do santo Rosário (Oração das Rosas). Na repetição das Ave Marias, agrupadas de dez em dez e cada vez em torno de um novo mistério o povo de Deus vai sendo conduzido para o interior sempre mais profundo deste único mistério: a Filiação divina do Verbo Encarnado que vai se estendendo da Virgem Maria para todos os homens, para todo o Universo e para toda a história. Por isso, são mistérios de alegria, mas também de dor. Alegria e dor, porém que culminam e se consumam nos mistérios de glória e de luz. Por isso, também, os fiéis se unem à alma de Maria que engradece o Senhor e de seu espírito que exulta de alegria pela sua maternidade, ou melhor, pela misericórdia divina, que se estende de geração em geração e que na sua maternidade dá um sinal de uma inusitada fecundidade. Assim, os mistérios de glória, que já se consumaram em Maria, ainda hão de se consumar nos discípulos de Cristo, de quem Maria é também Mãe. Pois, “juntamente com o Espírito Santo, ela sempre está no meio do povo” (EG 284). Ela que soube gerar e cuidar de Jesus, “agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora se compadece dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo, exterminadas pelo poder humano” (LS 241).

 

3.6.   Deram-lhe o nome de Jesus

O Evangelho de hoje termina dizendo: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, com fora chamado pelo próprio anjo antes de ser concebido”.

Estamos diante do sumo da bênção de Deus, atestado na primeira e segunda leitura de hoje. Ele  nos vem em seu Filho Jesus porque Ele é o próprio Deus-conosco, o “Emanuel”, assim decantado por São Paulo: “Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a bênção espiritual nos céus, em Cristo Jesus” (Ef 1,3).

Por isso, para nós o nome “Jesus” é tudo.  É nosso caminho, nossa verdade, nossa vida. Disso souberam e provaram os cristãos do ocidente e do oriente. Os que escreveram sobre São Francisco, por exemplo, falavam de como o nome de Jesus era doce ao paladar espiritual desse Santo. Tomás de Celano, ao mostrar a devoção de Francisco para com a “Natividade do Menino Jesus”, faz questão de anotar como ele pronunciava este nome com singular afeto, “balbuciando doces palavras como uma criancinha”, e como, “para ele, esse nome (Jesus) era como um favo de mel na boca” dele (1C 86). Santa Joana D’Arc, por sua vez, quando ia se encaminhando para a fogueira não cessava de balbuciar “Jesus!”, “Jesus!”,”Jesus!”. No oriente, há toda uma tradição da invocação do Nome de Jesus. Num dos escritos desta tradição oriental lemos:

“O Nome de Jesus traz-nos mais do que sua presença. Jesus está presente em Seu Nome como um Salvador, porque a palavra “Jesus” significa isto: salvador ou salvação (…). À proporção que o Nome de Jesus cresce dentro de nós, crescemos no conhecimento dos divinos mistérios. O Santo Nome não é apenas um mistério de Salvação, nem a satisfação de nossas necessidades, o alívio das tentações, o perdão de nossos pecados. A invocação do Nome é também um meio de aplicar a nós o Mistério da Encarnação. É poderoso meio de união com Nosso Senhor. Estar unido a Cristo é maior benção que estar em sua presença ou ser salvo por meio dele. A união é superior à presença e à meditação”. 

Agora entendemos porque toda bênção é feita em nome de Jesus, por Ele e com Ele. Pois só por Ele é que podemos voltar ao nosso Princípio, a ser o que éramos em Deus, antes de existirmos. Na verdade, desde a criação do mundo, ou melhor, desde toda a eternidade, trazemos misteriosamente a sua marca, o seu sinal, a sua assinatura em nosso nome, em nosso ser. Portanto, além ou antes de cristãos somos todos “jesuínos”. Com sua bênção somos guardados por ele que nos põe “debaixo de suas asas” (Sl 56,2), nos protege como a menina de seus olhos, como suas pupilas tornando-nos com e como Ele os pupilos de Deus. Com a bênção que nos é dada em Jesus recebemos sua graça. Sua graça é seu bem-querer, sua alegria. Com sua bênção Ele nos revela e faz brilhar sobre nós seu rosto resplandecente, brilhante. E este resplendor é sua beleza, sua graciosidade, sua paz. Paz que é a plenitude dos bens da salvação, harmonia e concórdia com Deus, com a verdade mais profunda de nossa alma, com os homens, mesmo com os homens que não querem saber de paz. Paz que é unidade, a alma recolhida no seu fundo, serena, ali onde ela é una com Deus e una em Deus. Cristo, o filho de Maria, é o “Príncipe”, o Princípio, da Paz (cfr. Is 9,5). Ele é a nossa Paz (Mq 5,4).

 

 Conclusão

A alegria da Solenidade de Maria, Mãe de Deus, coincide com a alegria da chegada do Ano Novo. Com ele se renovam as esperanças. No dia 1º de janeiro começa um novo ano civil nos povos e nações da cristandade, que seguem o calendário gregoriano e que estabelecem a cronologia da história a partir do evento da encarnação de Jesus Cristo (Antes e de depois de Cristo). Por mais secularizada que esteja esta festa, ainda traz, no ocidente, as marcas do cristianismo.

Entre nós usa-se a palavra francesa “réveillon” que significa “despertar”, para denominar esta festa secular. Para os que celebram com sentido cristão o ano novo, este “despertar” há que se dar “em Cristo”. Para os cristãos, todo o ano é “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Por isso, na liturgia, se começa o ano invocando o Nome de Jesus e a sua bênção, para todos os dias do ano que está às portas. Neste sentido o novo ano pode significar a graça de começar, de nascer de novo.

O homem, porque nasceu um dia precisa aprender a nascer todos os dias, sempre de novo começar e recomeçar; ser sempre, até o fim, um iniciante, um neófito, um noviço como nos ensinou São Francisco, no fim de sua vida: “Meus irmãos, comecemos a servir de novo e com humildade ao Senhor, porque até agora bem pouco fizemos” (1C 103). Tudo isto porque o homem é a única criatura que sente sede, saudade de seu Princípio, a única criatura que precisa captar e ser captado por ele. Pois, é neste Princípio que o homem encontra o seu fim, o seu destino, a sua consumação.

Nós cristãos somos agraciados com o saudável costume, aprendido desde crianças, de começar tudo o que fazemos invocando este Princípio expresso com o sinal da SS. Trindade: do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Prenúncio deste princípio encontramos na famosa bênção doada pelo Senhor ao povo de Israel, confiada ao sacerdote Aarão, através da mediação do profeta Moisés. Por três vezes é invocado o nome do Senhor sobre este povo (Nm 6, 22-27). Assim, a história sagrada nos recorda que no Princípio, na origem do Povo judaico, do povo cristão, no princípio de cada criatura, de cada acontecimento ou coisa está a bênção do Senhor.

São Francisco recorre a esta bênção em favor do angustiado Frei Leão, ovelhinha de Deus, um dos seus companheiros mais íntimos. É também dentro desta moção que São Francisco e os cristãos medievais tinham o costume de começar os seus escritos, muitas vezes, dizendo: “In nomine Domini” – “Em nome do Senhor! ” ou “In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti”. Por isso, hoje, nós também somos convidados a começar o ano de 2019 não somente evocando, mas também invocando sobre nós, sobre a humanidade toda, sobre sua história e sobre todas as criaturas a mesma bênção de paz que deu origem ao Povo de Israel do qual somos herdeiros, continuadores, responsáveis.

Toda bênção expressa e efetiva uma aproximação, um encontro entre Deus e sua criatura e vice-versa, criando um clima, um habitat de familiaridade, intimidade, paz, fraternidade, confiança e fé. Com a invocação do seu Nome, chamamos para perto de nós o seu Ser, isto é, sua presença, sua vigência misteriosa. E, com isso, o seu poder e a sua ação em nossas vidas. Por tudo isso, vem muito a propósito a Igreja iniciar o novo ano, o dia da paz e da Fraternidade universal, e celebrar a solenidade de Maria Mãe de Deus com a proclamação da primitiva bênção de Aarão.

 “Hoje Deus fez Maria sorrir porque ela deu à luz o sorriso de Deus, Jesus Cristo” (Tesouros da Literatura e da História, SANTO ANTÔNIO DE PADUA, volume II, 1987; pág. 625 – III Sermão in nativitate domini).

Como os pastores, nós também, terminada a oitava do Natal, voltemos jubilosos para as casas do nosso cotidiano de 2019 glorificando e louvando a Deus por ter-nos concedido a graça de ver, celebrar e testemunhar, mais uma vez, o Mistério divino-humano de Jesus e de Maria, a Mãe de Deus. 

Por intercessão de Maria a Mãe de Deus, que durante todo este novo Ano:

“O Senhor te abençoe e te guarde!

O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face, e se compadeça de ti!

O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz” (Nm 6, 23-26).

 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm