SAGRADA FAMÍLIA DE JESUS, MARIA E JOSÉ
2018 – Ano C
Pistas homilético-franciscanas
Liturgia da Palavra: Eclo (Sirac) 3, 3-7.14-17ª; Sl 127 (128); Cl 3,12-21; Lc 2,41-52)
Tema-Mensagem: Que todas as famílias, a exemplo da Sagrada Família, sejam santas e sagradas a fim de que saibam acolher e dar lugar a Jesus que vem nos esposos, pais, filhos e irmãos.
Sentimento: gratidão e alegria
Introdução:
Logo após, ou melhor dentro da solenidade do Natal, celebramos hoje, a festa da “Sagrada Família: Jesus, Maria e José”. Para iluminar este mistério, a Igreja proclama, neste ano, o conhecido evangelho do Menino Jesus perdido e encontrado no Templo pelos seus pais, Maria e José.
- O mandamento de os filhos honrarem os pais
Quem nos introduz no mistério desta festa é um pequeno texto tirado do livro do Eclesiástico. O autor revela mui explicitamente sua intenção: explicar aos filhos já adultos a importância, a riqueza e os benefícios da observância do quarto mandamento da Lei mosaica: honrar pai e mãe (Ex 20,12). Mas, antes, faz questão de dar a razão deste mandamento: “Deus honra os pais nos filhos e confirma sobre eles a autoridade da mãe”.
O autor do Eclesiástico, gosta de mostrar que os homens têm nas relações familiares um campo muito propício para se praticar o amor e a dedicação a Deus. Mais adiante mostrará este amor e esta dedicação falando dos deveres dos pais na educação dos filhos (Eclo 30, 1-13; 42,9-14). Mas, aqui, trata dos benefícios que advém para os filhos que cumprem o quarto mandamento: “Quem honra seu pai, alcança o perdão dos pecados; evita cometê-los e será ouvido na oração quotidiana. Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros”.
Dois aspectos importantes para o autor do Eclesiástico. Primeiramente, o direito paterno dos pais sobre os filhos mais que uma lei da natureza é de ordem divina. Por isso este direito será sempre derivado, dependente de Deus, sempre relativo, jamais absoluto.
Além do mais ele sempre associa à autoridade do pai também a da mãe. O Antigo Testamento é muito pródigo em associar o dever dos filhos à honra do pai também à honra da mãe: “Honra teu pai e tua mãe para que se prolonguem os teus dias no país que te dará o Senhor teu Deus” (Ex 20,12). Quem segue esta ordem, diz o Eclesiástico, “é como alguém que ajunta tesouros”. Tesouros, aqui são as boas obras, os bons atos que sempre carregam em si mesmos sementes – fontes – de bem que um dia ou outro, cedo ou tarde, haverão de frutificar.
- A carta magna de São Paulo acerca do matrimônio e da família
Na segunda leitura de hoje, o apóstolo Paulo, depois de haver elencado um conjunto de vícios nos quais o homem velho se deforma, nos apresenta como que a carta magna da vida matrimonial e familiar dos homens e mulheres novos, isto é, renovados na Boa Nova da Humanidade de Deus (encarnação).
- Acima de tudo amai-vos uns aos outros
Paulo, começa por apresentar o fundamento de toda a vida matrimonial e familiar: “Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos”. Se esta é a realidade, a verdade mais verdadeira de cada um dos membros de uma família, a partir dos esposos, segue, então, logicamente, esta exortação: “Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, humildade, bondade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente… Mas, acima de tudo amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,12-15). Suportar é ser suporte para o outro. Ser apoio. Só quem ama pode dar importância ao outro e tomar para si o seu peso e carrega-lo. O amor torna todo o peso suave e todo o jugo leve. É o que arremata o perfazer-se do cristão em seu caminho pela vida; o laço que enlaça o todo da vida cristã: o vínculo da perfeição.
O Matrimônio cristão, assim como o celibato apostólico e evangélico, é “por causa do Reino dos Céus”. Por isso, não tem outro princípio e outra lei do que o Amor-Caridade-doação-entrega: “Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13, 34). Este mandamento é incumbência e é graça. Por isso, bem no coração e na essência do rito do sacramento do matrimônio os noivos proclamam e declaram: ”Serei teu/tua na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-te e respeitando-te todos os dias de minha vida”.
Como as demais vocações, também o casamento, portanto, é fruto da graça e da alegria do encontro, do enamoramento, tão bem decantado pelo Cântico dos Cânticos: “Como és bela, minha amada, como és bela! São pombas teus olhos escondidos sob o véu… roubaste meu coração. Minha irmã, minha noiva, roubaste meu coração com um só dos teus olhares… Que belos são teus amores…” (Ct 4). E conclui o poeta sagrado: “O amor é forte, é forte como a morte… Águas torrenciais não conseguirão apagar o amor, nem rios poderão afogá-lo. Se alguém quisesse comprar o amor com todos os tesouros da sua casa, receberia somente desprezo” (Ct 8,6s). É que a dinâmica do amor é gerada pela gratuidade. O maior tesouro, o mais importante e precioso da vida, está, justamente na gratuidade. Aquilo que pode ser vendido e comprado nunca alcança a bondade e nobreza dos bens da gratuidade. Tudo o que pode ser avaliado economicamente é inferior. Tudo que é útil é de uma bondade relativa: é meio para um fim. Os bens da gratuidade, no entanto, são fins em si, são bens que são bons por eles mesmos. Estão acima da lógica do útil, do comprável e do vendível. Os relacionamentos humanos mais significativos, isto é, mais importantes e expressivos, são aqueles que se fundam na importância da gratuidade.
A graça deste tesouro da graciosidade e da gratuidade do amor, porém está em nós como em vaso de barro. Por isso, se o homem não se cuida pode tornar-se escravo dessa força. Daí a afirmação do Papa Bento XVI em sua encíclica Deus Caritas est: “Somente quando ambos (corpo e alma) se fundem verdadeiramente numa unidade é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só assim é que o amor pode amadurecer até sua verdadeira grandeza”. Na mesma encíclica, o Papa insiste em mostrar a beleza e a grandeza do matrimônio: recriar o Amor que é Deus na família, na igreja, no mundo. Por isso, fala que o amor erótico é também o de Deus por nós: Deus assume a natureza humana para amá-la e ser amado.
Maria e José aceitaram, no amor-gratuidade, a missão de serem mãe e pai (cuidador, protetor, educador) de Jesus. Nesta aceitação, mostraram uma disponibilidade incondicional: Maria pelo seu “Sim” ao anjo e José, pela aceitação da incompreensibilidade em sua vida e pela reverência que teve para com o mistério resguardado na vida de sua esposa.
O mistério vigora sem se impor. A força, o vigor, do mistério da gratuidade e da gratuidade do mistério, aparece, por isso, como fragilidade. Assim como Jesus no Natal se reveste e se sustenta na força da não-força que é a pura gratuidade do amor que é o Pai, a misericórdia, também o homem e a mulher que se unem em matrimônio se entregam nas mãos de Deus, fonte do amor e da vida num “sim” recíproco, generoso e total. Deus se alegra com júbilo ao ver o seu “Sim” ser assumido pelo “sim” dos esposos tornando-os instrumentos de seu querer benevolente para com os humanos. “Deus diz realmente, e com incrível condescendência, sim para vosso sim; mas, enquanto Ele fizer assim criará ao mesmo tempo algo totalmente novo: Ele cria do vosso amor – o santo matrimônio” (D. Bonhoeffer)[1].
O matrimônio é mais do que o amor conjugal uma vez que o casal deixa de mirar apenas a própria felicidade terrena, e eles passam a ser postos como responsáveis pelos homens, cuidadores deles, na grande família do Pai eterno. O matrimônio é a vida do casal humano vivida “por causa do Reino de Deus”, isto é, no horizonte, na proximidade, no toque do reino da caridade divina. O amor do casal se torna, então, uma incumbência, e uma missão, que participa da missão do Filho na encarnação. Como obra da graça, não é o amor que sustenta o matrimônio, mas o matrimônio que sustenta o amor conjugal. E Deus se faz fiador do matrimônio comprometendo-se guardá-lo contra todo o poder do mundo, contra toda a tentação, toda a fraqueza humana. Basta que o casal a Ele se confie, deixe-se guiar por Ele, na abertura da obediência da fé, como fizeram Maria e José ao longo de toda a sua missão de pais deste Menino misterioso. Assim, o casal cristão pode dizer: “nós não podemos mais ser perdidos um ao outro, nós pertencemos um ao outro pela vontade de Deus até morrer” (idem).
- Diferentes na unidade e unidos na diferença
O matrimônio cristão é uma comunhão “no Senhor”, assim expresso pelo Apóstolo Paulo: “Esposas, sede submissas aos vossos maridos, como convém no Senhor. Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza” (Cl 3,18-19). Este modo de dizer “no Senhor” resume tudo. Homem e mulher são iguais e são diferentes. São de uma mesma essência: por isso é que Adão, no livro do Gênesis, diz: “Eis, desta vez, o osso dos meus ossos e a carne da minha carne! Ela se chamará humana, pois do humano foi tirada” (Gn 2, 23). Em razão desta identidade de essência são iguais em dignidade. É por isso que o relato do Gênesis diz que a mulher foi criada da costela de Adão, não de seus pés nem de sua cabeça, isto é, para andar lado a lado com o homem, como sua companheira. Mestre Eckhart diz: “Assim, deve ser um o teu amor, pois o amor não quer estar em nenhum lugar a não ser ali onde existe igualdade. Uma mulher e um homem são desiguais; no amor, porém, eles são totalmente iguais. Por isso a Escritura diz muito bem que Deus fez a mulher de uma costela, tirando-a do lado do homem, e não da cabeça ou dos pés” (Sermão 27). A partir desta identidade e igualdade essenciais é que as suas diferenças são acolhidas como riquezas que se compõem numa unidade: “Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe para ligar-se à sua mulher, e se torna uma só carne” (Gn 2, 24). Com esta união, cria-se um lar, uma família, uma fraternidade. Neste lar, estabelece-se, então, a difícil tensão e o difícil equilíbrio da vida, em que as diferenças precisam ser sempre acolhidas na identidade e na igualdade, e a pluralidade na unidade do amor.
O amor é o que constitui a unidade dos diversos, a identidade dos diferentes, a igualdade dos desiguais. Assim, a mulher é o primeiro outro do homem, mas um outro que é, na essência, o mesmo, isto é, a mesma natureza, a mesma essência: “o osso dos meus ossos e a carne da minha carne”. Assim, homem e mulher se encontram não como simples macho e fêmea, mas como pessoas, no face-a-face. O desafio é que se encontrem o homem humano e a mulher humana, como companheiros na viagem, que é a experiência da vida. Assim caminharam Maria e José, como companheiros, homem humano e mulher humana. A encarnação de Cristo veio nos ensinar isto – a sermos homens humanos e mulheres humanas.
“No Senhor”, os cônjuges cristãos têm a graça de serem companheiro e companheira um para o outro. “No Senhor”, isto é, no amor, cada um se inclina reverente para o outro e se põe a seu serviço, humildemente, como Jesus Cristo, no lava-pés. Nesta dinâmica, não há nada de indignidade no fato de que a mulher se ponha como um suporte, uma ajuda, para o homem e que o homem se ponha como servidor de sua mulher. O mútuo serviço no amor nasce da humildade, neste caso, não da subjugação de um pelo outro. Assim também, pais servem aos filhos e filhos servem aos pais.
Em Cristo, o poder sofre uma guinada: vira serviço. Por isso, “no Senhor”, marido serve à esposa, pais servem aos filhos, como Cristo, pela Encarnação, assumiu a forma de servo e deu, como lição da última ceia e da cruz, o exemplo do lava-pés. Na Cruz, o Esposo, Cristo, deu a vida à sua esposa, a Igreja, (nova humanidade), que nasceu de seu lado ferido pela lança, como nova Eva (Vida) que procede do novo Adão (Humano). Assim, o “como Eu vos amei, amai-vos uns aos outros” se põe como lei régia do matrimônio e da família que compartilha a vida comum “no Senhor”.
- Um Menino misterioso
Sempre é muito difícil falar e comunicar realidades que nos transcendem. Lucas precisava mostrar desde logo que Jesus é um Menino misterioso, vindo de Deus e que precisava ocupar-se com as coisas do Pai; que sua sabedoria não procede do mundo, muito menos dos mestres desta terra. Ora, nada melhor para revelar este mistério do que relembrar o que aconteceu quando o Menino, com doze anos, sem nenhum aviso ou comunicação, desprendeu-se da comitiva ficando no templo, deixando os pais apreensivos, pois o deram como perdido.
- O senhor do templo vai ao templo
É a terceira vez que Lucas, em seu Evangelho, faz referência ao templo. Nas duas anteriores foi quando o anjo apareceu a Zacarias (Lc 1,8-22) e quando os pais levaram o menino para a apresentação e circuncisão. Em todas elas Jesus foi levado. Mas, nesta há uma grande diferença porque no final da visita decide permanecer em Jerusalém e no templo. Assim, desde sua infância Jesus está orientando sua vida para Jerusalém onde mais tarde consumará sua doação, seu sacrifício e partir do qual e de onde será proclamada a Boa nova da ressurreição e do perdão, para todos os povos.
“Os seus pais iam cada ano a Jerusalém para a festa da Páscoa” (Lc 2, 41). A Lei previa três peregrinações por ano: na festa dos ázimos, isto é, dos pães sem fermento, por ocasião da celebração da Páscoa, isto é, da libertação e do êxodo do Egito; na festa da Ceifa (dos cereais) ou das Semanas (ou de Pentecostes), em que se celebrava o dom da Torah (o ensinamento ou a lei divina) e na festa da Colheita, no outono, que se tornou a festa das Tendas, para celebrar a travessia da libertação (Ex 23, 14-17; 34, 22-23; Dt 16, 16). “Três vezes por ano, todos os homens, virão ver a face daquele que é o Dono, o Senhor, o Deus de Israel”, diz o livro do Êxodo (34, 23). “Ninguém irá ver a face do Senhor mãos vazias: cada qual fará uma oferenda com as próprias mãos, segundo a bênção que o Senhor, teu Deus, te deu” (Dt 16b-17), diz o livro do Deuteronômio. Em vez de “ver a face do Senhor”, o texto original diz: “ser visto em face do Senhor”, isto é, estar a seu conspecto. Jesus Cristo, nascido homem entre os homens, humildemente, se submete à Lei que foi dada a Israel, e vem ao conspecto de Deus para oferecer sacrifícios e orações. Como sinal de sua humildade, age como um simples ser humano.
“Quando ele fez doze anos, tendo ele subido para lá segundo o costume da festa, e quando no fim dos dias de festa eles voltaram, o menino Jesus ficou em Jerusalém sem que os seus pais se apercebessem” (Lc 2, 42-43).
Os doze anos assinalavam, no judaísmo, a idade da maturidade religiosa do menino. Para os gregos, era a idade em que se despertava a luz da razão no homem. Por isso, este episódio deve manifestar a sabedoria do menino. O texto do evangelho tinha acabado de dizer: “Quanto ao menino, ele crescia e se fortalecia, cheio de sabedoria, e o favor de Deus estava com ele” (Lc 2, 40). Agora se diz que este crescimento na sabedoria e na graça ao conspecto de Deus tinha chegado a uma maturação e devia se manifestar aos homens. Os padres da Igreja leem o significado do número doze no sentido de perfeição, como também assim leem o significado do número sete[2]. O doze, assim como o sete, expressa a universalidade e a perfeição das coisas e dos tempos (S. Basílio). Nesta linha, São Beda interpreta o número doze como o começo do brilhar da luz divina de Cristo em sua perfeição nos tempos. A luz de Cristo, que devia plenificar todos os tempos e todos os lugares, começa, pois, a brilhar, aos doze anos. Para levar a luz da Boa Nova a todos os lugares foram escolhidos doze mensageiros (os “Apóstolos), que foram enviados aos povos.
- Um menino perdido mas encontrado
Ao cabo dos sete dias da festa, quando os seus pais retornam para casa, ele permanece ocultamente em Jerusalém. Consta que, nas peregrinações, homens e mulheres iam em comitivas separadas, e as crianças podiam ir ou com a mãe ou com o pai. Isso possibilitou que Jesus ficasse em Jerusalém sem que nem Maria nem José se desse conta disso. “Pensando que ele estivesse com os companheiros de viagem, fizeram uma jornada de caminho antes de o procurar entre os parentes e conhecidos. Não o tendo encontrado, voltaram a Jerusalém à sua procura. Foi no fim de três dias que o encontraram no Templo, sentado em meio aos mestres, ouvindo-os e interrogando-os” (Lc 2, 44-46). No primeiro dia, se distanciam de Jerusalém. No segundo dia, o procuram entre parentes e conhecidos. No terceiro dia, em Jerusalém. Os três dias de procura remetem, na leitura dos Padres da Igreja, também, ao futuro deste Menino. São um sinal, um prenúncio, dos três dias de sua paixão triunfante (S. Ambrósio). Podemos haurir deste fato também outra indicação importante para a nossa própria busca de Jesus Cristo: onde devemos encontrá-lo – no Templo de Deus. Cristo não pode ser encontrado entre parentes, pois não são os laços da carne que nos unem a ele; nem entre os conhecidos, pois nenhuma ciência humana é capaz de conhecê-lo; nem entre a multidão, pois deve se destacar da massa aquele que busca Cristo. Então, onde o encontrar? Resposta: no Templo de Deus, na Igreja, no coração de cada criatura (cf. Orígenes).
Jesus é encontrado entre os mestres, ouvindo-os e interrogando-os. Os mestres da Lei ensinavam nos átrios do Templo, como mais tarde fará o próprio Jesus. O ensinamento deles tinha, muitas vezes, a forma de diálogo. Das intervenções de Jesus se diz que “Todos os que o ouviam se extasiavam com a inteligência e com as suas respostas” (Lc 2, 47). O ouvir e perguntar é próprio do discípulo, do aprendiz, do aluno. Sem um longo tirocínio de escuta e de perguntas o homem não chega a nenhuma sabedoria. Eis a humanidade e a humildade do Menino. Por isso, Jesus aparece “sentado no meio dos mestres”. A sua inteligência e as suas respostas, porém, indicavam algo de uma sabedoria escondida, dádiva divina. Esta inteligência, que se manifestava também nas perguntas, e não só nas respostas, davam indício desta sabedoria divina. Era como se o menino, o aprendiz, revelasse o Mestre em si. Suas perguntas mesmas ensinavam, não só as suas respostas. Saber perguntar e saber responder nascem de uma mesma fonte. O povo intuía que ali as perguntas e as respostas nasciam de uma fonte divina. Os presentes oscilavam entre a sublimidade do que ouviam e a humildade do que viam. Eis porque ficavam maravilhados.
“Vendo-o, eles ficaram tomados de grande surpresa e a sua mãe disse: ‘Meu filho, por que agiste assim conosco? Vê, o teu pai e eu, nós te procuramos cheios de angústia” (Lc 2, 48). As palavras de Maria manifestam seu amor entranhado, visceral, de mãe, que se angustia, se aflige, com a perda do filho. Manifestam também sua humildade, ternura e confiança no filho. Ela chama de pai a José, o qual, embora não o tivesse gerado, era seu cuidador, protetor, educador.
A busca de Maria e de José por Jesus de algum modo também ilumina a nossa busca. Muitas vezes a dor da ausência divina, de seu escondimento, nos atinge. Muitas vezes não estamos à altura de compreender sua Palavra. Ainda não somos capazes para isso. Mas é preciso insistir, persistir, na busca… até que o encontro se dê e, com ele, uma nova compreensão do mistério de Cristo nasça em nós.
“Ele lhes disse: ‘por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devo estar junto do meu Pai?’” (Lc 2, 49). Aqui o menino Jesus chama de Pai o próprio Deus, ao qual está dedicado o templo. A resposta de Jesus vem na forma de pergunta: “por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devo estar junto do meu Pai?”. Estas últimas palavras – eu devo estar no meio das coisas de meu pai (no grego: en tois tou patrós mou dei einai me), trazem um mistério. Jesus devia se interessar pelas coisas de Deus, seu Pai. Devia, assim, estar junto do Pai, na sua casa, na sua morada, no seu templo. As coisas com as quais o Pai se ocupa são as coisas com as quais ele se ocupa. Nestas palavras soam e ressoam algo de sua filiação divina. “Mas eles não compreenderam o que lhes dizia” (Lc 2, 50). O mistério da filiação divina de Jesus ultrapassava a capacidade de compreensão até mesmo daqueles que eram os mais íntimos dele e os mais abertos à palavra de Deus. Maria e José podiam apenas entreler, entrever, vislumbrar este mistério. Não podiam, ainda, contê-lo e reuni-lo na força de sua inteligência. Isso se dará apenas com sua morte e ressurreição. Assim é também conosco. Não somos capazes de compreender este mistério. Ele só será compreensível à media em que participarmos do mistério pascal de sua morte e ressurreição. Assim, Ele é que nos compreende, nos envolve, nos retém e contém em seu domínio, em seu vigor.
- Sua mãe guardava todos esses acontecimentos em seu coração
As palavras seguintes, porém, remetem, de novo, para a sua humanidade e humildade: “Depois ele desceu com eles para Nazaré; era-lhes submisso; e a sua mãe guardava todos esses acontecimentos em seu coração” (Lc 2, 51). O maior se submete, aqui, ao menor. Jesus honra a José como a um pai e educador. Submete-se à vida de trabalho de seus pais. Assume a condição de filho de artesão, de carpinteiro. Aprende a trabalhar com as mãos, exerce um ofício. Nisso vemos sua humildade e sua pobreza. Pobreza, aqui, não é carência, mas a dinâmica da terra na vida dos homens. Admirável encarnação: o Filho de Deus torna-se filho do homem e entra nos limites da condição humana, familiar e social, do trabalho, do cotidiano. Ali encontra a sua escola de vida. Toda esta finitude se torna bendita, agraciada, santa, pelo mistério da encarnação. “…E a sua mãe guardava todos esses acontecimentos (tà rhémata) em seu coração” (Lc 2, 51b). A mesma atitude de Maria nós vemos por ocasião de uma estadia junto a Isabel e do nascimento de João Batista (Lc 1, 66) e por ocasião da visita dos pastores ao Menino (Lc 2, 19). Ela retém no seu âmago as palavras, os acontecimentos (o grego “tà rhémata” significa ambas as coisas). Ela procura entreler no livro da vida, buscando o sentido de tudo o que acontece, de tudo o que se deixa ver, ouvir e experienciar. Maria também tem a disposição e a atitude fundamental de discípulo. Ela se torna aprendiz, aluna, de seu filho. Aprendeu com tudo o que ele disse e fez. Meditava suas palavras e suas ações, deixando-se ensinar por elas. São palavras e ações da Palavra que ela ouviu e que ela concebeu em seu útero – da Palavra encarnada, do Deus humano. Assim era no começo. Assim foi até o fim – até a Cruz e o seu retorno para o Pai. Os filhos, normalmente, educam os pais. Com Maria e José não foi diferente. Mas neste Menino misterioso encontraram um Mestre escondido em forma de aprendiz, cuja luz era intensa, embora contida na fragilidade de um menino, de um jovem, etc.
3.4. Jesus crescia em sabedoria, idade e graça
“Jesus progredia em sabedoria e em estatura, e em graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52). De novo vemos a humanidade de Jesus. O evangelho de hoje oscila entre ambos os aspectos de sua pessoa: sua humanidade e sua divindade. Também a convivência de Maria e José com Jesus oscilava, certamente, entre ambos os polos de sua presença e de seu mistério pessoal. Jesus progredia na sabedoria e na graça enquanto homem que era. Em sua natureza humana ia sendo ensinado pelo Pai. Assumia, assim, a condição de discípulo de Deus. E nele se manifestava o que disse o profeta: “sobre ele repousará o espírito do Senhor, espírito de sabedoria e de inteligência…” (Is 11, 2). À medida que a humanidade crescia nele, ia se dispondo a e se preparando para manifestar também a plenitude de sua filiação divina diante dos homens.
Conclusão
O Papa Francisco, bem no princípio do primeiro capítulo de sua Exortação apostólica Amoris Laetitia, sobre o amor na família, faz questão de assinalar que “A Bíblia, em suas inúmeras páginas, vem recheada de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a família de Adão e Eva, com o seu peso de violência, mas também com a força da vida que continua (Cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem as núpcias da Esposa e do Cordeiro” (Cf. Ap 21, 2.9) (Amoris Laetitia – AL -, 8).
Seja de que tamanho, origem, status ou forma for, “no centro, de toda família, encontramos o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher?» (Mt 19, 4). E retoma o mandato do livro do Génesis: «Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24) (AL 9). Por isso, “o casal que ama e gera a vida é a verdadeira «escultura» viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e salvador” (AL 11).
Que a graça do estado laical, ajude pai, mãe e filhos a serem “cristãos leigos e leigas, sal da Terra e luz do Mundo”; que saibam que a “ALEGRIA DO AMOR” que vivem nas famílias é também o júbilo da Igreja; que apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio, «o desejo de família permanece vivo, especialmente entre os jovens; que «o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente uma boa notícia» (AL 1).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm
[1] “Sermão da cela para um casamento”. Em: Resistência e Submissão, p. 39 ss.
[2] Assim como sete é a soma de três e quatro, doze é o resultado da multiplicação de três e quatro. Na aritmologia de Agostinho, por exemplo, o um e o dois são os princípios da numeração. O ternário (três) indica uma certa perfeição, pois indica a dinâmica de começo, meio e fim; também o quaternário (quatro), que igual a 1 + 2 + 1, isto é, uma combinação harmoniosa dos dois princípios de numeração. O quatro expõe, ainda, a harmonia e a concórdia entre os primeiros três números. O quatro é a soma dos extremos (1+3) e o dobro do meio (2+2). Estes quatro números iniciais, somados, dão a década (1+2+3+4=10), que expressa a progressão perfeita dos primeiros números. Se o sete é a soma dos dois números perfeitos (3 + 4), o doze é o produto da multiplicação dos mesmos (3 x4).