Natividade do Senhor – Missa da Noite

Natividade do Senhor – Missa da Noite

2018                             

Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da Palavra: Is 9, 1-6; Sl 95 (96), 1-2a.2b-3.11-12.13 (R. Lc 2,11); Tt 2, 11-14; Lc 2, 1-14

TemaMensagem: Acolhendo o Menino que o Pai nos dá de presente também nós temos a graça de tornar-nos meninos-Deus.

Sentimento: alegria e gratidão

Rito: Beijo do Menino Jesus

Introdução:

Hoje celebramos de novo o Nascimento todo especial, inaudito do nosso Deus que, além de ser Deus, quis fazer-se também um de nós como “Menino de Belém”. É a Boa Nova, o “Euangelion”, a alegre Mensagem que os mensageiros celestes, anunciam aos pastores: “Não temais, porque vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é Cristo Senhor” (Lc 2,11).

 

  1. A longínqua promessa de um Menino que será o príncipe da Paz

Quem faz a abertura da celebração do mistério desta noite santa é o profeta que melhor previu as origens do futuro Messias: Isaias.

  • Em meio à escuridão da ruína da guerra e das injustiças dos opressores a esperança de uma luz

Como o toar da corneta da paz, Isaias, na perícope desta missa, falando do passado, mas em vista do futuro, anuncia: “O povo que andava na escuridão, viu uma grande luz, para os que habitavam na sombra da morte, uma luz resplendeceu” (Is 9,1).

Um pouco antes, no capítulo anterior, verso 23, Isaias já havia proclamado que estava para chegar o tempo em que “não haverá mais escuridão”. Esta fala não expressa tanto expectativas humanas, mas esperança, uma esperança posta em Deus, melhor, no seu Cristo (Ungido). A terra devastada e desolada, entregue à escuridão da escravidão, vê a luz: a libertação que vem de Deus. As tribos do norte (o lugar da meia-noite) serão as primeiras a ver a luz. Mais tarde, na Galileia das Nações, esta luz atenderá pelo nome de Jesus de Nazaré. Ele veio para ser a luz da libertação e da paz, não só para o povo de Israel, mas para todas as nações, para todos povos e tribos da terra, de todas as línguas.

  • Um menino: o príncipe da Paz

A segunda parte do texto começa dando a razão, a causa deste auspicioso anúncio: “Porque nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho, ele traz a paz nos ombros…”. Isaias nada diz acerca da origem deste menino. Diz apenas que nasceu para nós… um menino misterioso: “o nome que lhe foi dado é: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros e Príncipe da paz”.

Quádruplo nome tem este menino. O Nome que foi revelado a Moisés na sarça ardente na montanha sagrada, IHWH (Iahweh), Eu sou aquele que sou, nome único, singular, garantia de presença e ação libertadora na vida do povo de Israel, agora ressoa de modo multifário, quádruplo: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros e Príncipe da paz. O Menino divino ou o Deus menino trará estes títulos. Quem quer discernir os caminhos da justiça encontrará nele o Conselheiro admirável. Os fracos encontrarão nele a força, o vigor divino, pois ele é o Deus forte. Nele a história celebrará o encontro do tempo com a eternidade: o Pai dos tempos futuros. Ele será o princípio e o regente de novos tempos, que trarão a tranquilidade que vem da ordem justa, pois ele é o Príncipe da paz.

Temos aqui, nesta densa coleção de títulos o resumo da perfeição de um governante, a síntese do futuro reino messiânico com as virtudes dos principais heróis de Israel. No “conselheiro admirável” a sabedoria de Salomão, no “Deus forte” a coragem de Davi, no “Pai dos tempos futuros” a piedade de Moisés e dos patriarcas. Por isso, este menino só poderá ser o verdadeiro Emanuel.

 

  1. Uma Igreja de todos e para todos

A segunda leitura da missa desta noite é tirada da Carta de São Paulo a Tito e começa com este belo anúncio, um verdadeiro evangelho: “A graça de Deus se manifestou trazendo salvação para todos os homens”.

Neste primeiro anúncio encontramos o verdadeiro sentido do Natal, da vinda de Cristo: a manifestação da graça de Deus como salvação para todos. É muito comum e forte em Paulo a luta contra a tentação de formar comunidades homogêneas, só de puros ou só de judeus ou só de gentios. Antes de uma seita a Igreja deve ser um espaço comum para todos os contrários; um espaço no qual todos possam encontrar um lugar e pôr-se em confronto, não para um derrubar ou vencer o outro, mas para juntos, na diferença e no vigor dos contrários lutar pela união de todos os homens pela qual os cristãos aspiram e devem fazer-se fermento, sal e luz. Longe de Paulo uma igreja de santos ao lado de outra de pecadores, de judeus ao lado de outra de gregos,  de senhores ao lado de outra de escravos, etc.

O Natal, portanto, diz respeito a todos os homens e a toda a criação como um todo, uma única família, uma casa comum (Cf. “Laudato Si”, do Papa Francisco). Ou seja, a partir dessa iniciativa de Deus, o homem e mesmo as criaturas todas são criadas de novo, agora, a partir do alto, do espírito, da graça misericordiosa de Deus. Pois, Ele se entregou por nós para nos resgatar de toda maldade e purificar para si um povo que lhe pertença e que se dedique a praticar o bem (Tt 2, 11). É o mistério da misericórdia (Tito 3, 5), isto é, do amor visceral, entranhado, de Deus pelos humanos. Por isso, hoje ouvimos a leitura da Epístola de Paulo a Tito, que diz: “Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens” (2, 11).

Desde o advento de Jesus Cristo na carne de nossa humanidade, toda a história humana aparece envolvida na história da salvação divina.  A sua obra de salvação é obra do amor gratuito e gracioso de Deus pelos homens, fruto da benevolência (cháris) do Pai. Jesus Cristo, o Ungido pelo Espírito Santo, é o “Euangelion”, a Boa Notícia desta benevolência, o rosto da misericórdia (MV), do amor entranhado, visceral, terno e apaixonado, de Deus Pai pelos humanos.

Como devotado pastor, Paulo não deixa de traçar normas, até mesmo um verdadeiro programa de um discipulado cristão, ou seja, como o cristão deve orientar-se na vida diária deste mundo:

– abandonar a impiedade e as paixões deste mundo, isto é viver a justiça e a piedade;

– viver com equilíbrio, justiça e piedade;

– esperar, confiar, sempre, no nosso grande Deus, entregando-se inteiramente ao Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Porém, mais que diante de uma moral, uma doutrina do comportamento, estamos diante de uma conduta que nasce de um novo relacionamento do homem com Deus; um Deus que fez de nossa carne sua carne, de nossa habitação a sua habitação. Trata-se, pois, da repercussão da percussão da experiência do encontro com o Deus encarnado. Aquele que recebe Jesus Cristo, a manifestação da gratuidade e graciosidade de Deus, vive como homem novo em novidade de vida. Ele renasce na vida nova que Jesus Cristo veio revelar aos homens.

Por isso, dentro desta mensagem de uma salvação para todos os homens, o salmista convida todos os povos à uma exultação festiva universal, católica, isto é, cósmica e ecumênica: “Alegrem-se os céus, exulte a terra, ressoe o mar e tudo o que ele contém, exultem os campos e quanto neles existe, alegrem-se as árvores das florestas […] “Anunciai dia a dia a sua salvação, publicai entre as nações a sua glória, em todos os povos as suas maravilhas” (Sl 95).

 

  1. Um novo Homem no humano de toda a humanidade

Quem tem a honra de nesta noite santa, nesta missa, fazer o maior anúncio da história é o evangelista Lucas, um gentio que se converteu pelo encontro com a grandeza deste mistério através das comunidades cristãs e principalmente de Paulo e de outros apóstolos. A partir da tradição concernente às coisas que se cumpriram, isto é, que foram levadas à consumação, à plenitude, ele se propõe escrever um “evangelho”, isto é, um anúncio da alegria da salvação que se revelou em Jesus Cristo.

A perícope evangélica desta noite se ordena em três momentos sucessivos, mas intimamente unidos e ligados pela mesma lógica: testemunhar que Deus vem do alto, sim, mas irrompendo de dentro das entranhas do humano: o seio da virgem Maria.

  • Nos dias e no meio da história dos homens

Lucas começa por assinalar o tempo da redenção. O referencial é o censo de Quirino, governador da Síria (c. 6 a. C.). Deste recenseamento dá notícia também o mais importante historiador judeu da antiguidade, Flávio Josefo, ao relatar o movimento de revolta de Judas, o Galileu, também recordado pelo rabi Gamaliel, nos Atos dos Apóstolos (5, 37). É o tempo de César Augusto (imperador de 29 a.C. a 14 d.C.). Este mandara recensear várias províncias do império. Toda a oikoumene, a terra habitada em torno do mar mediterrâneo, ficara sob seu poder. Estabelece-se assim um império universal sob o jugo da pax romana. Mas, a paz do César é apenas a ausência de guerras, devido à impotência dos povos subjugados para combaterem este império. O censo é um sinal de conquista e de apoderamento. Os habitantes são contados – isto é, são subjugados.

O império universal e a paz romana de César Augusto, porém, são apenas o simulacro do verdadeiro reino universal, ecumênico: o Reino de Deus; e da verdadeira paz: a do seu Cristo. Jesus nasce para conduzir o gênero humano à paz no reino universal do seu Pai. “Ele é a nossa paz; ele que fez dos dois povos [judeus e gentios] um só” (Ef. 2, 14). A dinâmica, porém, de seu reino, não é a da conquista e do apoderamento, a qual impera até hoje no modo de ser e viver e governar dos povos da terra.

Conquistar e apoderar e contar são os verbos que movem a história humana, sobretudo nos últimos tempos, da modernidade. Mas os verbos que Jesus Cristo veio ensinar os homens a conjugar, como sendo os verbos primordiais da história humana são outros: crer e amar. Todos os que creem e amam são inscritos no seu Reino e são santificados por ele e conhecem a sua Paz – a verdadeira e derradeira paz. “Grande é o seu senhorio e a paz não terá fim” (Is 9, 6). Mas aqueles que são inscritos no seu Reino, cujos nomes estão escritos no céu, vivem nesta paz em meio a apertos, combates, tribulações e perseguições, até que esta paz faça dissipar as guerras e as aparentes pazes firmadas sobre a dinâmica da conquista e do apoderamento humanos.

José e Maria voltam, por ocasião do censo, de Nazaré, da Galileia, a Belém, da Judeia, “cidade de Davi”. Retornam ao torrão natal da tribo de Judá, à qual ambos pertenciam. No Antigo Testamento, a “cidade de Davi” é Jerusalém. Mas o Evangelho chama de “cidade de Davi” a cidade da qual o jovem pastor, filho de Jessé, ungido rei de Israel, saiu, a cidade onde ele teve suas humildes origens. Cumpria-se assim o oráculo anunciado pela boca do profeta Miquéias, que situava a origem do príncipe messiânico em Belém: “E tu, Bet-Lehem Efrata, pequena demais para ser contada entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que deve governar Israel. Remontam à antiguidade suas origens, aos dias de antanho. Por isso, Deus os abandonará até o tempo em que dará à luz aquela que deve dar à luz” (Mq 5, 1-2). O nascimento de Jesus, assim, se dá envolvido em mistério, vinculado carnalmente à tribo de Judá, mais precisamente, à ascendência davídica (cf. Mt 1, 2; Lc 3, 33; Hb 7, 14; Ap 5,5; etc.).

O nome “Belém” (Bet-Lehem) significa “casa do pão”. De fato, ali aquele que é o Pão descido do céu, o Pão que dá a vida ao mundo, o Pão da vida eterna, se nos deu, nascendo na humildade de nossa carne. Ele veio nos nutrir para nos dar a vida eterna. Somos belemitas quando o recebemos na fé. Mais ainda, diz são Beda, somos como a mãe de Jesus, quando vivemos na fé de Cristo: “Até hoje e até a consumação do mundo não deixa o Senhor de ser concebido em Nazaré e de nascer em Belém, quando quem o escuta, acolhendo a flor de sua palavra, se constrói uma casa do pão eterno. Diariamente, no seio virginal, isto é, na alma dos crentes, se concebe pela fé [a Cristo] e se lhe dá à luz pelo batismo”. 

  • O Senhor do universo reclinado na pobreza de uma manjedoura

A sobriedade com que Lucas faz a narrativa do Nascimento de Jesus é surpreendente: “Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz seu filho primogênito. Ela envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala de hóspede” (Lc 2, 7). Os grandes mistérios, mais que amplas explanações ou extensas narrativas e discursos precisam do silêncio de poucas palavras para deixar lugar e espaço para a admiração e a contemplação.

O título de primogênito, remete, certamente a exigências de observância da lei mosaica (Ex 13, 2.12.15; Lc 2, 23). Mas também traz uma sonância e ressonância de mistério. Na meditação de Paulo, Cristo aparece destinado a ser “o primogênito de uma multidão de irmãos” (Rm 8, 29). Jesus Cristo não nasce de uma semente de varão. Ele, a primícia de tudo, o segundo Adão, nasce do Espírito, a fim de nos comunicar a graça do Verbo, da semente de Deus. Nós que recebemos esta graça que nele e com ele se nos manifestou também passamos a ser mais do que filhos dos homens, passamos a ser filhos de Deus. O seu nascimento nos obtém um novo nascimento. Ele é, assim, as primícias da nova criação, do homem novo, da nova humanidade: o “primeiro entre todos” (Cl. 1, 18). Belém abriu o Éden. O nascimento de Jesus Cristo abre-nos as portas do paraíso. Ali jorrou para nós a fonte da graça que sacia nossa sede de Deus. O primogênito de toda a criatura, o primogênito da graça, ali nasceu. E nós, vindo a ele, encontramos a fonte da vida eterna.

Assim, o primogênito de Maria (Lc 2, 7) torna-se também o primogênito de todas as criaturas (Cl 1, 15), isto é, o sentido e o fundamento do ser de toda a criação. Ele é, como dizia o teólogo franciscano João Duns Scotus, o “summum opus Dei” (a suma obra de Deus).  Ora, o responsável pela suma obra, pela obra perfeita de Deus, dizia ele, não pode ser o pecado, que é um defeito da criatura, mas só pode ser o amor absolutamente livre e gratuito, superabundante, sem porque nem para quê, de Deus: o mistério da “Cháris”: da graça, quer dizer, do favor livre, imerecido e indevido, da benevolência, da gratuidade e da graciosidade do Deus Amor.

Maria o enfaixa. Jesus Cristo é envolvido em faixas, para que nós possamos ser desatados dos laços da morte (S. Ambrósio). Se humilhou para que pudéssemos alcançar o bem, a integridade, como seres humanos. “Ele, sendo rico, se fez pobre por vós, a fim de que sua pobreza vos enriqueça”, disse o Apóstolo (2 Cor. 8, 9). O Menino Deus apresenta-se, pois, envolvido de rudes panos, não de púrpura. Não se reclina numa cama de ouro, mas num coxo, num estábulo, cercado do esterco dos animais. Revestiu-se de humildade, de mortalidade, de pobreza. Mostra, assim, o caminho da pobreza e da humildade, como um caminho régio e divino. Atado pelas faixas, nos mostra o desapego, que nos desprende de tudo, dando-nos a suprema liberdade. Os panos que envolvem o corpo do menino no estábulo rementem, de algum modo, também, para os panos que envolvem o corpo do homem morto na cruz, na sepultura. Não à toa que o estábulo do Natal passou a ser representado pela arte cristã como uma gruta. Deste modo, na gruta, no oco escuro da terra, se dá o nascimento do Menino e a ressurreição do Crucificado. Cristo revestiu-se de nossa mortalidade, para revestir-nos de sua imortalidade.

O Filho de Deus nasce em verdadeira carne. Não se trata de uma aparência. É mais que toda teofania. É o verdadeiro Deus nascendo em verdadeira carne humana. É colocado em um coxo. Estava, pois, destinado a ser alimento, pão do céu, corpo da vida (S. Cirilo de Alexandria). Nasce no meio do esterco dos animais, num estábulo, não no “santo dos santos”, no templo de Jerusalém. Nasce no meio do esterco aquele que “ergue do esterco o pobre” (Sl 113, 7), recorda São Jerônimo.

“… Não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2, 7). A Luz do céu posta à margem numa pousada terrena. Achou apenas um lugarzinho nos fundos da pensão. O Senhor do universo, mal tem onde nascer. A verdade se acha velada entre os homens. Deus absconditus (Deus escondido). Revelado aos pequeninos, aos simples. “Não acha lugar em Platão nem em Aristóteles, mas num presépio, entre jumentos e animais irracionais, entre os simples e inocentes”, diz São Jerônimo. É na fraqueza da criança e na loucura da cruz que Deus se nos revela. Se mal encontrou lugar onde nascer, não terá, adulto, onde reclinar a cabeça (Lc 9, 38). E, no entanto, assim, ele nos prepara uma morada junto de Deus (Jo 14, 2). Nasce a caminho, pois, assim se tornaria para nós o caminho para chegarmos à pátria onde a verdade está descoberta e a vida é plena.

O contraste acerca da acolhida do Menino – de Deus na terra dos homens, que é a terra Dele – na cidade e na gruta de Belém é gritante: enquanto entre os grandes do mundo, os moradores da cidade de Belém, “não havia lugar para eles”, Ele encontra uma dócil, calorosa e amorosa acolhida por parte da mãe, a humilde virgem Maria “que o enfaixou e colocou na manjedoura” e os animais que habitavam aquele cenário.

Tudo isso constitui o mistério da pobreza que mais tarde comoverá e apaixonará São Francisco. O livreto intitulado “Sacrum Commercium” contempla a dignidade dessa Pobreza. A união pessoal do Filho de Deus com a nossa natureza humana é recordada, então, como núpcias de Deus conosco (SC n. 6). A Pobreza é exaltada e homenageada como “esposa fidelíssima de Cristo”, que esteve com ele, do ventre da Virgem Mãe e do Presépio até a Cruz. A “Senhora Pobreza” aparece, então, como o Amor-Misericórdia, que foi “revelado em pessoa no modo de ser de Jesus Cristo, pobre e humilde” (Fontes Franciscanas, Mensageiro de Santo Antônio, p. 869). “Ela é benigna, silenciosa e imensa, como o Céu e a Terra; ela abraça cuidadosa e benignamente a caminhada da passagem íngreme e estreita, cheia de perigos e aventuras, do Encontro de Amor da nossa finitude mortal com o Amor que nos amou primeiro. Amor infinito que se faz finito, recolhido, ocultando-se na gruta da Senhora Pobreza, como o Natal de um Novo Céu e Nova Terra” (Fontes Franciscanas, 869-870).

Dizia Mestre Eckhart que, se um rei se casa com uma plebeia, toda a sua família se torna nobre. Nós, isto é, toda a família humana, fomos enobrecidos e enriquecidos pela pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

  • A alegria deste nascimento se expande, difunde e infunde

A última parte deste evangelho, mais extensa que as duas primeiras, é destinada a mostrar o verdadeiro objetivo de todo este evento: “Nas proximidades havia pastores que estavam nos campos e que durante a noite cuidavam dos seus rebanhos.  E aconteceu que um anjo do Senhor apareceu a eles e a glória do Senhor reluzindo os envolveu; e todos ficaram tomados de um frêmito de temor e tremor. Todavia o anjo lhes revelou: “Não temais; eis que vos trago boas notícias de grande alegria, e que são para todas as pessoas: ‘Hoje nasceu para vós um Salvador que é o Cristo Senhor” (Lc 2, 10-11).

Anjos, mensageiros divinos, também participam do acontecimento da natividade de Jesus. Os imortais vêm ao encontro dos mortais. Os mensageiros divinos são portadores da jovialidade da graça. Um anjo anuncia a Maria. Um anjo instrui a José. Um anjo proclama aos pastores o alegre anúncio do nascimento do Menino Deus. O anúncio da boa nova soa: “Nasceu-vos, hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é o Cristo Senhor; e eis que um sinal vos é dado: achareis um recém-nascido envolto em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2, 11-12). Frente ao mistério da encarnação todos somos rudes pastores. Frente à delicadeza e nobreza do amor divino toda nossa resposta e correspondência aparece rude e vil. Deus não despreza nossa rudeza e vileza, e vem habitar entre nós. O Bom Pastor nos ensina a sermos pastores. Ele revela a nossa vocação humana: sermos pastores, isto é, cuidadores de tudo o que é, de tudo o que vive, de todo o real, de todas as realizações, de toda a realidade.

O anjo diz: “nasceu-vos, hoje…” Assim, “anunciava a boa notícia do nascimento de um novo dia” (S. Beda). Aquele que nasceu era “luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”. Ilumina, assim, os que habitavam na região e na sombra da morte (Is 9, 2). A noite da antiga cegueira passou e o dia da eterna salvação raiou. Deixemos, pois, as obras das trevas, as obra mortas do pecado (cf. Rm 13, 12). Caminhemos como filhos da luz: não na ignorância, mas na verdade evangélica; não nos vícios, mas nas virtudes, pois “o fruto da luz se manifesta em toda bondade, justiça e verdade” (Ef 5, 9).

“De repente, apareceu uma multidão da milícia  celeste que cantava os louvores de Deus e dizia: ‘Glória a Deus no mais alto dos céus e sobre a terra paz para os seus bem-amados’”…

“… Ao introduzir o primogênito no mundo, Ele diz: ‘E prostrem-se diante dele todos os anjos de Deus’” (Hb 1, 6). Entre eles resplandece a glória divina dessa criança, deste filho de homem. Cristo veio para reunir os do alto e os de baixo, os do céu e os da terra. É o Bom Pastor de todos, anjos e homens, imortais e mortais. Aos imortais concede o brilho de seu ser – ele que é o resplendor da glória do Pai e a imagem (irradiação, emanação) do seu ser (Hb 1, 3). Glória a Deus nas alturas, onde tudo é harmonia. E paz na terra para os homens, onde tudo é constante divisão, conflito, guerra. Mas quem receber este Príncipe da paz terá a paz em seu coração. Participará do seu reino de paz. O nascimento de Jesus une céu e terra, imortais e mortais. Deus desce à terra e o homem é, assim, elevado ao céu. O invisível se fez visível. O desacordo entre o visível e o invisível, entre os mortais e os imortais, pode, agora ser superado. A antiga discórdia entre ambos agora se desfaz. Os querubins que foram postados, com a chama da espada fulminante, como guardas do caminho da árvore da vida, se apaziguam com os homens, pois o nascimento do Filho de Deus em carne humana franqueou-nos a entrada no Éden (cf. Gn 3, 24). Desde então nós, frágeis criaturas carnais, nos tornamos seus companheiros e concidadãos no Reino dos Céus. Assim, por meio de Jesus Cristo, de seu nascimento na nossa carne e de sua paixão na cruz, se dá a reconciliação de terra e céus (cf. Cl. 1, 20). O céu e a terra são unidos no nascimento de Jesus. Acontece a paz entre Deus e homens, entre homens e anjos. Céu e terra se fundem num abraço de paz.

Os pastores fizeram o que o anjo lhes propusera. Foram apressadamente a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura. “Depois de ter visto, deram a conhecer o que lhes tinha sido dito a respeito deste menino. E todos os que os ouviram ficaram espantados com o que lhes diziam os pastores” (Lc 2, 17-18). Os pastores são os primeiros a anunciar o evangelho. O que viram e experimentaram não puderam guardar em segredo. Revelaram, comunicaram os mistérios divinos que experimentaram e testemunharam. Os que ouviram o seu testemunho se maravilharam. Eis a dinâmica da evangelização. Todos os que experimentam e testemunham os mistérios divinos são tais pastores.

  • O nascimento de Deus no coração

“Quanto a Maria, ela retinha todos estes acontecimentos procurando-lhes o sentido” (Lc 2, 19). Em Maria vigora o silêncio, o pudor do mistério. Ela acolhe e recolhe os acontecimentos e lhes sonda o sentido. Entrelê em tudo o toque divino. Vislumbra o cumprimento dos oráculos proféticos antigos. Os acontecimentos da vida e as palavras das escrituras se iluminavam reciprocamente em seu coração. Tudo lia e entrelia. Acolhia o que estava nas linhas e recolhia o que estava nas entrelinhas dos textos da vida e da escritura sagrada. E tudo o que conseguia apreender e compreender, relacionando e ponderando, ela guardava em seu coração, isto é, na sua interioridade, no íntimo, no âmago de sua alma.

O sublime e admirável do Natal, não é apenas o nascimento de Deus em nossa carne, mas o nascimento de Deus no nosso coração, na mente, isto é, no mais humano de todo homem, não importando as suas condições. A única exigência é que, a exemplo dos pastores de Belém, sejamos homens de boa vontade, isto é, que nos deixemos mover por aquela centelha, a mais profunda do coração humano: o bem querer. Por isso, diz o anjo: Não tenhais medo, eu vos anuncio uma grande alegria que é para todo o povo. Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo  Senhor (v. 11) . Por isso, essa Noite é uma Noite feliz! Noite de Paz! De júbilo! Reconciliação e Misericórdia.

O Natal de Deus é silencioso e sub-reptício. Ele acontece no fundo do coração daqueles que, como os pastores, vigiam na calada da noite. Vigiar, significa estar atento para não se permitir a substituição do Natal do Menino pobrezinho nascido da pobrezinha Virgem Maria (2C199) por uma celebração sem mistério.

Que São Francisco de Assis seja nosso exemplo. Quando inventou o presépio em Gréccio, tinha em mente deixar que este mistério em sua força nativa, estranha, impregnada de simplicidade, pobreza e humildade, fosse recordado e re-despertado nos corações dos próprios cristãos. Foi o que aconteceu. Diz-nos Tomás de Celano: “A noite ficou iluminada como o dia: era um encanto para os homens e para os animais. O povo foi chegando e se alegrou com o mistério renovado em uma alegria toda nova” (1C n. 85).

No entanto, hoje, o próprio presépio tem estado como uma evocação longínqua, embaçada, apagada, arriscando se tornar mais um simulacro do que um sinal, um “sacramento”, com sua força reunificadora. Num mundo dessacralizado, em que o homem perdeu sua vida simbólica, como deixar que se abra aquela fenda no rito para que nos bafeje o sopro sagrado que nos vem de “um Deus humano e Homem divino vindouro que sempre esteve conosco na finitude desprezada de um estranho Deus? ” (Harada)[1]. Talvez seja preciso redescobrir, no santuário do fundo de nossas almas, o “meio-silêncio”, a “noite-alta”, em que o Filho de Deus quer nascer em nós. Pois, como dizia Orígenes, um dos padres da Igreja, retomado por Mestre Eckhart (Sermão 101): “em que me ajuda que esse nascimento [do Filho de Deus em natureza humana] aconteça sempre, se não acontecer em mim? ”. É como se hoje disséssemos: de que me adianta celebrar o Natal todos os anos, se a geração do Filho de Deus em mim não for se consumando dia após dia?

Conclusão

Todas as grandes festas e solenidades celebradas pelo povo cristão têm origem na festa da Natividade de Jesus Cristo. Esta “é a festa das festas”, dizia São Francisco (2C 199). É o princípio da redenção que nela se celebra. Por isso, esta festa é a origem e o fundamento das demais festas (Epifania, Páscoa, Ascensão e Pentecostes). Sem o seu nascimento carnal, o Cristo não poderia se revelar ao mundo, não poderia ser crucificado, morto e sepultado, e ressuscitar ao terceiro dia, e o Espírito não poderia ser enviado e comunicado a todos os povos como foi em Pentecostes. “Por conseguinte, assim como vários rios surgem de uma mesma fonte, assim também nascem para nós estas festas” (São João Crisóstomo).

Mais que um mistério particular de uma religião – o cristianismo – o Natal representa uma revolução universal: Deus não é mais só Deus, mas Deus-humanado e o homem não é mais só homem, mas homem divinizado. Deus se faz Menino para que o homem se torne menino-Deus.

Há algo de inaudito nesse Dia: a criação toda, os homens todos, a exemplo de Maria, engravidam de Deus. Na nova humanidade, que é engendrada hoje, o Verbo prolonga sem fim o ato de seu nascimento e, pela força de sua imersão no seio do mundo  […] toda matéria agora é encarnada… (Teilhard de Chardin).

Se a exemplo de Maria, José e dos pastores estivermos vigilantes e atentos ao silencio do mistério que envolve e sustenta as realidades que nos cercam haveremos de perceber também nós o milagre escondido no meio da noite e que aconteceu no famoso “presépio de Gréccio” inventado por São Francisco.

Multiplicaram-se nesse lugar os favores do Todo-Poderoso, e um homem de virtude teve uma visão admirável. Pareceu-lhe ver deitado no presépio um bebê sem vida, que despertou quando o Santo chegou perto. E essa visão veio muito a propósito, porque o menino Jesus estava de fato esquecido em muitos corações, nos quais, por sua graça e por intermédio de São Francisco, ele ressuscitou e deixou a marca de sua lembrança. Quando terminou a vigília solene, todos voltaram contentes para casa (1C 86).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

 

 

[1] Em Comentando I Fioretti, p. 70.