QUARTA-FEIRA DE CINZAS – 2018

Quarta-feira de cinzas – 2018

Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da Palavra: Jl 2, 12-18; Sl 50; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6, 1-6.16-18

TemaMensagem: Quaresma, Tempo de renovar e reafirmar nossa volta para o Senhor, de rasgar não as vestes, mas o coração com lágrimas jejuns, esmola e oração.

Sentimento: Dor-contrição-alegria

Introdução 

Desde o século IV, nós cristãos adotamos o costume de preparar a festa anual da Páscoa com uma Quaresma (no latim: Quadragesima: quarenta dias). Assim, durante quarenta dias, desde hoje, Quarta-feira de Cinzas, até a Páscoa, queremos, mais uma vez, retomar nossa disposição de voltar a caminhar com mais fervor junto com Jesus;  participar e comungar mais de perto, com mais dor, contrição e alegria, e mais plenamente, do mistério de sua Paixão-Morte e Ressurreição. 

  1. Tempo de voltar para o Senhor

Quem, na liturgia de hoje, nos introduz no mistério deste processo de retorno é o próprio Senhor. Através de seu profeta Joel, proclama e grita por duas vezes: “Voltai… voltai!” Sim, “voltai para mim com todo o coração, com jejuns, lágrimas e gemidos… voltai para o senhor…” (v. 12 e 13). Segundo o profeta, três são os motivos desta exortação:

– Primeiramente, o próprio Senhor. Ele é quem deseja que seu povo veja e sinta o quanto Ele é “benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, sempre pronto e inclinado a perdoar” (idem).

– Em segundo lugar, era necessário despertar, de novo, em Israel a confiança e a alegria. Era necessário que Israel, apesar de seus pecados, sentisse que Deus é capaz de transformá-lo numa oblação agradável e numa libação pura (Cf. v. 14).

– Finalmente, a honra do próprio Deus. Sim, o que iriam dizer as demais nações diante de um Deus que não seria capaz de salvar seu próprio povo?  “Porque se haveria de dizer entre os povos: ‘Onde está o Deus deles?’” (v.17). Jamais Deus poderia passar por este vexame.  

  1. 2. Rasgar o coração e não as vestes

O retorno, portanto, tem sua origem no amor misericordioso de Deus. Por isso, mais do que um espetáculo exterior, a penitência quaresmal é um evento espiritual-teologal, um processo interior de transformação do coração, da mente, do espírito do homem no seu ser-para-Deus. Daí a advertência de Joel: “Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos”. Uma veste inteira, sem rasgos, é melhor do que uma veste rasgada. Todo o mundo sabe. Mas o que todo o mundo não sabe é que um coração rasgado é melhor do que um coração inteiro, fechado, endurecido. O rasgo do coração é começo de uma conversão verdadeira porque o homem vê que é Deus mesmo quem vem à sua procura, como na história de Adão, depois de sua queda, quando havia fugido e se escondido na escuridão de sua própria vontade. Daí a primeira pergunta, a interpelação básica, sempre nova e atual de Deus ao homem: “Onde estás”? E a confissão do homem: “Eu fugi, eu me escondi de ti”. Sim, Fugimos, nos escondemos de Deus, damos-lhe as costas, quando queremos ocupar seu lugar, trocar seus mandamentos, seu amor pelas nossas leis e pelos nossos amores.

 Mas, esta fuga é em vão, pois jamais poderemos deixar de estar em face dele, uma vez que Deus, em tudo e em todos, brilha como num espelho que está sempre à nossa frente. É preciso, pois, que voltemos a Ele e deixemos que nosso coração se rasgue: que a falsa proteção de nossa vanglória e de nossa soberba, que colocamos sobre nosso coração para não nos expormos a Ele e aos irmãos, seja rompida; que, como um doente diante do médico, fiquemos inteiramente nus ante sua face, inteiramente expostos na nossa própria culpa para que Ele nos trate, liberte e cure.

Assim, da fuga passaremos ao encontro, do encontro à transformação e da transformação à conversão, e da conversão à intimidade e da intimidade à identificação com o próprio Senhor, o sumo bem, o bem inteiro, o único bem, como gostava de se expressar São Francisco (Cf. ELD).

  1. Com lágrimas e gemidos (Sl 50)

Assim, a Quaresma, deve ser assumida como uma viagem de quem, depois de ter-se afastado, é chamado a voltar para o seu Senhor. Uma aventura marcada por lágrimas e gemidos da contrição e  arrependimento, tão bem decantados por Davi no salmo que ele compôs após a amarga experiência de seu pecado e que é usado como salmo de nossa resposta na celebração de hoje (Sl 50). 

Davi nos ajuda a compreender como encetar nossa volta para o Senhor. O pecado dele era duplo e gravíssimo. Além do adultério com Bat-Sheba (cfr. 2 Sm 12), havia se tornado, também, cúmplice, como mandante, no assassinato de seu marido, Uriá. Prosternado diante da face do Senhor, confessa sua culpa, reconhece seu pecado, implora perdão, misericórdia e purificação: “Tira o meu pecado com o hissopo e estarei puro; lava-me, e serei mais branco do que a neve”.

Davi não chora, propriamente sobre si, mas sobre seu Senhor e seu amigo que havia não apenas abandonado, mas também, matado em seu coração. Trata-se do mesmo sentimento que mais tarde leva São Francisco a chorar pelas florestas, exclamando: “Choro a Paixão do meu Senhor e por causa dela não devo envergonhar-me de andar pelo mundo inteiro chorando em alta voz” (LTC 14). No coração da penitência cristã, está pois a necessidade de amar muito aquele que  muito nos amou (1B IX 1)

 Santa Catarina de Siena, em seu livro, intitulado “Diálogo da divina providência”, chegou até mesmo a escrever uma “doutrina das lágrimas”! Há as lágrimas dos homens iníquos do mundo: são lágrimas de danação. Estas não têm lugar na vida do cristão. Aqui vale a observação de Agostinho, nas suas Confissões: “os outros bens desta vida, tanto menos se deveriam chorar, quanto mais os choramos; e tanto mais se deveriam chorar, quanto menos os choramos” (X, 1)… Mas, há, também, as lágrimas que já pertencem à vida de encontro com o Senhor Jesus Cristo; lágrimas por vezes imperfeitas porque nascem do temor da pena, e não do amor propriamente dito. Depois, há as lágrimas de um amor ainda imperfeito. Melhores, porém, são as lágrimas de um amor perfeito e excelentes as lágrimas de quem está unido ao Senhor na sua dor. Estas são doces e de grande suavidade. E, se, por acaso, alguém deseja estas lágrimas, mas não as têm, não precisa se preocupar, pois há também as “lágrimas de fogo”, que são sem lágrimas nos olhos porque derramadas no recôndito mais íntimo do coração humano.

  1. Enquanto a “justiça” humana se vangloria a justiça de Deus se oculta

No evangelho de hoje, Jesus, ciente de sua missão, começa a introduzir no coração dos seus discípulos o espírito que deve orientar a sua volta para o Pai. Por isso, começa com um alerta:  “Prestai atenção para não praticardes a vossa justiça diante dos homens…”. Eis, pois o espírito com o qual devem se impregnar todos aqueles que querem realmente voltar para o Pai, princípio e fim de toda a salvação: sua justiça e não a nossa. Enquanto a nossa justiça se assenta no merecimento e na retribuição de nossas obras, a divina principia e se desenvolve a partir do mistério da misericórdia de um Deus louco de compaixão pelos seus filhos.

4.1. Não às toxinas da vanglória e da hipocrisia

Mas, o que é, como ou o que se deve fazer para entrar e seguir a justiça divina e não a nossa? Ele mesmo, o Senhor, dá a resposta: “Não praticar a justiça diante dos homens, só para serdes vistos por eles” ( v.1). Trata-se de largar o vício da hipocrisia que não apenas corrói a pureza originária do coração humano, mas, também e acima de tudo, o impede de encetar a viagem de volta para o convívio do Pai e dos irmãos. Por isso, depois, ao longo deste evangelho vai repetir por três vezes: “Não sejais como os hipócritas”.

A palavra “hypokrites” significa, originariamente, em grego, intérprete, ator, declamador. Em sentido pejorativo, porém, apareceu o sentido de simulador, de fingido, mascarado, sujeito de duas caras. Hipócrita é alguém que está dando espetáculo de si para os outros e para si, querendo aparecer e aparentar como aquele e como aquilo que ele não é.

No hipócrita, há sempre uma discrepância entre o aparecer e o ser. Ele busca se assemelhar ao personagem que finge ser. Vive uma simulação deste personagem. Esquece que a fonte de todo o bem que passa por nós é Deus, o Único bom como o expressa de modo admirável e brilhante São Francisco: “Senhor, a mim, que sou pecador e indigno, mandaste do Céu esta consolação e esta doçura. Senhor, eu as devolvo, para que as guardes para mim, porque sou um ladrão de teu tesouro. […] “Senhor, tira-me o teu dom neste mundo e guarda-o para o futuro”. E exortava: “Assim é que se deve fazer: Quando sair da oração deve mostrar-se aos outros tão pobrezinho e pecador como se não tivesse conseguido nenhuma graça nova” (2C 99,3-6).

E o grande discípulo de Francisco, Frei Egídio, dizia: “Julgo ser também um ramo da humildade devolver as coisas alheias e não apropriar-se delas, i. é., atribuir a Deus todos os bens, de Quem eles são, e os males a si” (DE 4).

A glória vã (vazia), isto é, a vanglória, é, assim, algo de que o discípulo de Jesus precisa se precaver. É um dos vícios mais perigosos para a alma humana. Os vícios, dizia Alceu Amoroso Lima, são virtudes enlouquecidas. A vanglória é um desejo de glória que se perdeu a si mesmo. Ela se instala nas boas obras e no reconhecimento que o homem alcança por causa delas. Nutrindo-se do louvor humano ela acaba matando a alma humana (tirando-lhe o viço, o vigor, a saúde). Em vez de conceder o verdadeiro e salutar crescimento, apenas leva ao crescimento inflacionário e ao inchamento de um ensimesmamenro sem vigor. 

Enfim, a hipocrisia é uma toxina porque nos priva da alegria, do júbilo do encontro, do convívio com o Senhor e com suas criaturas, principalmente com nossos semelhantes, os homens.

Feita a alerta do perigo da hipocrisia, Jesus passa a insuflar em seus discípulos o espírito da nova justiça que deve animar as três grandes práticas penitenciais que acompanham a história de Israel e hoje de todo o Povo cristão. 

4.2. O caminho da Esmola

Primeiramente, vêm as indicações sobre a esmola (v. 2-4). Hoje, esmola, no seu uso comum, significa apenas uma ajuda que se faz aos pobres, carentes e necessitados. Em seu sentido originário e bíblico, porém, o verbo “eleéo”, do qual procede o termo “esmola”, quer dizer “ter compaixão”, “ter piedade”, “comiserar-se” com o outro. Assim, “dar esmola” quer dizer “ser compassivo”, “ser misericordioso”; e “esmola”, significa “compaixão”, “piedade”, e, por extensão, aquela doação (objeto) ou dádiva, que expressa esta compaixão ou piedade.

Na origem, porém, de toda a esmola está o bem-querer que se torna um bem-fazer, despertado no penitente pela graça do mistério do encontro com a miséria, a fragilidade do outro e que São Francisco chama de “Senhora” ou “Dama Pobreza”. Beda, o venerável, dizia que a esmola não é só o dinheiro dado em ajuda, mas é toda ajuda, toda beneficência. Ainda, dizia que o dinheiro que se guarda, desaparece, mas o que é dado ao próximo produz um fruto eterno nos céus. Reter para si os bens, na verdade, faz corromper o coração do próprio homem.

Assim, o exercício da esmola é o empenho para manter nosso coração aberto à  alegria da graça do encontro e do convívio com todas as criaturas que o Senhor nos dá e assim criar já aqui na terra a grande Fraternidade dos filhos de Deus, o Reino dos Céus.

  • O caminho da Oração

Em segundo lugar, Jesus fala do caminho da oração. Não diz que devemos orar – isto já está suposto e era óbvio – mas sim como devemos orar. Mestre Eckhart, no comentário ao livro da Sabedoria (6, 17), diz que “aquilo que cada um procura, e isso somente, é digno dele e ele daquilo”. E exemplifica: “se alguém cumpre uma ação procurando honra, não é digno de outra coisa do que de honra, e nada é digno dele se não a honra. De fato, este procura aquilo e, pelo fato de procurar a honra, não considera digna outra coisa do que a honra. Por isso, também, ele não é digno de outra coisa do que de honra, seja porque nada mais considera digno, seja porque procura a honra”.  Por isso, se alguém ora para receber os louvores humanos receberá os louvores humanos e não o reconhecimento divino. Onde e o que cada um semeia, ali e aquilo colhe. Para que isso não aconteça, diz Jesus, é preciso que cada um “entre no seu quarto, feche a porta e reze ao seu pai que mora no oculto” (V. 6).

À primeira vista poderíamos pensar que Jesus esteja menosprezando a oração pública. Isso não corresponde aos fatos pois ele mesmo participava frequentemente das orações comunitárias nas sinagogas e no templo. O que está em jogo, aqui, é a essência da oração, isto é, aquilo sem o qual não existe oração.

Na conversa com a samaritana Jesus diz que o “pai quer adoradores que o adorem em espírito e verdade” (Jo 4,24). Isso significa que o agente primeiro, a origem da oração de um cristão não é ele, mas o espírito, a verdade. Nisto está a grande e radical diferença entre a oração pagã e cristã.  Entre aqueles, os pagãos, a origem da oração está neles próprios – os homens – enquanto que na oração cristã quem inicia e sustenta a oração é sempre o espírito. Quando se diz “espírito” significa, de novo, todo o empenho, todas as iniciativas de Deus, enfim, sua misericórdia, de vir ao nosso encontro para estabelecer conosco um ”sacrum convivium”. 

Por nisso, orar “em segredo” significa estar só, face a face com Deus. Ora, isso não se dá na publicidade, mas tão somente quando a pessoa se recolhe para dentro daquela dimensão – a mais profunda e entranhada do nosso humano – que santo Agostinho chamava de “intimo do meu íntimo”.

Mas, como o homem, facilmente se deixa divagar e levar por pensamentos ineptos, sequioso de “vivências místicas” e sentimentalistas centradas no prazer de si mesmo e de suas conquistas ou pela tristeza de seus pecados, precisa “fechar a porta” do seu coração para recolher-se e tornar-se a simples e singela entrega confiante de um filho desejoso de voltar e estar sempre no convívio do Pai.

Assim, se a esmola nos leva à alegria, à festa do encontro com os irmãos, a oração nos leva ao júbilo do encontro com o Pai.

  • O caminho do Jejum

Em terceiro lugar, Jesus evangeliza o jejum. Se a esmola é para levar o homem ao irmão e a oração a Deus, o Pai, o jejum é para levar o homem à verdade de si mesmo. Por isso, dizia O Pseudo-Crisóstomo: “melhor é que o jejum te manifeste a ti do que tu manifestes o jejum”. E de novo, como dos dois exercícios anteriores, também aqui o homem pode fugir de si mesmo, simulando um personagem: fazer de conta que está triste e acabrunhado, contrito e humilhado, para poder receber o reconhecimento dos homens. Daí, isto é, para evitar esta hipocrisia, a recomendação de Jesus: “quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto para que os homens não vejam que estás jejuando, mas somente o Pai que está no oculto” (v. 17).

Assim, o jejum nos conduz para a verdade mais verdadeira de nosso humano, assim expressa por frei Egídio: Nós, de nossa parte só fragilidades, vícios e pecados e da parte de Deus só benefícios (Cf. DE 12). Essa verdade fica patente até mesmo no jejum material, pois não é assim que se ficarmos sem comer ou beber nos debilitamos tanto a ponto de virmos a falecer?!

O que seja ou como deve ser o nosso jejum pode ser visto nesta lenda dos antigos orientais, chamada, “Jejum do coração”.

Khing, o mestre entalhador, fez uma armação para sinos, de madeira preciosa. Quando terminou, todos que aquilo viram ficaram surpresos. Disseram que devia ser obra dos espíritos. O Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador: “Qual é o seu segredo?”.

Khing respondeu: “Sou apenas operário: Não tenho segredos. Há só isso: Quando comecei a pensar no trabalho que me ordenaste protegi meu espírito, não o desperdicei em ninharias, que não vinham ao caso. Jejuei, a fim de pôr meu coração em repouso. Depois de jejuar três dias, esqueci-me do lucro e do sucesso. Depois de cinco dias esqueci-me do louvor e das críticas. Depois de sete dias esqueci-me do meu corpo com todos os seus membros. Nesta época, todo pensamento de Vossa Alteza e da corte se evanescera. Tudo aquilo que me distraía do trabalho desaparecera. Eu me recolhera ao único pensamento da armação do sino. Depois, fui à floresta ver as árvores em sua própria condição natural. Quando a árvore certa apareceu a meus olhos, a armação do sino também apareceu, nitidamente, sem qualquer dúvida. Tudo o que tinha a fazer era esticar a mão e começar. Se eu não houvesse encontrado essa determinada árvore não haveria qualquer armação para o sino. O que aconteceu? Meu próprio pensamento unificado encontrou o potencial escondido na madeira; deste encontro ao vivo surgiu a obra que você atribuiu aos espíritos. (XIX, 10)[1].

  1. São Francisco e suas Quaresmas

A mística da “Quaresma” está ligada ao número quarenta, mais precisamente aos quarenta anos vividos pelo Povo de Israel no deserto quando, guiado e animado por Deus, fez a travessia do deserto a caminho da Terra prometida, libertando-se da escravidão egípcia para assim poder unir-se numa santa aliança ao seu único senhor e Deus; está ligada aos quarenta dias de jejum, passados por Jesus no deserto até ser tentado pelo Adversário e vencê-lo por permanecer voltado e unido inteira, absoluta e radicalmente à vontade amorosa ao Pai. Assim, o espírito daquele jejum – viver voltado para o Pai e sua vontade, dando as costas à própria vontade bem como aos ídolos deste mundo –  tornou-se o alimento de toda a sua vida, até a morte e morte de Cruz, o alimento de todo seu seguidor.

  Quaresma passa a ser, portanto, um espírito, uma mística que deve envolver a vida toda e toda a vida e não apenas um tempo de quarenta dias. Quem descobriu e se encantou por este espírito e este caminho foi São Francisco. Por isso, ele mesmo se denominava um penitente, como ele mesmo testemunha em seu Testamento (Cf. Test 1) e sua Ordem uma Ordem de penitentes. Por isso, para manter sempre acesa a chama desta mística, além da Quaresma eclesiástica, costumava ao longo do ano exercitar-se em mais outras quatro: a Quaresma do Advento, da Epifania, de São Miguel e da Festa dos Apóstolos Pedro e Paulo até a Assunção. São Francisco é, pois, antes e acima de tudo, antes de um ecologista ou pacifista, antes até mesmo de um grande místico e benfeitor dos pobres, um convertido, um homem voltado, virado, orientado para Jesus Cristo e seu Evangelho.

 É por isso, que o Papa Francisco, desejoso de encontrar e apresentar “um modelo belo e motivador, […] um exemplo por excelência” (LS 10) para a reconstrução da Igreja, da humanidade e da criação, não encontrou outro melhor senão São Francisco.

 Conclusão

Não há graça e doçura maior do que um filho poder estar e viver voltado ou voltando para sua casa, para o encontro, o convívio com seu pai, para a intimidade de seu lar. O inverso também vale. Não há desventura e amargura maior do que um filho ter que viver de costas, expulso, exilado de seu lar, de sua casa paterna.

Desde o pecado de Adão, nós homens estamos às voltas com este dilema, ventura e drama: voltar para a casa do Pai ou continuar desterrados de seu convívio contentando-nos, a modo dos judeus no deserto, em adorar os próprios ídolos, como as ideologias, o consumismo, o dinheiro, as finanças, o trabalho, a técnica, as doutrinas, a subjetividade, o prazer pelo prazer, o poder pelo poder, os armamentos, o sucesso, a competição, a maximização do lucro, os nacionalismos, etc. que valem mais que as pessoas, a família, as comunidades e  os povos, sem falar no próprio Criador, o Pai e Senhor de toda a criação e de toda a humanidade.

Por isso, o ardoroso convite de nosso Papa: que retomemos hoje mesmo nosso caminho de volta para Jesus Cristo ou, pelo menos, que tomemos a decisão de procurá-lo dia a dia sem cessar. Que sempre, principalmente nesta Quaresma, seja “o momento para dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores» (EG 3).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

                                                       

 

[1] Thomas Merton. A via de Chuang-Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 166-168.