2° domingo da Páscoa

2º DOMINGO DA PÁSCOA

08/04/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: At 4,32-35; Sl 117 (118); 1Jo 5,1-6; Jo 20, 19-31

Tema-mensagem: Da fé e da paz que nascem do toque das chagas do Senhor crucificado, misericordioso

Introdução:

Muitos são os mistérios que envolvem e perfazem o Mistério de Cristo, como, se pode ver, por exemplo, na reza do santo rosário. No entanto, tudo e todos convergem para o “Mysterium Paschale” (Mistério Pascal). Ou seja, a paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, é o sumo da obra suma de Deus, iniciada na encarnação.

Este mistério se reveste de tal grandeza que a Igreja para meditá-lo, menos indignamente, estende sua celebração do Domingo da Ressurreição até o Pentecostes (quinquagésimo dia). Por isso, fala-se sempre em “Domingos da Páscoa” e não “Domingos depois da Páscoa”.

 Assim, hoje, Domingo da oitava da Páscoa, a Igreja contempla mais uma aparição de Jesus aos seus discípulos. Desta vez, está presente também o desconfiado e descrente Tomé, ao qual Jesus pede que toque em suas chagas e que não seja incrédulo, mas homem de fé. Recorda-se assim mais uma vez a compaixão do Senhor, sua suave ternura e seu ardente amor para com o homem real, com toda a sua fraqueza. Por isso, este Domingo é também chamado “Domingo da Misericórdia”.

 

  1. Do testemunho dos Apóstolos e de sua eficácia

 O texto que nos introduz na celebração do mistério deste domingo é tirado dos Atos dos Apóstolos.

Atos, são gestas, feitos notáveis, heroicos, façanhas admiráveis que envolvem os Apóstolos em sua missão de testemunhar Jesus Cristo Crucificado, que ressuscitou, e seu Evangelho, como vem expresso na leitura de hoje: “Com grandes sinais de poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E os fiéis eram estimados por todos” (At 4,35).

 Os protagonistas destes Atos, porém, não são os Apóstolos, mas antes, a força do Espírito Santo que se infundia em seus corações através da presença do Espírito de Jesus Cristo ressuscitado. O júbilo pelo re-encontro com o Mestre, agora ressuscitado, vivo, transformara os apóstolos em testemunhas cada vez mais ardorosos deste mistério. O entusiasmo deles era tanto que muitos achavam que estavam bêbados e por isso, zombando, diziam: “Estão cheios de mosto (Atos 2,13).

Sempre é importante realçar que é sobre o testemunho dos Apóstolos acerca do Cristo Crucificado, que foi ressuscitado pelo Pai na força do Sopro Santo, que se funda o nascimento e o florescimento da fé dos fiéis e da própria Igreja pelos séculos afora, como se reza no Credo: “Creio na santa Igreja católica e apostólica”.

Assim, o princípio que transformara os apóstolos em testemunhas da Ressurreição do Senhor é o mesmo que é capaz de transformar uma multidão numa comunidade. Ou seja, o milagre da criação de uma nova humanidade, nascida da misericórdia divina, manifestada pelas santas chagas de Jesus,  depois de atingir os Apóstolos, começa a tocar e a ferir todos aqueles que acolhem o novo espírito que move aqueles seguidores de Jesus. É o que se costuma chamar de mistério da “tradição apostólica”.

Tradição, aqui, porém, não se trata de uma transmissão objetiva, retilínea, sempre para frente, de uma coisa, ideia, doutrina ou costumes, leis e normas, mas, sim, de uma retomada, cada vez nova e de novo, do gérmen de uma nova e grande aventura de encontro com a pessoa de Jesus Cristo, o princípio do novo homem e da nova humanidade. A tradição não escraviza a um passado pretérito (que se foi). A tradição libera as forças originárias escondidas de um passado que continua vigente e que vai à nossa frente e que, neste sentido, guarda sempre de novo a força do porvir, do futuro. Esse passado recolhido é o evento pascal de Cristo e sua força na vida da Igreja, cujo anúncio, comunicação de salvação (vigor de vida plena), se espraia até as extremidades da terra. Por isso, a nova humanidade inaugurada por Cristo não é apenas para o pequeno grupo dos Apóstolos e de seus primeiros seguidores, mas para todos os povos e nações de todos os tempos.

 

  1. Da graça do mistério da unanimidade, que funda nova economia na convivência entre os homens.

Assim, aos poucos, a graça da tradição do entusiasmo da ressurreição, passava dos Apóstolos para seus ouvintes e destes para outros e destes outros para outros, proporcionando em todos uma transformação radical: “a multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma”. É o milagre da unanimidade dos cristãos. Esta unanimidade não é mera uniformidade e igualdade de opiniões, de costumes, de condutas. É, antes, a identidade comum que reúne as diferenças na comunhão (koinonía) do amor desprendido. O vigor que nascia desta graça – o mesmo ânimo, a mesma alma – era tão expressivo que “entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas, vendiam-nas, levavam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos. Depois era distribuído de acordo com a necessidade de cada um” (At 4,34-35). Consequentemente, nenhum cristão considerava seus bens como uma propriedade exclusivamente sua. Mas, ao contrário, todos punham todos os seus bens em comum.  Ser cristão é viver em si e nos relacionamentos com os outros o mistério da pobreza de Jesus Cristo – de seu esvaziamento e rebaixamento – cuja generosidade nos fez participar de sua riqueza. Da nova vida do cristão, vida pobre, isto é, desprendida (kenótica), emerge o vigor da gratuidade do amor, que, em comunhão, compartilha com os outros tudo o que se é e se tem. Onde vigora a pobreza do espírito no amor superflui a gratuidade e deixa de haver a miséria, que é fruto da avareza e do egoísmo humano. Assim, o Evangelho funda uma outra economia, baseada no desprendimento e na gratuidade, uma economia para a vida e não para a morte; uma economia ecumênica, que globaliza a generosidade, a cooperação e o cuidado pelos outros.  

Para Lucas, o que mais importa nessa experiência, não são as particularidades, mas o conjunto daquela nova irrupção do Espírito de Deus. Ou seja, o fato de eles sentirem a necessidade daquela comunhão não nascia de um ideal humanista, mas da presença e da experiência real, da fé, do amor de Jesus Cristo chagado e ressuscitado, o Irmão mais velho, o irmão de todos. Assim, o que os levava a serem e a se fazerem irmãos não era o que eles faziam uns pelos outros, mas o que Cristo fez por eles morrendo na Cruz. Por isso, canta a Igreja na Quinta feira santa “Congregavit nos in unum Christi amor” (Quem nos Congregou no uno é o amor de Cristo).

Somos todos, pois, “nascidos de Deus” (Jo 1, 1) e “não da vontade da carne e do sangue”, não de simpatias pessoais ou de motivos humanos. Assim, de uma vocação divina e de uma divina atração, as primitivas comunidades apostólicas, eram um sinal vivo da primazia do Amor de Deus que opera suas maravilhas e do amor a Deus e aos irmãos, como foi manifestado e praticado por Jesus Cristo, principalmente em sua morte e morte de Cruz.

O propósito de uma experiência de vida em comum, já fora recomendado no Antigo Testamento: “Dentre vós não deverá haver nenhum necessitado” (Dt 15,4) e até mesmo entre os gregos. Aristóteles, por exemplo fala que “os amigos têm todas as coisas em comum”. Este ensinava que a vida em comum se funda na justiça, mas se torna mais perfeita na philia, isto é, na benevolência dos que são unânimes por uma identidade comum que os reúne nas suas diferenças. A Igreja primitiva subsumiu a philia (amizade-companheirismo-afinidade) na agápe (amor-desprendimento-gratuidade). Os Atos dos Apóstolos mostram que esse “ideal”, desejado por judeus e gregos, enfim, por todo o homem, se torna realidade, sempre que a força do amor-gratuidade (caridade) atua na nova vida dos cristãos. A comunidade cristã realizava plenamente e em definitivo o que o Antigo Testamento proclamava para os judeus e o que os gregos esperavam dos amigos. Estava colocado, assim o princípio que iria nortear a relação da Igreja e dos cristãos com os pobres, através dos séculos até o dia de hoje: a preferência, a inclusão. Isso conduz a uma nova economia (oikonomia), isto é, a um novo modo de habitar a terra e a um novo modo de cuidar da casa comum e dos seus bens (oikos). Trata-se de uma economia eco-lógica (respeitosa da terra) e ecu-mênica (que não exclui ninguém, antes, inclui tudo e todos no cuidado pela identidade comum que reúne as diferenças). Hoje, em tempos de globalização de uma economia inimiga da terra, da vida e dos pobres, e de uma política totalmente avassalada por ela, a terra, os povos, os pobres gemem na espera e na esperança de que a força libertadora da pobreza do espírito que reside no amor transforme o modo de habitar a terra e de conviver entre si dos homens, em doação e recepção mútuas (Cf. LS).

 

  1. Da filiação divina à vitória sobre o mundo

Quem, aprofunda, hoje, o mistério de nossa filiação divina é São João num  pequeno trecho de sua primeira Carta tomado hoje como segunda leitura: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus…” (1Jo, 5,1).

Trata-se aqui da floração da graça do encontro, isto é, da experiência de ser amado por Jesus Cristo e consequentemente, da graça de poder amar a Deus e os irmãos. E João dá o sinal desta pertença: “Podemos saber que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e guardamos seus mandamentos” (1Jo 5,2).

A frase soa um tanto estranha porque nós costumamos dizer o contrário, isto é, sabemos que amamos a Deus se e quando amamos os irmãos. João parece dizer o contrário: só podemos saber se amamos os irmãos quando amamos a Deus. Ou seja, só podemos amar os irmãos no amor de Deus que nos amou por primeiro e até a morte e morte de Cruz de seu Filho unigênito.

 Esta é a grande Novidade que funda a nova humanidade, o Evangelho trazido por Jesus. Em outras palavras só há verdadeiro amor aos irmãos se este vier do alto e não de baixo, da carne, isto é, se for de Deus e como Ele ama. O mesmo João dirá: “Deus nos amou por primeiro”. Ou seja, se e quando amamos é sempre no e pelo amor que Deus derramou em nossos corações. Por isso, mesmo que alguém não o saiba, como no caso de um pagão ou ateu, sempre que amar, ele o está fazendo movido por Deus. Sempre que o homem é inspirado, no seu agir, pela verdade e pelo amor, é pelo Espírito de Deus que ele é animado.

Nossa filiação divina, porém, não é apenas um fato dado, uma graça pronta, mas uma luta. É dom de uma conquista. É o que se pode entender quando diz que “Jesus Cristo veio pela água e pelo sangue”(1Jo 5,6). Pela água, significa pela graça do Batismo, quando extasiado e comovido, Jesus ouviu do Céu o Pai chamá-lo de “Meu Filho muito querido”. Pelo sangue significa que esta filiação divina lhe custou caro: a morte e morte de Cruz. E este será o caminho de todo o seu seguidor. Por isso dirá depois São Francisco: “Atendamos, Irmãos, o Bom Pastor, que para salvar as suas ovelhas, suportou a Paixão da cruz. As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e em tudo o mais; e disso receberam do Senhor a vida sempiterna. Por isso, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham feito obras e nós queiramos receber glória e honra apenas por citá-las” (Ad 6).

 

  1. Do amor misericordioso mais forte do que o pecado e a morte.

Mais que em outros, o tempo da Páscoa nos revela como a partir da Ressurreição o mistério da misericórdia e da paz do Cristo Crucificado começa a se expandir e a tomar conta do coração das pessoas, a começar pelos apóstolos.  Neste Domingo, a Igreja celebra esta maravilha através do conhecido Evangelho de Tomé, o Dídimo.

 

3.1.O mistério da misericórdia veio para ficar

O Evangelho de hoje nos leva para dentro do coração dos apóstolos no “anoitecer daquele dia, o primeiro da semana”: por medo dos judeus estavam fechados e trancados dentro de casa. O motivo é muito claro e lógico: se fizeram tudo aquilo com o mestre, com certeza, aos poucos fariam o mesmo com eles, seus seguidores.

Além do medo, havia também o desânimo, a frustração, a desorientação pois de tudo o que esperavam não apenas nada aconteceu, mas, o que foi bem pior, saiu pelo contrário. Eles que esperavam ansiosamente a nomeação para altos postos viram o seu mestre, senhor e rei, ser condenado e executado à vergonhosa e ignominiosa morte de Cruz.  Só um raio de luz, de jovialidade, de improviso, tinha raiado nas trevas daquele dia. O anúncio de Maria Madalena: o sepulcro estava vazio e o Senhor lhe teria aparecido.  Mas o evento do qual ela dava notícia era tão improvável e incrível, tão inusitado, que parecia impossível, inacreditável.

No entanto, no meio de tanta incredulidade e abatimento, o inesperado, o inusitado, o extraordinário, acontece, originariamente, e como um novo princípio: a força do mistério pascal acaba com todas as portas fechadas. Jesus veio e se pôs no meio deles. Ele viera cumprir sua promessa: “não vos deixarei órfãos, eu voltarei para vós. Ainda um pouco e o mundo não me verá mais; vós, porém, me vereis vivo, e também vós vivereis” (Jo 14, 18-19). Naquele seu famoso discurso, Jesus fala que tudo isso acontecerá num dia bem concreto e determinado: “Naquele dia, conhecereis que eu estou no Pai e que vós estais em mim e eu em vós” (Jo 14, 20). Para João, “aquele dia”, significa o último dia, dia que começa com a Ressurreição de Cristo e vai até o fim dos tempos; dia que é re-petido (pedido de novo) a cada primeiro dia da semana, o Domingo, o “Dia do Senhor”, o “Dia eterno”, o “Dia de todos os dias”.

Assim, pondo-se no meio deles como o fizera tantas vezes, os saúda: “A paz esteja convosco”. É como se lhes dissesse: não fiquem atordoados, alarmados, desesperados; que cessem as dúvidas, os temores e os medos em vossos espíritos. E, para confirmar que era Ele mesmo o Crucificado e que a Cruz em vez de desgraça era uma graça, que Ele estava bem, salvo e em paz, mostra-lhes “as mãos e o lado”. Isto é: este que lhes fala é o mesmo que por eles se deixou crucificar, aquele cujas mãos e pés foram trespassados pelos cravos, aquele cujo lado foi aberto pela lança. O Ressuscitado é o Crucificado mesmo, em “carne e osso”. É o Filho de Deus encarnado, a misericórdia encarnada. Ele está vivo! É o homem (Ecce Homo!) e não uma fantasia.  Por que temer?

Os discípulos olham para ele e o veem. Mas a fé deles vacila diante do que veem. Por isso, Ele lhes mostra as mãos transpassadas pelos cravos, e a pleura, transpassada pela lança. O corpo do Cristo ressuscitado conserva as feridas da Cruz. Por que? Agostinho responde: elas foram conservadas para curar os corações dos que duvidavam. Como profetizou Isaías a respeito do Servo do Senhor: pelas suas chagas nós seríamos curados. Só então eles se alegraram por verem o seu Senhor ressuscitado. A jovialidade raiou sua luz sobre eles e encheu-lhes o coração de alegria.

 

3.2. Com a misericórdia, a Paz e a missão

 Jesus, então, pela segunda vez, insiste: “A paz esteja convosco”. Era necessário repetir para confirmar o que estavam vendo e assim pudessem crer no que estava acontecendo. Ou seja, assim como Ele estava na paz no meio dos opróbrios da cruz, eles também em suas perseguições e tribulações seriam envoltos pela graça do mesmo mistério: a misericordiosa acolhida do Pai. Era preciso que crescem que Ele, em vez de abandonado, fora salvo, acolhido pelo Pai. Por isso, a paz que nasce deste reencontro Dele com o Pai – em vez da fragilidade da paz estabelecida pelos homens e pelo mundo – é duradoura, eterna e para todos, universal. É esta paz que agora Ele veio trazer-lhes. Uma paz que nasce da jovialidade consumada da cruz, da alegria e da experiência de Ele poder estar de volta e de novo no meio deles; uma presença nova, inaudita, imperecível. Com Ele em seu meio podiam e deviam confiar, ter fé, sentir-se em casa, seguros e pacíficos. A exemplo de uma criança, em casa, no colo do pai ou da mãe, como ou porque sentir medo dos raios e tempestades?

À confirmação da paz, segue a confirmação da vocação e da missão apostólica: “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio”. Ele cumprira a sua missão. Agora chegara a vez deles. Se até então fora o tempo Dele, agora estava se iniciando o tempo e a missão deles, da Igreja. A presença Dele com as gloriosas chagas é um sinal claro de que o caminho de todos os seus seguidores não será outro senão o da santa cruz; que também eles deverão segui-Lo no meio de tribulações, ódios e perseguições; que também eles, animados pela mesma fé Dele no Pai, saberão ou aprenderão a ser portadores e instrumentos da Paz: “Senhor, fazei-me instrumento de tua paz…”  (São Francisco).

Foi por isso e para isso que “soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados. A quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”. Trata-se, aqui, do Espírito Santo que foi liberado da Cruz, na hora de seu último respiro, para ser infundido sobre a Igreja. Agora, o Crucificado, ressuscitado, sopra este mesmo Espírito sobre os seus Apóstolos (cfr. Jo 20, 22), para que eles comuniquem o sopro da misericórdia divina a todos os homens, cuja expressão máxima é a remissão dos pecados em toda a terra. O mal do passado não pode perder sua vigência nefasta e destrutiva, bloqueadora do futuro, a não ser através do perdão. A dádiva do perdão dos pecados anula esta vigência aniquiladora do passado. Ela abre, assim, a liberdade para o futuro. Através da Igreja, enquanto sacramento da reconciliação e da misericórdia divina na terra, deve chegar a todos os homens de todos os povos a água, o sangue, o Espírito, que vêm de Cristo e pelos quais o Cristo vem aos homens (cfr. 1 Jo 5, 5-12).

Entretanto, Deus não arromba portas. Ele está à porta e bate. Não constrange a liberdade humana. Espera que ela se abra, para amar o amor que a ela se propõe desde a cruz. Por isso, a misericórdia de Deus pode ser rejeitada pelo homem. E o homem pode decidir – não abrindo a porta de seu coração – ficar de fora da festa da misericórdia e, assim, danar-se (danificar-se) e condenar-se a si mesmo. Mas, o mais importante é que Cristo misericordioso, desde a Eucaristia celebrada pela Igreja, que é chamada a ser, como Maria, Mãe de misericórdia (e não juíza inclemente) diz a todos, a cada um dos que são convidados para a ceia do Senhor, para o banquete da misericórdia: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir, entrarei em sua casa e cearemos juntos, eu com ele e ele comigo” (Ap. 3, 20).

 

3.3. Tomé o Dídimo

A segunda parte do Evangelho, com o famoso episódio de Tomás ou Tomé, chamado de “Dídimo”, tem um objetivo muito claro e específico: ajudar aos que não viram o Cristo ressuscitado a aderir ao testemunho dos que o viram. “Dídimo” significa “duplo”. E “duplo” aqui pode ter uma dupla interpretação. Duplo pela dúvida, que é sinal de incredulidade, isto é, de infidelidade; e “duplo” pela fé, isto é, pelo seguimento de Cristo. Tomé fora duplo pela dúvida. Pois dúvida é divisão do coração (em grego, dúvida se diz dipsychia: dupla alma). O contrário da dúvida, aqui, não é a certeza. É, antes, a simplicidade, isto é, a unidade do coração (ter um coração puro, isto é, uno, inteiriço, não mesclado ou composto com algo estranho). Ou seja, Tomé, primeiramente, tomado pela dúvida e pelo medo era um discípulo dividido em seu coração. Mas, num segundo momento, e isto é o que mais importa, pela fé, a exemplo de São Francisco, recuperando sua unidade interior em seu Mestre e Senhor, se tornou um duplo de Cristo, algo assim como um “gêmeo” (Dídimo) de Cristo, igual a Ele. Ou seja, pelo seguimento Dele, se fez conforme a Ele, até o martírio. De fato, segundo uma tradição, Tomé foi martirizado por Cristo em Malabar, na Índia. Assim também todo o discípulo de Jesus é chamado a ser “Gêmeo” dele, isto é, alguém que se con-forme a Ele, da mesma forma, da mesma fisionomia ou do mesmo aspecto, do mesmo modo de ser. Mais tarde, um belo exemplo de quem se tornou “gêmeo” de Cristo foi São Francisco, chamado por Pio XI de “outro Cristo”, de “Cristo redivivo” (Regra da OFS).

Tomé é, pois, um belo exemplo do processo da fé. Ele queria acreditar, mas não podia. O que seus companheiros narravam era extraordinário demais, inusitado demais, inesperado demais, para que ele aderisse com todo o seu ser, com todo o seu coração. Por isso dizia: “Se eu não vir em suas mãos a marca dos cravos, se eu não enfiar o meu dedo no lugar dos cravos e não enfiar a minha mão no seu lado, não acreditarei! ” Neste sentido ele é autêntico. Não basta crer no que os outros dizem à maneira de “Maria vai com as outras”. É preciso crer por sua própria experiência.

Foi o que então, aconteceu. Oito dias depois, Jesus aparece de novo no meio dos Onze, novamente os saúda desejando-lhes a paz, e, então, faz o convite a Tomé: “Aproxima o teu dedo aqui e olha as minhas mãos”. A ele seria dada a graça de não somente reconhecer o Senhor, isto é, o homem Jesus que ele seguira desde a Galileia, mas também de penetrar na profundidade do abismo do coração do próprio Deus. Ao enfiar a sua mão na pleura de Cristo, aberta pela lança, pôde ver, sentir e provar quão profunda e próxima é sua misericórdia.

Os Padres da Igreja se alegram com a ausência e com a dúvida de Tomé. São Gregório Magno diz algo assim: quando o discípulo incrédulo (leia-se: infiel) apalpava as feridas do Mestre, eram curadas em nós as feridas de nossa própria incredulidade (leia-se: de nossa própria infidelidade). A incredulidade é sempre uma cegueira. Não somos capazes de ver o invisível do visível. No caso de Tomé, e de cada um de nós, ela sempre impede que vejamos a imensidade do amor misericordioso de Cristo. Mas, Cristo não se deixa vencer por esta cegueira de seu amado discípulo. Por isso, permite-lhe um gesto de profunda intimidade: “Vem, Tomé, põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel”. Poderia haver gesto mais condescendente e misericordioso do que este!?

Tudo isso, para o nosso bem, diz o mesmo Gregório Magno, pois a incredulidade de Tomé foi mais proveitosa a nós do que a credulidade de todos os outros discípulos juntos. Pois a sua incredulidade se tornou a ocasião para depor a nossa dúvida, isto é, a nossa divisão de alma no seguimento de Cristo, para confirmar o nosso espírito no amor uno do Mestre. Tanto a Tomé como a nós o Senhor faz questão de exibir suas chagas para que vejamos que tanto elas como sua cruz em vez de vergonha ou deformidades, segundo Agostinho, são marcas da dignidade do combatente, que, aparentemente foi derrotado, mas cuja derrota transmutou-se em vitória, pois sua morte tornou-se a morte da morte (a negação da negação).

Ao ver e tocar o Senhor, Tomé conclui agora seu seguimento, que iniciara na Galileia, com este ato de fé: “Meu Senhor e meu Deus”.  O alcance deste ato de fé, porém ultrapassa todos os limites de espaço e de tempo. Pois, logo em seguida, o Senhor mesmo acrescenta: “Porque me viste, creste; bem-aventurados os que não viram e, contudo, creram”. Gregório Magno, com alegria, diz que nós estávamos compreendidos nesta bem-aventurança. Esta bem-aventurança nos pertence! Não pertence aos Apóstolos! Nós somos, pela fé, os que não viram e creram. Não vimos pela carne, mas vemos pela fé. Agostinho, por sua vez, nota que Cristo fala no pretérito, mas se refere ao futuro. Ou seja, por mais incrível que pareça, a maior bem-aventurança do seguimento de Cristo, é oferecida mais a nós que cremos sem termos visto do que aos apóstolos que puderam vê-lo em seu corpo com suas santas chagas.

Este mesmo objetivo vem assinalado pela última exortação de Jesus neste evangelho: crer, aceitar, acolher que Ele é o Cristo, o Filho de Deus, para que assim, crendo, tenhamos a vida eterna em seu nome.

 

Conclusões 

A celebração do “Domingo da Paz” ou “Domingo da misericórdia” nos leva a importantes conclusões umas em referência à vida fraterna, comunitária e outras referentes à nossa missão “ad extrta”, para fora.

Quando se procura fraternização assentados na jovialidade originária da Cruz, fonte de toda a vida cristã, as consequências entre aqueles que assim o fazem são imediatas. As diferenças dos indivíduos, como inteligência ou estultice, sabedoria ou ignorância, força ou fraqueza, santidade ou pecaminosidade, já não contam mais como motivo ou causa de escândalos, julgamentos, falatórios, condenações e bajulações. Ao contrário, tornam-se sempre nova convocação para a mútua fraternização, alegria, perdão e louvor ao Pai de todas as graças. Segundo o Evangelho, a comunidade que não sabe o que fazer com seus pobres, seus menores, seus inúteis e pecadores,  terá neles mesmos sua própria ruína. Bem se expressa Bonhoeffer:  toda comunhão cristã há de saber que não apenas os fracos necessitam dos fortes, mas que também os fortes necessitam dos fracos. A exclusão dos fracos é a morte da comunidade (Bonhoeffer, Dietrich, A Vida em Comunhão, pág. 65).

O Papa Francisco, ao anunciar o último Jubileu extraordinário da Igreja, exortava os fiéis a retomar o tema da misericórdia como o princípio básico da renovação que a Igreja se propôs a partir do Vaticano II. E, mais adiante, perguntado porque insistia neste tema, respondeu: “É porque a humanidade de hoje é uma humanidade ferida, uma humanidade que possui feridas profundas” (O Nome de Deus é misericórdia, pág. 45).

Enfim, as chagas de Jesus são as credenciais do amor tresloucado de Deus, de sua misericórdia para conosco. Por isso, o fiel seguidor de Cristo além de carregar sua Cruz em seu peito, além de expô-la na parede de suas casas, batalhará para, a exemplo de São Francisco e de seus companheiros,  trazê-la e gravá-la em sua alma e em sua vida como falam nossas Fontes: “Carregando a cruz no vestir e no comer, e em todos os seus atos, desejavam mais os opróbrios de Cristo do que as vaidades do mundo e as lisonjas enganosas; por isso, alegravam-se pelas injúrias e entristeciam-se pelas honras” (Atos 4). “E devem alegrar-se quando estiverem entre pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos de rua. E quando necessário recorram às esmolas. E não se envergonhem, mas antes recordem que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo Onipotente, enrijeceu a face como pedra duríssima  e não se envergonhou” (RNB  9,2-4).

Finalmente, uma palavra do Papa Francisco:

“Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo” (EG 270).

 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm