Solenidade de Cristo Rei – Ano B – 2018

Solenidade de Cristo Rei – Ano B – 2018

Pistas homilético-franciscanas

 

Leituras: Dn 7,13-14; Sl 92(93), 1ab.1c-2.5 (R/.1a); Ap 1,5-8; Jo 18,33b-37.

 

Tema-mensagem: A Cristo Rei do Universo, o Cordeiro imolado, toda a honra, toda a glória, toda a realeza e toda a nossa obediência.

Sentimento: reverência e amor

Introdução

Domingo passado celebrávamos o mistério do fim do mundo. Neste, ao celebrarmos o fim do ano litúrgico, celebramos Aquele que, entregando-se ao mundo, à humanidade e à toda a sua história, levou-os à sua consumação: Jesus Cristo crucificado, o Rei do Universo.

 

  1. Uma visão profética acerca do Filho do homem

Quem nos introduz neste mistério é um pequeno trecho tirado do primeiro capítulo das visões apocalípticas de Daniel (Dn 7,1 a 12,13).

A profecia deste trecho começa falando da “insistência” de Daniel em compreender a “visão noturna”. Insistir, significa, encaminhar-se cada vez mais para dentro, para a raiz dos fatos a fim de ver e contemplar a força originária que sustenta e conduz a vida e a história dos homens. E esta é a característica essencial e fundamental do profeta. Por isso, dentro deste empenho, Daniel “viu entre as nuvens um como filho do homem que vinha se aproximando do Ancião de muitos dias e foi conduzido à sua presença”. Na interpretação cristã deste texto, o Filho do Homem é Jesus Cristo, o Verbo, o Filho de Deus, que se fez carne, isto é, Filho do Homem que veio morar entre nós, na plenitude dos tempos, a fim de levar, assim, a humanidade, a história à sua consumação. om

 

 

Ao dizer que este filho do homem “vinha se aproximando”, Daniel está vendo e profetizando o como está se dando o andar final, o perfazer-se, o consumar-se da Humanidade, o vir-a-ser do ser filho do homem. O humano de cada pessoa, bem como de todo um povo, de toda a humanidade não existe pronto, feito, nem dá saltos. Mas, de situação em situação, de perseguição em perseguição vai se tornando cada vez mais próximo de sua identidade, do seu fim.

Na visão cristã da história do mundo, a sua meta, o seu fim consiste na união de Deus com a Humanidade, de modo tão íntimo, que é como a união da cabeça com o corpo. Cristo-cabeça e humanidade-corpo formam uma unidade íntima, muito mais íntima que a comunhão entre esposo/esposa. Assim, pela encarnação, o Filho de Deus se faz Filho do Homem e os filhos dos homens podem se tornar, enfim, plenamente, filhos de Deus. Pela sua morte-ressurreição, Ele já realizou em plenitude este desígnio do Pai, esta obra. Em nós, porém, seu corpo, ainda está em caminho, em busca.

 O filho do homem, então, “aproximando-se do Ancião de muitos dias, foi conduzido à sua presença”. O velho, o ancião sempre foi tido como figura não só da longevidade, mas também da eternidade, figura Daquele que não está sujeito às limitações do tempo; Daquele que existe antes de todas as origens porque ele é a origem de todas elas. Em termos teológicos, o Filho do Homem, Jesus Cristo, tendo perseverado fiel à vontade do Pai até a morte e morte de Cruz, com sua ressurreição e ascensão foi reconduzido à sua presença: à presença Daquele que é o princípio de todas as coisas, de toda a humanidade e de toda a sua história.

Daniel, assim, está prevendo e anunciando a mensagem central que mais tarde ocupará o coração de toda a Boa Nova de Jesus: O Reino de Deus, o Reino do Pai, o Reino dos céus do qual Ele, Jesus, será o Rei. O Reino de Cristo, o Crucificado, aquele que se esvaziou e se rebaixou até os abismos da condição humana, e se fez servo de tudo e de todos, é um reino universal sem fim:

“E lhe foi dada soberania, glória e realeza: as pessoas de todos os povos, nações e línguas o serviam. Sua soberania é uma soberania eterna, que não passará, e sua realeza, uma realeza que jamais será destruída”. Aquele que mais se rebaixou, que mais se humilhou, que desceu mais fundo, será, pois, o fundamento, o excelso, o mais honrado, o mais sublime, de toda a humanidade, de toda a história, de todo o universo criado. Desde a Cruz ele reinará.

São Francisco, no seu Ofício da Paixão, salmo VII, celebra esta realeza de Jesus Cristo assim:

Povos todos, batei palmas* jubilai em Deus com vozes de exultação. / Porque o Senhor é excelso, terrível Rei * grande sobre toda a terra. / Pois, o santíssimo Pai do Céu, nosso Rei antes dos séculos * do alto enviou seu dileto Filho * e operou a salvação no meio da terra. / Alegrem-se os céus e exulte a terra * comova-se o mar e sua vastidão * alegrem-se os campos e tudo o que neles existe. / Cantai ao Senhor um cântico novo * cantai ao Senhor toda a terra. / Pois grande é o Senhor e mui digno de louvor * é terrível sobre todos os deuses. / Trazei ao Senhor, ó família das nações * trazei ao Senhor glória e honra * trazei ao Senhor glória ao seu nome. / Erguei vossos corpos e carregai a sua santa cruz * e segui até o fim os seus santíssimos preceitos. / Comova-se ante a sua face a terra inteira * proclamai entre os povos que do lenho reinou o Senhor.

 

  1. Um Rei que é do céu, mas que vive na terra e para a terra

Como evangelho para a celebração do solene mistério deste Domingo – Cristo, Rei do universo – neste ano, a liturgia segue o relato de João, mais precisamente, o diálogo de Pilatos com Jesus acerca de sua realeza.

 

2.1.   Um rei que reina entregando-se nas mãos dos reis deste mundo

A primeira pergunta de Pilatos a Jesus – “Tu és o rei dos judeus?” – revela, primeiramente, sua grande preocupação: estarei eu, pensa Pilatos, diante de um possível concorrente meu e do próprio imperador romano? Mas, sem querer, revela também a essência da identidade de Jesus. Ou seja, o julgamento vai girar em torno dessa única questão: quem é, verdadeiramente, o Rei do universo, da humanidade e da história? Enfim, a quem nós humanos devemos obedecer, servir e prestar contas? Mas, por outro lado, como crer que um simples e pobre nazareno, sem exércitos, sem armas, sem nenhuma expressão social, política e econômica possa pretender algum reinado? Será ele um rei oculto de um reinado oculto? 

Assim, a narrativa de João mais ou antes de um relato meramente histórico, tem um objetivo teológico ou religioso: mostrar aos cristãos a verdadeira realeza de Jesus à qual todos nós devemos servir e acolher. E quem faz isso é o próprio Jesus: “O meu reino não é deste mundo”. Ou seja, Ele é rei, sim, mas não como os mandantes deste mundo. Jesus e seu reino não pertencem a este sistema no qual se movem os governantes da terra como ele – Pilatos – e o próprio César, imperador romano que se garantem pelo poder da opressão, das armas e da injustiça. Enquanto seu poder vem de baixo, dos homens o de Jesus vem das nuvens,  de cima, do alto, de Deus. Por isso, ao contrário dos governantes deste mundo que se impõem aos outros, Ele, abandonando toda a sua dignidade ou poderio de Deus, se abaixa, se submete, se entrega às mãos não apenas dos poderosos deste mundo, mas também, de toda a humana criatura: é o Servo dos servos que lavou os pés dos discípulos, que se confiou a Pedro e que até ordenou a Judas que fosse providenciar logo sua traição.

 

Nosso problema é que, normalmente, o que conhecemos como o poder de dominação, não é a essência do poder. É sua inessência. A essência do poder, porém, se confrontada com a inessência do poder, aparece como não-poder, como fraqueza e ternura, como minoridade e serviço. No entanto, é nessa essência inocente do poder que está a verdadeira autoridade. Autoridade quer dizer a capacidade de deixar ser e fazer ser, de deixar e fazer aumentar o vigor da vida, da sua cordialidade, do seu viço, da sua alegria, da sua jovialidade. Esta autoridade brilha com todo seu esplendor na noite do seu Natal, bem como na noite do Lava-Pés, da Eucaristia e principalmente na tarde da sexta-feira santa. Na sua crucificação Jesus mostrou em que consiste o seu poder, a sua autoridade, a vigência e a regência de seu reino, de seu reinado: no servir. No dia de sua oferenda na Cruz, ele se mostrou como o Servo sofredor, que faz ressurgir o vigor da vida, através do amor consumado. Assim, o poder, a autoridade do Cristo Rei se mostra na cruz como serviço, como servir.

Por isso, admoestando seus irmãos, São Francisco dizia que nenhum deles devia apropriar-se da prelatura e que os irmãos que eram constituídos sobre os outros, deviam gloriar-se tanto dessa superioridade como se estivessem encarregados de lavar-lhes os pés (Cf. Ad 4). Assim, o modo de reinar como servo ou de servir como rei é frágil e vulnerável como a criança. Por isso, podemos também de­finir o poder do Deus de Jesus Cristo como a minoridade de Deus e Deus de minoridade.

 

  • O reinado da inocência

Pilatos, ansioso, por saber se Jesus era rei, ouve dele esta resposta: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus”.

A surpresa para Pilatos não podia ser maior: um rei que se diz verdadeiramente rei, mas que não é deste mundo e que por isso, não luta, não se arma, não impõe nada a ninguém. Está mais claro do que nunca que, para Pilatos, Jesus era inocente, pois além de não cultivar nenhuma pretensão a respeito deste mundo – o que era mais sério: não cometera nenhum mal (Cf. Mt 27,23). Pilatos, porém, tomado pela cegueira do poder, com medo de perder o mando, em vez de levar adiante o processo proclamando a inocência de Jesus, lava as mãos, tornando-se assim, tão culpado ou mais quanto os maiorais do povo que o entregaram a ele. Enquanto isso, Jesus permanece à sua frente calmo, soberano, nas suas palavras e nos seus silêncios. Pela decisão – ou melhor, pela indecisão do governador romano – Jesus sofre a pena de morte da lei romana, a lei do poder do mundo – a crucificação e não a pena de morte da lei judaica – o apedrejamento. Por isso, fazendo a memória desse mistério, proclamamos todos os Domingos no “Credo” da missa: “padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos”.

João, mais do que fatos, está proclamando que a morte de Cruz – paradoxalmente, a morte mais ignominiosa de todas – tem um sentido maior: a exaltação e a glorificação divina de Jesus (Jo 3, 14; 8, 28; 12, 32-33). Levantado na Cruz, na sua inocência, Jesus atrai para si todos os homens. Todos, judeus e gentios, podem se tornar, assim, discípulos de Deus, o Pai (Cf. Jo 6, 44). É enfim a exaltação do reinado da inocência divina.

Uma antiga legenda, a respeito de Mestre Eckhart, nos ensina como é o reinado da inocência divina. Segundo esta legenda, Mestre Eckhart deu-se de encontro com um lindo garoto nu. E conversou com ele, num estranho diálogo. Perguntou-lhe donde vinha. “Venho de Deus”, disse ele. “E onde o deixaste?”, perguntou o mestre. E a resposta foi: “Nos corações virtuosos”. E o diálogo se seguiu:

“Para onde vais?”

“Para Deus!”.

“Onde o encontras?”

“Onde larguei todas as criaturas”.

“Quem és tu?”

“Sou um rei!”

“Onde está o teu reino?”

“No meu coração”.

“Toma cuidado que ninguém o compartilhe contigo!”

“É o que faço”.

 

Depois disso o conduziu à sua cela e disse: “toma a veste que queiras!”.  E o menino recusou: “Deixaria de ser rei!”. E desapareceu. Disse-se que fora o próprio Cristo que viera se divertir com ele.

Nessa história estranhamos a inocência do poder deste Menino nu. É a inocência do poder de Deus. Inocência significa: que não causa dano, que não é nocivo. Inocente é o poder de Cristo, pois, é o poder e a autoridade do vigor do amor, que é totalmente nu, isto é, totalmente despojado, por ser amor que serve, que serve como o menor, na fraqueza e na ternura, no frescor e na nascividade de uma criança. A inocência do poder é a pobreza e a humildade do amor.

Por isso, dizia o papa Bento XVI que a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração” (EG 14). O proselitismo se impõe, a atração se propõe. Nada, porém, atrai mais do que a bondade, o amor. Por isto, o que mais atrai senão a inocência de um Deus que nasce numa estrebaria, lava os pés dos discípulos, se faz eucaristia e se doa aos homens até morte e morte de cruz!?

 

  • Cruz caminho da inocência divina

Jesus Cristo reina, portanto pela autoridade de sua inocência, de seu coração misericordioso, poderíamos dizer, até, “mole”, à semelhança do coração de mãe e não do coração de um mandante semelhante aos senhores e maiorais deste mundo. Na Cruz, como já dissemos, é que esta inocência revela todo o seu esplendor. Cruz, porém, não apenas como um fato, mas como a consumação, a radicalidade de uma decisão, ou melhor de um chamado, de uma vocação-missão: o chamado-missão do Pai de restaurar a ordem da criação rompida pela desobediência de Adão; de remir o homem de sua autorreferência para colocá-lo, de novo, pela obediência de Cristo, na intimidade do Pai, na Ordem da Caridade.

Por isso, fazer a vontade do Pai soa em todo o Evangelho como o alimento, o pão com o qual Ele deve se alimentar em todos os momentos de sua vida. Uma reconstrução que deve ser efetuada a partir de dentro, da raiz do próprio humano. Por isso, era indispensável que Deus através da encarnação, assumisse e sofresse, carregasse inteiramente nosso humano, nosso pecado. Por isso, também, ele sempre se definiu como filho do homem, jamais como Filho de Deus. Só ao dar o último suspiro, depois de haver percorrido todo o percurso de um filho do homem é que foi reconhecido e proclamado como verdadeiro “Filho de Deus” (Mt 27,24). 

Assim, só depois de haver percorrido todo o caminho humano, na Cruz, é que Cristo  não apenas recebe a sua investidura de Rei, mas também manifesta o modo de ser do seu reinado: o reinado da inocência do poder de Deus, a vigência da jovialidade, que jorra da gratuidade do amor, que se doa sem porquê nem para quê, totalmente, consumadamente. É o modo de ser do inocente, do puro, do limpo, do ingênuo, do justo, da criança. Lembremos as tantas insistências de Jesus: “Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”!

Na criança, no pobre, no menor, o mal não vinga, não vai adiante, não cria raízes, não cresce. Morre nela. Esse modo de ser, diz Francisco, é a Vida-Regra-Missão do frade menor. Por isso, os frades, “chamados da cruz para a cruz” (Atos, 5,1) deviam carregar o pecado do mundo, serem os lixeiros das mixórdias e maldades da humanidade. Por isso, quando Frei Bernardo foi enviado a evangelizar Bolonha, fundando lá um convento, pondo a Regra em seu regaço, sentava-se aplicadamente todos os dias na praça da cidade a fim de receber com alegria as injúrias, os insultos e opróbrios das pessoas que por lá passavam. Em compensação, os cidadãos aliviados do peso de suas maldades e livres de seu mau humor, descarregados em cima de Bernardo, iam para seus trabalhos e voltavam para suas casas aliviados, alegres e felizes. Bernardo imitava assim, o inocente Cordeiro de Deus que carrega o pecado do mundo. E quando os cidadãos de Bolonha descobrindo que ele era um religioso lhe ofereceram uma casa acolhedora foi se embora para outra cidade a fim de recomeçar lá, de novo, sua missão. Quem age assim, na pobreza, na humildade, na fraqueza e na ternura do amor, é verdadeiramente fundador, instituidor, é co-fundador do Reino de Deus na terra, na história, onde quer que ele esteja presente, quando quer que ele atue, isto é, aja e sofra.

 

  • Testemunho da verdade

O diálogo com Pilatos se encerra com esta resposta firme, clara de Jesus: “Tu o dizes, eu sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18,37).

Pascal escreveu certa vez em seus fragmentos: “Não é aqui a terra da verdade; ela vagueia desconhecida por entre os homens. Deus a encobriu com um véu que a deixa desconhecida daqueles que não ouvem a sua voz…” (Pensamentos, fragmento 840, ed. Lafuma).

Jesus Cristo é o Deus escondido (Deus absconditus). É o rei oculto de um reino oculto: o reino da verdade. A revelação da verdade só pode ser mesmo pelo testemunho como Jesus o faz através do seu martírio.

Mas o reino da verdade não é aqui. Aqui, entre nós, homens, errantes, a não-verdade, antes de ser exceção, é a regra. Aqui, entre nós, sucumbimos a tantas ilusões e a tantos enganos, a tantas distorções e a tantas dissimulações. Aqui, entre nós, andamos tão errantes, tão desorientados, que encontrar a verdade é sempre uma decisão que requer empenho, sofrimento, luta. Só a muito custo, entre gemidos e lágrimas, é que o homem consegue vislumbrar a verdade, o desvelamento, a claridade da realidade, do real realíssimo. Por isso, o reino de Cristo, que é o Reino da Verdade, permanece oculto, velado, entre nós. Por isso, o seu reino não é “deste mundo” tão prisioneiro da distorção. Por isso, Cristo não é um rei “deste mundo”.

Jesus Cristo é a Verdade porque é a revelação do Pai. Quem o vê, vê o Pai. Seu testemunho da Verdade é, pois, o testemunho de Si e, ao mesmo tempo, o testemunho do Pai. O testemunho acerca do Pai é a paixão que perpassa e consome a vida toda de Jesus: suas palavras, orações, gestos e obras. Seu testemunho, porém, não é apenas de um homem, mas do próprio Deus, uma vez que Ele é “um com o Pai”. Por isso, seu testemunho é fiel. Nele o homem pode fiar, pois Ele não é alguém que aponta para a verdade que está além e acima dele, mas a revela Nele mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim’” (Jo 14, 6).

 

 

  1. A última revelação de Jesus Cristo

Última, aqui mais que derradeira em oposição a outras, principalmente, à primeira, tem o sentido de perfeita, consumada, aquela que resume e na qual se fazem presentes todas as demais revelações. Pois bem, a última revelação de Jesus Cristo se dá pelo livro do Apocalipse do qual é tirada a segunda leitura da missa de hoje, mais precisamente dos versos que constituem a sua Saudação.

 

3.1. Uma revelação que salva

A palavra saudação (no latim, salutatio) contém a palavra latina salus que significa, propriamente, saúde. Mas, saúde, mais que a dimensão físico-biológica indica o estado da existência humana quando nasciva, inteiriça, livre de buscas e procedimentos estranhos, espúrios e, ou opostos à pureza de sua origem. Assim, a salvação – a verdadeira saúde – operada por Deus por meio de Jesus Cristo, não é outra coisa senão a recondução da existência humana, decaída, para a plenitude de reconciliação e comunhão com seu originário, o Pai, e com todas as criaturas, a comunhão universal. É para esta saúde ou salvação que o Apocalipse quer nos reconduzir.

Conhecido, também, como “O livro da revelação de Jesus Cristo” (Ap 1,1), ele foi escrito num período muito crítico para os cristãos perseguidos cruelmente. Em meio a tantas e tão desumanas tribulações, dúvidas profundas nasciam nos corações dos fiéis: Onde está o Reino de Deus que nos foi prometido por Cristo, um reino de paz e de justiça? Onde está o seu triunfo sobre a morte e seus inimigos? Nenhuma de suas promessas pareciam acontecer.

Foi para atender, em parte, a esta situação, que Jesus convoca seus eleitos dizendo: “Feliz aquele que lê e aqueles que ouvem as palavras desta profecia e os que observam as coisas nelas escrita, pois o tempo está próximo” (Ap 1,3).

Vem então, em forma de anúncio solene e oficial, a razão desta felicidade: “Jesus Cristo é a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dente os mortos, o soberano dos reis da terra” (Ap 1,5). Três títulos numa breve frase e de suma importância:

– Ele é “a testemunha fiel” (no grego: ho martys ho pistós). Por ter amado e observado a vontade, o amor do Pai desde o início, mas principalmente através do seu martírio (testemunho) na cruz, tornou-se a testemunha fiel do Pai para todos os homens. Além de atestar a verdade, Jesus Cristo é a testemunha fiel também por seu amor ardentíssimo através do qual não pôde jamais trair o Pai, desdizê-lo ou contradizê-lo. Ele viveu e morreu para que os homens soubessem que Deus é amor e para que aqueles que acolhessem tal revelação se tornassem, também eles, testemunhas fieis do Amor de Deus, amando-se uns aos outros.

 – Ao martírio – cruz – segue a ressurreição: Jesus é “o primeiro a ressuscitar dentre os mortos”.  Ressurreição, não como prêmio, mas como nova forma de estar junto com os seus seguidores e de comungar de suas alegrias e dores, esperanças e angústias e, principalmente como esperança de que se Ele ressuscitou, também os que estiverem e perseverarem com Ele haverão de ressuscitar. Neste ou por este título os fiéis são chamados a se tornarem com Jesus os redentores ou reconstrutores da humanidade e de sua história. A ressurreição é o novo modo de Jesus levar – através de seus seguidores – o martírio da cruz redentora até os confins do mundo e até o fim dos tempos.

– Segue então o título de “o soberano dos reis da terra”. Se pela sua inocência testemunhada na cruz ele atraiu todos a si, tornando-se o Rei do Universo, todos aqueles que comungarem desse seu caminho se tornarão não apenas “um reino de sacerdotes”, mas também, “reinarão sobre toda a terra” (Ap 5,10), não como os príncipes deste mundo, mas como servos menores, diria São Francisco.

 

3.2. Olhai, Ele vem

Jesus Cristo é o Deus que vem. O Deus vindouro. O Deus que vigora no vir, no advir, no sobrevir do reino da Verdade. Mas, para vê-lo é preciso olhar: “Olhai!” Olhar, mais que um voltar nossos olhos para, significa deixar-se tocar, atingir por aquilo que por nós Ele fez: nos amou tanto a ponto de derramar seu sangue para nos libertar de nossos pecados. “Olhai”, pois o mesmo Deus, que se revelou a Moisés (Ex. 3, 14) como Aquele que é, ou seja, que disse “Eu sou aquele que sou”, é saudado e adorado, agora no Apocalipse, como Aquele que é, que era e que virá (Ap. 4, 11). Esse nome nos conforta: Deus não somente caminhou conosco em nosso passado, como também caminha conosco agora e caminhará ainda no futuro, até o nosso fim. Assim sendo, para o crente, todo o tempo é tempo de espera do inesperado do advento do Deus que vem.

O Apocalipse, portanto, dá expressão ao caráter escatológico – definitivo – da mensagem do Evangelho; e, por isso, reinterpreta o nome de Deus como “Aquele que é, que era e que vem” (Ap. 1, 4; Cf. também 1, 8; 4, 8; 11, 17; 16, 5).  Ao mesmo tempo que acena para a imanência de Deus na história, acena também a sua transmanência e transcendência; Deus é o Princípio e o Fim; o Onipotente, o Santo; melhor ainda, o Santo, Santo, Santo. Deus é, pois, também o futuro do homem. É o vindouro. No relacionamento com o Deus eterno, o cristão experimenta o tempo como a urgência de uma decisão no presente, uma decisão que toma antecipadamente, uma posição de receptividade, de um amor feito de espera e paciência, em relação ao “Deus vindouro”.

 

Conclusão

 

Numa época em que mais do que nunca o homem experimenta soberbamente seu poderio sobre o mundo e sobre a história, fazendo-se o rei deste mundo, a solenidade de Cristo Rei do Universo adquire um significado profético: este mundo, esta história, esta humanidade tem dono, tem um Senhor: Jesus Cristo, Crucificado.

 Por isso, com muito acerto diz o Papa Francisco: “As criaturas deste mundo não podem ser consideradas um bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas a vida» (Sab 11, 26). Isto gera a convicção de que nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LS 89).

O reinado de Deus sobre todas as coisas proclama também o destino comum de todos os bens deste mundo. Por isso, assevera ainda nosso Papa: “Hoje, os crentes e não-crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos. Para os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao Criador, porque Deus criou o mundo para todos. Por conseguinte, toda a abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos… A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. São João Paulo II lembrou esta doutrina, com grande ênfase, dizendo que «Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém» (LS 93).

A solenidade de Cristo Rei nos leva ao desafio de inverter esta atitude, de fazer-nos, como Francisco, os arautos e servos de tão grandes Rei. Além do mais, se as criaturas todas estão sob o reinado e o cuidado de Deus que é Pai só nos resta, como ele, cantar: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas…” (Cf. LS 87) ou então, cairmos de joelhos para rezar : “Nós vos adoramos, santíssimo Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as vossas igrejas que estão pelo mundo inteiro, e vos bendizemos, porque pela vossa santa cruz remistes o mundo” (1C 45;T4).

 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini