27° Domingo do Tempo Comum

27º Domingo do TC – Ano B – 2018

07/10/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Gn 2,18-24; Sl 127 (128), 1-2.3.4-5.6 (R/. Cf. 5); Hb 2,9-11; Mc 10, 2-16

 

Tema-Mensagem: No princípio, homem e mulher chamados, pelos sagrados laços do matrimônio, para infundir no mundo a fonte que tudo redime, tudo salva: a alegria do Amor-Doação de Deus pela humanidade.

Sentimento: amor-doação

Introdução:

A liturgia de hoje nos leva a celebrar com gratidão o amor da Trindade divina – testemunhado em e por Jesus Cristo crucificado, a alegria do Evangelho – ressoando e crepitando no interior da vida matrimonial e familiar.

 

  1. Do mistério das sementes do Criador – do incriado – na criatura – no criado

A primeira leitura nos remete à gênese deste mistério, isto é, à sua forma originária, nascedoura. Ela é tirada do capítulo 2 do livro do Gênesis, que, por sua vez é um desdobramento da narrativa do início do mistério da criação (Gn 1).

 

1.1. Do início do mistério do humano

No primeiro capítulo do Gênesis lemos: “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança…” (Gn 1, 26).

Isto significa que na obra dos cinco primeiros dias esta imagem não aparecia, ou seja, que a sua obra ainda não se completara. Isto Ele o fará agora, dando origem à uma nova criatura na qual vai imprimir-lhe a sua imagem. As criaturas, até então, embora tivessem surgido da liberdade de Deus, não haviam chegado à plenitude de sua perfeição porque não eram livres, mas condicionadas. Deus quis criar, então, o livre, o incondicionado, em meio ao condicionado, o infinito em meio ao finito.

A grandeza desse criado se alude com o plural: “façamos…”. Estamos, pois, diante de algo inusitado, totalmente novo, em referência a tudo o mais, que já tinha sido criado como o “belo” e o “bom” nos cinco dias anteriores. Se a criação até então fora levada a efeito com um impessoal “Faça-se!” (Cf. Gn 1,1-25), agora, com a criação do humano, é com o pessoal e plural: “Façamos!”.  Anuncia-se, assim e aqui, o “gran finale” da obra da criação: o “muito belo”, o “muito bom!” Trata-se de uma obra nova, livre, incondicionada. O homem assemelha a Deus enquanto é livre. Se Deus é uma liberdade incriada, o homem é uma liberdade criada.

O autor da liberdade criada se revela, aqui, como um “nós”. Posteriormente, os cristãos verão neste “façamos” o mistério da Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A referida imagem, portanto, será a das Três Pessoas divinas em sua admirável comunhão de profundo respeito e acolhida às suas diferenças.

Assim, no sexto dia Deus não somente cria, mas entra em relacionamento íntimo com o ser que ele cria. É o que os antigos chamavam de “Trinitatis inhabitatio” – a íntima habitação de Deus – a Trindade – no homem. Eis que a liberdade incriada vem celebrar a si mesma, fazer sua festa, na liberdade criada. A criaturalidade do homem, portanto é diferente da criaturalidade das demais criaturas porque faz parte do ser-livre-para-outro-criado. Eis a identidade mais profunda, íntima e, própria do homem.

 

1.2. Do mistério Homem e Mulher

Este modo de ser-livre-para-outro-criado vai brilhar logo adiante: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou; criou-os macho e fêmea” (Gn 1, 27). Deus cria o homem como realidade dual. O humano se dá na dualidade de varão e mulher. A mulher é o outro do varão. O varão, o outro da mulher. A criaturalidade do homem, diferentemente das demais criaturas, traz consigo esta novidade: o relacionamento livre com outro. Este é seu modo de ser, não como uma propriedade ou qualidade adquirida, mas como seu princípio originário. O ser-para-outro e ser-com-o-outro, em liberdade, é o constitutivo do humano, sua semelhança com o Criador.

Assim, o homem, em sua realidade dual, varão e mulher, está posto em meio ao céu e à terra e a todo o vivente, como a imagem de Deus no criado: lugar da liberdade, do ser-livre-para-o-outro no ser-com-o-outro, do relacionamento face-a-face, (pessoal: olhos nos olhos, de coração a coração).

 Na dinâmica desta doação-recepção mútua, o casal humano se faz réplica da Trindade celeste – Pai e Filho e Espírito Santo – na terra. Por isso, este amor, como todo amor, é fecundo. E é desta fecundidade que surge a família. Por isso, de novo, na família, vige a réplica, a imagem terrena da Trindade – Pai e Filho e Espírito Santo. Portanto, o que estrutura a família é a paternidade-maternidade, a filiação, e o amor de genitores e filhos. Não à toa Paulo pôde dizer, na Carta aos Efésios: “Este mistério é grande…” (Ef. 5, 32).

 

1.3. Do mistério da mulher

Deus havia, pois, criado o homem à semelhança Dele, isto é, como ser-com-o-outro e ser-para-o-outro. Não podia, pois, agora, abandoná-lo sem abrir-lhe a porta que lhe possibilitasse a concretização desse chamado.  A resposta a este desígnio é apresentada no segundo capítulo do Gênesis: “O Senhor Deus disse: ‘não é bom para o homem ficar sozinho. Quero fazer para ele uma ajuda que lhe seja face-a-face’” (Gn 2, 18).

 

1.3.1. Da mulher como ajuda face-a-face, lado a lado, para o homem

Às vezes argumenta-se que declarar a mulher como uma ajuda para o homem seria depreciá-la. Mas, talvez se possa até dizer o contrário: é sua grandeza, ou seja, sem ela o homem não seria verdadeiramente humano. Isso significa que o varão não se basta a si mesmo, que, sem o seu outro, sem o diferente, a mulher, ele nem mesmo pode ser o que ele é. Na Bíblia, que o outro seja uma ajuda, não inferior, mas uma ajuda face-a-face, lado-a-lado, não tem nada de depreciativo. Aliás, na Bíblia, Deus mesmo é chamado de ajuda para o homem.

 Esta ajuda o homem, Adão (o terroso, o que brota da terra), não encontrou nos viventes até então criados, nos animais. Eles são corpos, viventes como ele. Mas não são face-a-face (olhos nos olhos, de coração a coração) com ele. Os viventes, os animais, são irmãos do homem, pois, como ele, provêm da terra, mas não são face-a-face (olhos nos olhos, de coração a coração) com o homem. O mistério do encontro não se realiza aqui no face-a-face. Há uma proximidade e uma comunhão entre homem e animais. Mas, há também um abismo e uma estranheza. O homem acede ao mistério do ser dos viventes dando-lhes nomes. Mas, a convivência com eles não se põe à altura do seu ser. Ele precisa de um outro que lhe seja propriamente outro: de idêntica dignidade e parceiro, companheiro, no mesmo ser. O homem está, pois, só.

Então, o poeta sagrado continua: “O Senhor Deus fez cair num torpor o homem, que adormeceu; tomou uma das costelas e voltou a fechar a carne no lugar dela. O Senhor Deus transformou a costela que tirara do homem em uma mulher e levou-a a ele…”. Bonhoeffer comenta: “aquilo que o homem, desperto, não consegue proporcionar-se, que não encontra, Deus faz surgir atuando sobre ele, enquanto dorme”. Deus leva o homem para o seu não-saber para então, do mistério dele – do homem – fazer surgir um outro primordial, de idêntica dignidade no idêntico ser: o mistério da mulher. Vemos, assim, que na diferença de varão e mulher vigora a identidade essencial, específica, do humano. O amor transforma esta identidade na diferença em igualdade de relacionamentos. Mestre Eckhart diz: “Assim, deve ser um o teu amor, pois o amor não quer estar em nenhum lugar a não ser ali onde existe igualdade. Uma mulher e um homem são desiguais; no amor, porém, eles são totalmente iguais. Por isso a Escritura diz muito bem que Deus fez a mulher de uma costela, tirando-a do lado do homem, e não da cabeça ou dos pés” (Sermão 27).

 

1.3.2. Do mistério da unidade na dualidade

 Por isso, a surpresa: “O homem exclamou: ‘Eis, desta vez, o osso dos meus ossos e a carne da minha carne! Ela se chamará humana pois do humano foi tirada!’”. O homem abre os olhos, desperta, e vê a mulher à luz do dom de Deus. Emergindo do seu não-saber, sabe da mulher a partir do mistério da gratuidade de Deus. Ela é a dádiva por excelência. É-lhe co-essencial. Entre ele e ela há um vínculo único, intimíssimo. Um vínculo de co-pertença: ele pertence a ela e ela pertence a ele, no encontro face-a-face. Vem ao encontro dele com um rosto, olhos nos olhos com ele, é-lhe um Tu. A esta exclamação do homem, no Gênesis, corresponderá a exclamação da mulher, no Cântico dos Cânticos: “o meu amado é para mim e eu para ele (…). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim” (2, 16; 6, 3). Agora não são um-sem-o-outro. Agora é um-com-o-outro, um-para-o-outro. Os dois são um. É o mistério do amor.

Grande é este mistério: os dois são um. Desde a origem, são um. São um sem deixar de serem dois. Não se trata de fusão e confusão. Trata-se de co-pertença das diferenças na identidade e da dignidade do ser. Recíproca co-pertença (unidade) no ser reciprocamente diversos. Na mulher, o homem encontra uma ajuda face-a-face. A mulher é, para o homem, uma companheira na transcendência da liberdade e na finitude agraciada da vida.

Com o homem, ela suporta tanto o apanágio da liberdade quanto a graça da finitude. Ela ajuda-o a amar este ser, esta existência, esta vida. Isto quer dizer: a receber tudo à luz do dom, da gratuidade divina. A mulher é o outro: o limite. Amar a mulher é, para o homem, aprender a amar o limite, como finitude – não desgraçada – mas agraciada. Amando a mulher, o outro primordial, o homem aprende a amar todo e qualquer outro homem. O inverso também vale, o homem que não aprende a amar sua mulher jamais saberá amar os outros homens e demais criaturas.

 A alteridade do outro, por sua vez, consiste em sua transcendência: o outro sempre é o que ultrapassa, transcende, o domínio do próprio saber, para dentro do não-saber, do mistério. Amar o outro significa acolhê-lo no seu mistério, no mistério de sua diferença. Significa acolher a diferença no seio da própria identidade. Para o homem, amar a mulher significa abrir-se para o acolhimento de toda a diferença. Significa acolher o outro como outro. É uma obra – um opus – para o qual a vida toda é sempre pouca.

“Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe para ligar-se à sua mulher, e se tornam uma só carne” (Gn 2, 24). “Este mistério é grande…” (Ef. 5, 32). Deixar pai e mãe é convocação para ver além do familiar e costumeiro e assim abrir-se ao estranho e doar-se a ele. Nesta convocação a graça da sexualidade, do vigor do sexo, se torna caminho da santidade, celebração do mistério do encontro face-a-face, em que acontece o encontro de unidade e diversidade, de identidade e diferença, em recíproca, livre, amorosa, doação-recepção. Essa unidade se realiza de modo tanto mais pregnante quanto mais é carnal, afetiva, espiritual (pessoal).

 

  1. Um grande mistério na pequenez e fragilidade do cotidiano

Este mistério grande recolhe-se na pequenez e na fragilidade – para não dizer, nas banalidades – do cotidiano sem perder, porém, a sua própria grandeza. O salmo 127/126 escolhido para a meditação da missa de hoje, celebra a dádiva deste mistério transformado na riqueza da vida familiar.

A união do casal se realiza no filho. O filho leva corporal e espiritualmente em si a herança dos dois. De duas carnes nasce uma outra carne. De duas vidas, uma outra vida. De dois seres que se tornam um, nasce um outro ser. O filho realiza o mistério da unidade na pluralidade. A casa brilha como um candelabro. Às bênçãos da esposa e dos filhos, o salmista acrescenta a bênção do fruto do trabalho e da prosperidade da cidade. Eis a grandeza do mistério no terra a terra da vida cotidiana. Não à toa o Papa Francisco escolheu este salmo para fazer pensar a grandeza da vida familiar na sua exortação “Amoris Laetitia”.

“Grande é este mistério…”. É a grandeza deste mistério que é celebrada sacramentalmente no matrimônio cristão. Sacramento significa: sinal sagrado que gera e comunica graça divina. Graça, porém, não significa apenas ajuda divina, “mas o próprio Deus que, na plenitude infinita da sua vida e da sua magnificência inefável, se quer prodigalizar diretamente à sua criatura” finita (Rahner).

Por isso, o Papa Francisco faz questão de fundamentar todo o capítulo IV – “O Amor no Matrimônio” – de sua Exortação Apostólica, já mencionada, com o famoso Hino à Caridade de São Paulo aos Coríntios: “Se eu tivesse toda a fé, a ponto de remover montanhas, mas não tivesse amor, eu seria nada…” (1 Cor 13,2…).

Assim, a plenitude da vida matrimonial cristã se dá no perfazer da via excelente da caridade inaugurada por Cristo.

 

  1. Do homem e da mulher na nova criação

O mistério da comunhão homem-mulher estabelecida nos primórdios da criação é retomada no evangelho de hoje, através da famosa discussão dos fariseus com Jesus acerca do divórcio.

 

3.1. Do grande ensinamento: desde o princípio homem e mulher

As circunstâncias nos são narradas por Marcos: “Partindo dali, Jesus vai para o território da Judeia além do Jordão” – vai para as populações mais pobres e simples da Judeia, já que Jerusalém tinha se tornado um antro de soberba, malícia e corrupção. “As multidões novamente se reúnem à volta dele, e ele mais uma vez as ensinava, segundo seu costume”.

 

3.1.1. Da desmistificação dos fariseus

As multidões vêm a Ele para que cure seus enfermos e se deixa ensinar por Ele. Tanto as curas que faz quanto o ensino que doa são obras de sua misericórdia, isto é, de seu amor enternecido pelo ser humano, especialmente pelos pequenos, os menores entre os homens. Em contrapartida, “adiantam-se uns fariseus e, para prova-lo, perguntaram-lhe se é permitido a um homem repudiar sua mulher”. Enquanto o povo vem para se deixar curar e ensinar por Jesus, os fariseus vêm para pô-lo à prova, para disputar com ele. A disputa levantada por eles é sobre o divórcio.

O fariseu é o homem defasado, divorciado, da divisão, do conflito, da problemática ética das pessoas, principalmente dos pobres e pecadores. Jesus Cristo é, porém, o homem da unidade originária, que possibilita ao ser humano, defasado, divorciado, reencontrar a unidade, a simplicidade, e, com isso, a alegria. O fariseu é o homem que todos nós, de alguma maneira somos, isto é, o homem da divisão, do divórcio da consciência do bem e do mal. É o homem que julga, que se põe como juiz severo de si mesmo e do outro. É o homem das avaliações e das escolhas. Quem, com muita clareza, mostra a diferença entre o fariseu e Jesus é o teólogo D. Bonhoeffer:

Como a pergunta e a tentação dos fariseus provêm da divisão provocada pelo conhecimento do bem e do mal, assim a resposta de Jesus surge da unidade com Deus, com a origem, da superação da divisão do homem com Deus. Os fariseus e Jesus falam desde planos totalmente diversos. Por isso as palavras de uns e do outro são de tal modo tão singularmente privadas de contato entre elas, por isso as palavras de Jesus não parecem absolutamente respostas, mas ataques em sentido verdadeiro e próprio aos fariseus, o que efetivamente são. 

A pergunta dos fariseus consistia nisso: “Se é permitido a um homem repudiar sua mulher”. A pergunta não se interessava pela resposta. Era uma arapuca, pois o interesse era apanhar Jesus numa situação de contradição com a Lei. Se dissesse sim ou não, qualquer que fosse a resposta, a solução dada ao problema, Jesus se comprometeria.

 

3.1.2. Do coração endurecido

Jesus, porém, não responde nem sim nem não. Sua resposta em vez de se dar no mesmo plano que a pergunta, prendendo-se a uma posição frente ao conflito, convoca os ouvintes para a dimensão originária, da unidade, da simplicidade, da forma original do relacionamento de homem e mulher no matrimônio para que assim, os casados possam enfrentar adequadamente os conflitos matrimonias.

Mas, já que eles evocavam a doutrina de Moisés, Jesus lhes responde perguntando de volta: “Que prescreveu Moisés?” “Eles disseram: ‘Moisés permitiu escrever um certificado de repúdio e despedir sua mulher’”.

 Esta permissão, no entanto, não foi dada por Moisés de bom grado. Era um ato extremo frente à dureza do coração humano. Por isso, “Jesus lhes disse: ‘foi por causa da dureza do vosso coração que ele escreveu para vós este mandamento’”. O coração empedrado, empedernido, do homem pecador, decaído da unidade com Deus, dilacera a vida conjugal e familiar.

A história bíblica está cheia de testemunhas disso, como nos lembra o Papa Francisco:

É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas páginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra Abel e dos vários litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família de David, até às numerosas dificuldades familiares que regista a história de Tobias ou a confissão amarga de Jó abandonado: Deus «afastou de mim os meus irmãos, e os meus amigos retiraram-se como estranhos. (…) A minha mulher sente repugnância do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos» (Jb 19, 13.17).

Seja como for, a dureza do coração humano, o “coração empedernido” – a que alude São Francisco (Cf. Ad 1) – é uma constante na história da salvação. Dureza que não é somente insensibilidade para com o outro, mas é também e sobretudo opacidade para com a vontade de Deus. O homem se torna refratário ao desígnio divino de amor instituído na sua origem. Essa mesma dureza de coração Jesus Cristo vê naqueles que põem o problema do divórcio a pretexto de defender a Lei, mas, no fundo, para pô-lo à prova e para poder pegá-lo numa armadilha e ter de que acusá-lo e leva-lo à morte (Cf. Mc 3, 5).

 

  1. 2. De uma só carne

A resposta de Jesus à pergunta dos fariseus não é sim nem não. É que ela aponta para outra dimensão, mais originária e original, não distorcida e deforme, diversa da dimensão dos fariseus – de todos nós, homens éticos da ciência do bem e do mal – onde nascem e crescem os conflitos humanos. “Mas no começo do mundo Deus os fez homem e mulher, por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne. Assim, eles não são mais dois, mas uma só carne”, isto é, um ser único. E completa: “Não separe, pois, o homem o que Deus uniu”.

Em sua exortação sinodal (n. 62), o Papa Francisco recorda que estas palavras hão de ser ouvidas como um dom e não como um jugo:

A indissolubilidade do matrimônio (“o que Deus uniu não o separe o homem”: Mt 19, 6) não se deve entender primariamente como “jugo” imposto aos homens, mas como um “dom” concedido às pessoas unidas em matrimônio. (…) A condescendência divina acompanha sempre o caminho humano, com a sua graça, cura e transforma o coração endurecido, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da cruz. Nos Evangelhos, sobressai claramente a postura de Jesus, que (…) anunciou a mensagem relativa ao significado do matrimônio como plenitude da revelação que recupera o projeto originário de Deus (Cf. Mt 19, 3)».

A resposta de Jesus remete para a origem da criação, a unidade e, ao mesmo tempo, para o fim de toda “a Lei e os profetas”: a caridade. Um coração abrandado e informado pela caridade é o que pode realizar o desígnio originário da unidade entre homem e mulher no matrimônio. A caridade, porém, é uma via a se perfazer. O que está em jogo, aqui, não é a mera prescrição de uma norma. O que está em jogo é o cuidado pastoral para que homem e mulher possam crescer continuamente na direção do ótimo da sua vida matrimonial, seja qual for a situação, de engrandecimento ou de decaimento. O amor-caridade é o dom de uma conquista. O Papa escreve (n. 134):

Esta forma muito particular de amor, que é o matrimônio, é chamada a um amadurecimento constante, pois deve aplicar-se-lhe sempre aquilo que São Tomás de Aquino dizia da caridade: «A caridade, devido à sua natureza, não tem um termo de aumento, porque é uma participação da caridade infinita que é o Espírito Santo. (…) E, do lado do sujeito, também não é possível prefixar-lhe um termo, porque, ao crescer na caridade, eleva-se também a capacidade para um aumento maior».[135] Paulo exortava com veemência: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade uns para com os outros» (1Ts 3, 12); e acrescenta: «A respeito do amor (…), exortamo-vos, irmãos, a progredir sempre mais» (1Ts 4, 9.10). Sempre mais. O amor matrimonial não se estimula falando, antes de mais nada, da indissolubilidade como uma obrigação, nem repetindo uma doutrina, mas robustecendo-o por meio dum crescimento constante sob o impulso da graça. O amor que não cresce, começa a correr perigo; e só podemos crescer correspondendo à graça divina com mais atos de amor, com atos de carinho mais frequentes, mais intensos, mais generosos, mais ternos, mais alegres. O marido e a mulher «tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a realizam».[136] O dom do amor divino que se derrama nos esposos é, ao mesmo tempo, um apelo a um constante desenvolvimento deste dom da graça.

Assim, o vinho novo do amor conjugal, evocado nas Bodas de Caná, através dos sofrimentos, as dificuldades, os conflitos e desafios há de se tornar, com o tempo, cada vez mais saboroso, velho, amadurecido, melhor.

 

3.3. Dos divorciados

O mesmo senso pastoral da caridade eclesial, ao mesmo tempo que orienta para fazer crescer cada vez mais o amor nos casais, orienta também para uma atitude de misericórdia para com as pessoas divorciadas. A exortação pós-sinodal esclarece (n. 243):

Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que «não estão excomungadas» nem são tratadas como tais, porque sempre integram a comunhão eclesial. Estas situações «exigem um atento discernimento e um acompanhamento com grande respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que as faça sentir discriminadas e promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar delas não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade do matrimônio; antes, ela exprime precisamente neste cuidado a sua caridade».

A Igreja não anula a exigência da indissolubilidade (que é, mais propriamente, um dom do que um jugo pesado e opressor). Mas, ao mesmo tempo, considera a necessidade de agir com caridade-misericórdia para com aqueles que não se viram ou não conseguiram corresponder à altura desta exigência.

A exortação pós sinodal foi proclamada no Ano da Misericórdia (2016). Isso lhe conferiu um tom especial: “porque se propõe encorajar todos a serem sinais de misericórdia e proximidade para a vida familiar, onde esta não se realize perfeitamente ou não se desenrole em paz e alegria” (n. 5). Apresenta, com efeito, numa de suas partes, “um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor nos propõe” (n. 6). Nisso, a Igreja segue a seu Esposo, Jesus Cristo: “Ele «olhou para as mulheres e os homens que encontrou com amor e ternura, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus» (n. 60).

 

3.4. Sempre compreender e acolher, jamais condenar e separar

A exortação do Papa para que tratemos com zelo de pastores os casados, principalmente os que passam por sérias dificuldades, ocupa todo o capítulo VIII do mencionado documento que tem como título estes expressivos verbos: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”. No início dele se lê:

Os Padres sinodais afirmaram que, embora a Igreja reconheça que toda a ruptura do vínculo matrimonial «é contra a vontade de Deus, está consciente também da fragilidade de muitos dos seus filhos».[311] Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja «dirige-se com amor àqueles que participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também atua nas suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro e estar ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham».[312] Aliás esta atitude vê-se corroborada no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia. Embora não cesse jamais de propor a perfeição e convidar a uma resposta mais plena a Deus, «a Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança, como a luz do farol dum porto ou duma tocha acesa no meio do povo para iluminar aqueles que perderam a rota ou estão no meio da tempestade».[313] Não esqueçamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital de campanha.

Como outrora, também hoje a Igreja se vê posta diante de duas possíveis lógicas: marginalizar ou integrar:

O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no caminho: «Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (…) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (…) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (…). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita». Por isso, «temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição» (296].

Outras passagens poderiam ser lembradas aqui apenas indicamos a direção a que aponta a exortação sinodal.

 

  • Do abraço e da bênção que curam e salvam

Como em diversas outras ocasiões, Jesus encerra seu ensinamento com uma exemplificação. Para o ensinamento acerca do mistério e do caminho da união matrimonial e familiar, mais uma vez, acolhia todas as crianças que as pessoas lhe traziam para que as tocasse. Ele “as abraçava e as abençoava, impondo-lhes as mãos” e, diante dos discípulos que as reprendiam, aborrecido, exortava: “Deixai vir a mim as crianças. Não as proibais porque o Reino de Deus é dos que são como elas”. Ou seja, no âmago de todo casal de toda família está o mistério Daquele que, sendo santo e puro se faz pecador e se mistura com os impuros e marginalizados; Daquele que sendo o maior e mestre, “se apequena e se abrevia” (VD 12), fazendo-se menor e criança para que com Ele e como Ele possam entrar para a festa do encontro, do amor e da comunhão universal[1].

Sim, a família deve ser o lugar do abraço, principalmente do abraço do consolo e do perdão, pois, como diz nosso Papa, “não existe família perfeita. Não temos pais perfeitos, não somos perfeitos, não nos casamos com uma pessoa perfeita nem temos filhos perfeitos. Temos queixas uns dos outros. Decepcionamos uns aos outros. Por isso, não há casamento saudável nem família saudável sem o exercício do perdão… É por isso que a família precisa ser lugar de vida e não de morte; território de cura e não de adoecimento; palco de perdão e não de culpa. O perdão traz alegria onde a mágoa produziu tristeza; cura, onde a mágoa causou doença” (Papa Francisco, 24 de setembro de 2015).

 

  1. Cristo crucificado e coroado de glória, o caminho da vida matrimonial e familiar

Na segunda leitura da missa de hoje, tirada da Carta aos Hebreus, o autor estava diante de neoconvertidos vindos do judaísmo que, além de perseguidos, não tinham mais o incentivo das suntuosas festas e liturgias que se celebravam no templo em Jerusalém.

A fé deles era muito incipiente, imperfeita e superficial. Diante desta prospectiva, um tanto desconsoladora o autor procura mostrar a superioridade da nova aliança, centrada na Pessoa de “Jesus, a quem Deus fez pouco menor do que os anjos e que nós o vemos coroado de glória, por ter sofrido a morte. Sim, pela graça de Deus em favor de todos, ele provou a morte” (Hb 2,9).

Por que, então, temer ou desejar outras consolações se alguém que é de nossa estirpe abriu o caminho através do qual agora, nós, seu novo povo eleito, podemos ascender ao Céu, ao Reino de Deus!?

 

Conclusão

Cremos que não estaremos cometendo nenhum erro se chamarmos este domingo como o “Domingo do grande mistério do casamento sagrado”. Casamento de Deus com sua criatura predileta, a humanidade; de Cristo com sua amada esposa, a Igreja (Cf. Ef. 5, 32) – mistério este que crepita no âmago mais profundo de cada criatura, mas principalmente de cada casal cristão. Isto porque nele, no matrimônio cristão – elevado à categoria de sacramento – o movimento do amor humano se encontra com o movimento do amor divino como podemos ver nesta reflexão de Karl Rahner:

Medindo as coisas sob o ponto de vista da experiência humana, o santo e ousado atrevimento de começar juntos uma vida de amor e fidelidade é algo que toca no Mistério de Deus. Ora, quando uma criatura dispõe de si em total liberdade e ousa entregar e confiar a outra, a eterna dignidade da sua pessoa, abandonando-se assim naquilo que afina é o mistério sempre oculto e impenetrável de uma pessoa – o que só é possível fazer na aventura máxima do amor e da confiança –, talvez tal entrega, por tão corrente, pareça diária e banal. Contudo, ela é aquilo que de fato parece àqueles que se amam: o milagre único do amor. Ora, isto é algo que confina com o próprio Deus. É algo que abrange a criatura humana e o seu destino inteiro. E, feito em plena liberdade, é algo que – quer o saibamos, quer não – vem de Deus e traz consigo o doce companheiro inefável e silencioso, aquele que tudo abrange e encerra, redime e abençoa, e a quem nós chamamos Deus.

            Mas, quem nos apresenta uma enternecedora história acerca do caráter deste amor apaixonado e extremo é Mestre Eckhart:

“O bem, o maior de todos os bens, do qual Deus deixou o homem participar, foi o de ter se tornado homem. Assim quero contar-vos uma estória, que casa bem com o caso. Era uma vez um homem rico e uma mulher rica. A mulher sofreu um acidente e perdeu um olho. Aproximando-se dela, o marido disse: “Mulher, porque está tão aflita? Não te aflijas tanto por ter perdido um olho”. Ela falou: “Marido, o que me aflige não é ter perdido um olho. O que mais me perturba é pensar que por isso haverás de me amar menos”. Então, ele disse assim: “Mulher, eu te amo”. Logo depois, ele furou o próprio olho e aproximando-se da mulher disse: “Para que creias que te amo, fiz-me igual a ti; também eu tenho ainda só um olho”. Assim é o homem: Como o homem mal podia acreditar que Deus o amasse tanto, Deus “furou um olho seu” e assumiu a natureza humana. Isso significa: “tornou-se carne” (Jo 1, 14) (Sermão 22).

 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm.

[1] Maiores considerações acerca deste ensinamento confira as Pistas do 25º Domingo do TC – ano b_ 2018.