24º Domingo do Tempo Comum – Ano B – 2018

24º Domingo do TC – Ano B – 2018

16/ 09/2018

Pistas homilético-franciscanas

 

Leituras: Is 50,5-9ª;   Sl  114(115) 1-2.3-4.5-6.8-9 (R/.9) ;   Tg 2,14-18;   Mc 8,27-35-37

Tema-mensagem: Chamados do Crucificado para o Crucificado, os cristãos seguem Jesus Cristo, seu Mestre – o Servo Sofredor –  assumindo e carregando com Ele e como Ele os pecados do mundo

Sentimento: alegria e compaixão

Introdução

            No domingo passado, Jesus pelo toque de sua presença e de sua palavra abriu nossos ouvidos para escutar e soltou nossa língua para que pudéssemos proclamar as maravilhas do Reino do seu Pai.

Hoje, de novo, nos toma a parte e nos reúne para nos transmitir o sumo de sua identidade, a mais verdadeira  e profunda: ser o servo sofredor, isto é, o Servo que através de sua cruz, assume e carrega o pecado do mundo; identidade que passa a ser, também, de todo aquele que quiser seguir seus passos (Cf. São Francisco, RNB,1; Atos 1 e 4)    

  1. O cântico do servo sofredor – sua vocação e missão

Quem nos introduz neste misterioso caminho, hoje, é um pequeno trecho do 3º poema, ou cântico, do livro da Consolação do pseudoisaias no qual o próprio autor enaltece e decanta sua vocação-missão de profeta. O trecho surpreende porque ficou intitulado e conhecido como “O Poema (Canto) do Servo Sofredor” e, no entanto, tudo o que nele se proclama é motivo, aparentemente, muito mais de lamentação ou queixa do que propriamente de enaltecimento e louvação.  A dor, porém, se transforma em alegria, leveza, jovialidade, poema e canto quando aquele que a carrega se integra à sonoridade de sua origem, de sua fonte: Deus. Por isso, a alegria verdadeira e perfeita é aquela que não se evanesce quando chega o sofrimento, a dor.

O trecho inicia proclamando a característica mais significativa desta figura enigmática: “O Senhor abriu-me os ouvidos”.  Eis o segredo, o princípio que move a alma e toda a resposta deste servo que o leva a cantar e poetar em meio ou justamente por causa de seus sofrimentos e padecimentos. Ele é um discípulo – um escutador e aprendiz – de Deus, a fonte da alegria, da festa, do canto.

Como no domingo passado, também hoje, aqui, o Senhor vem, e toca no ouvido do seu eleito. Isso significa que ele lhe confia os segredos de sua vida, de sua missão. Mais, que ele não apenas se entrega, se confia todo e em pessoa ao seu servo, mas também, lhe confia toda a sua obra, vocação e missão.

E quem se confia a ele não é um patrão ou qualquer outro senhor ou príncipe deste mundo, mas Jahvé, o Senhor do céu e da terra, o Deus de Abrão, de Isaac e de Jacó. Eis o princípio, a origem do poema, do cântico que transforma tudo, também os dissabores, tribulações e amarguras da vida em doçura, consolação e confiança. Lembremos o famoso testemunho de São Francisco, pronunciado depois que o Senhor o levou para o meio dos leprosos que detestava ver e muito menos tocar: ”O que era amargo se tornou doçura para a alma e para o corpo”.  Por isso, proclama o profeta: “O Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra porque sei que não serei humilhado” (Is 5,7).

O destino deste servo, à primeira vista, se apresenta o mais sombrio possível.  Mas, tudo isso, não tem outra finalidade senão a de mostrar o reverso da medalha: “a honra e a glória de poder carregar em suas costas o tesouro de seu Senhor, isto é, os bofetões e as cusparadas que seu Senhor leva e carrega de seus servos. Pois, a quem ama apraz sofrer o sofrimento do seu amado, amar o que e a quem ele ama, “carregar a sua cruz”, dirá Cristo mais tarde.

Este mesmo sentimento de júbilo em meio às dores e sofrimentos, oriundo da graça do encontro e do chamado, é a marca essencial de todos os eleitos ou servos do Senhor, como por exemplo, São Francisco de Assis. Contam os biógrafos que, no fim de sua vida, passou meses e meses molestado exteriormente e interiormente. Exteriormente pelas inúmeras doenças físicas, principalmente a dos olhos, por bandos de ratos que não o deixavam nem dormir e nem comer. Interiormente, porque assediado por graves tentações diabólicas que o levaram a exclamar: “Senhor, socorrei-me em minhas tribulações!” Ouviu, então do Senhor a resposta: “Irmão, alegra-te e rejubila muito em tuas doenças e tribulações, porque de resto tenhas-te tão seguro como se já estivesses no meu Reino”. Foi assim e em meio a estas aflições que exclamou:  “Então, é necessário que eu me alegre sobremaneira em minhas doenças e tribulações e me conforte no Senhor  e dê sempre graças a Deus Pai e ao seu único Filho Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Espírito Santo por tamanha graça e bênção que foi-me dada”. Foi então e assim em meio a tantos conflitos que compôs o famoso Cântico das Criaturas, também conhecido como o Cântico do Irmão Sol (Cf. CAs 83).

A graça do chamado, isto é, do encontro, tudo muda, tudo transforma e inaugura um novo tipo de relacionamento com tudo e com todos. Movido pelo vigor e encantamento desta presença o olhar do servo começa a ver o que seus olhos antes não conseguiam e nem podia ver: passa a ver, sentir, pensar, querer e fazer a partir do olho de seu Senhor. Por isso, conclui exclamando: “A meu lado está quem me justifica; alguém me fará objeções?”

  1. O escândalo de um Messias servo sofredor

O evangelho da missa de hoje, tirado de Marcos, narra a famosa confissão de Pedro em favor de Jesus, bem como o ensinamento acerca de sua identidade – um Messias sofredor – e, finalmente, o anúncio acerca da condição sine qua non para fazer-se seu seguidor ou discípulo.

  • O diálogo de Jesus

O evangelho começa narrando uma viagem estranha: Jesus leva os Apóstolos para um lugar apartado, fora da Judeia e da Galileia, para a região de Cesareia de Filipe. Num primeiro momento, curiosos, perguntamos: por que levá-los para tão longe, fora dos limites de sua terra, além das crenças e tradições de sua gente, para o meio de estranhos e dos pagãos? É que a estas alturas da caminhada e da formação de seus discípulos, Jesus tinha algo de especial, íntimo a tratar, um segredo a dizer e celebrar. Ali, bem distantes das pressões que eles viviam na Judeia e mesmo na Galileia, Jesus poderia fazer-lhes a pergunta mais importante e decisiva da vida deles. E, eles, por sua vez, livres e sem nenhum temor, poderiam responder-lhe o que pensavam Dele.

Antes de mais nada, porém, importa considerar a maneira como Jesus conduz esse encontro, sua admirável pedagogia: o caminho, o método da evangelização e da catequese cristã. Jesus não começa expondo direta, imediata e explicitamente, muito menos impondo a verdade acerca de sua pessoa. Mas, aos poucos, como abelha diligente e reverente, que vai se abeirando do néctar escondido e guardado no âmago da flor, procura despertar e fazer arder no coração daqueles rudes homens uma afeição pura e um interesse gratuito pela pessoa Dele. Em segundo lugar, o que está em jogo não é um “quê”, um objeto, um ideal, uma doutrina ou um valor, mas a verdade de um “quem”, de uma pessoa, do Messias, o Salvador de Israel e de toda a humanidade: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13).

A resposta dos Apóstolos revela que “os homens”, de certa forma, já estavam atraídos por Jesus e encantados por Ele, embora não alcançassem a sua verdade plena. É o que indica as informações reportadas pelos discípulos a respeito da concepção que a multidão tinha de quem era Jesus: “Para uns, João, o Batista; para outros, Elias; para outros ainda, Jeremias ou algum dos profetas”. Para o povo, Jesus era um profeta, um dos grandes, um homem que bem se podia identificar como pertencente à linhagem e à tradição dos grandes profetas. 

Entretanto, as opiniões populares sobre Jesus não eram suficientes para que os discípulos alcançassem e acedessem à verdade da identidade do Mestre, muito menos ainda para que se fizessem seus discípulos, amigos, familiares e íntimos. A confissão de fé deles, portanto, para emergir, precisava ainda de outro apartamento, não corporal, físico, geográfico, mas sim de um apartamento intelectual, espiritual. A confissão de fé, o acesso à verdade de quem era Jesus Cristo, só se lhes tornaria possível quando eles, os discípulos, se apartassem, se desprendessem da confusão dos pareceres, das opiniões dos homens, do mundo, a respeito Dele, o Mestre. Por isso, logo depois segue a segunda pergunta: “Vós, porém, quem dizeis que eu sou?”

  • A confissão de Pedro

Contudo, mesmo os discípulos, por si sós, não tinham ainda conseguido ver e saber quem era Jesus, este homem com quem eles andavam e que tinham por seu mestre. Para eles, Jesus seria alguém muito especial, singular, único, mesmo entre os homens que foram mais íntimos de Deus. Vislumbravam e pressentiam que Ele existia numa relação filial inigualável com Deus e cumpria uma missão ímpar, diferenciada de todos os outros profetas. E, não obstante este vislumbre, que se dava como um raio, que lampejante faz aparecer algo e, logo em seguida, o oculta, os Doze ainda não tinham alcançado uma consciência – um saber, uma sapiência – clara nascida de uma experiência pessoal a respeito da identidade de Jesus.

A confissão de fé, como tal, ainda não podia, assim, emergir, e, com ela, o conhecimento, o acesso à verdade, digamos, a mais verdadeira de Jesus. Ela deveria emergir, justamente, da boca de Simão Pedro que, representando toda a humanidade, falou movido não pela carne nem pelo sangue, mas pelo sopro divino que sai da boca do Pai (Cf. Mt 16,17):  “Tu és o Messias” (Mc 8,29).

O diálogo termina com esta intrigante frase: “Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito” (Mc 8,30). O segredo do Messias deveria ser mantido. Se fosse comunicado antes do evento da Cruz seria fatalmente mal-entendido pelos “homens”. A verdade de Jesus enquanto Filho do Deus vivo só pode se dar através da e na Cruz. Somente aquele que não se escandaliza com a cruz, melhor, com o Messias Servo e Crucificado, pode penetrar em seu mistério.

Qualquer outra concepção do Messias, segundo perspectivas humanas de poder seria não somente humana, mas também satânica, demoníaca. O mesmo se diga de uma concepção de Igreja segundo perspectivas humanas de poder. O mistério de Cristo e Cristo crucificado e o mistério da Igreja andam juntos: só se desvelam no essencial a partir da e na Cruz. Quando queremos outro Cristo que não seja o Cristo pobre, humilde e animado de gratuito e ardentíssimo amor pelos homens, não queremos o Cristo da Cruz, o Cristo quenótico; quando queremos outra Igreja que não seja a Igreja unida a Cristo, como a esposa ao esposo, pelo mistério do esvaziamento da Cruz, nós nos iludimos a respeito da Igreja. E, nisso tudo, nos iludimos a respeito de nosso ser cristão.

2.3. O sumo da identidade de Jesus

A segunda parte do evangelho de hoje começa assim: “Em seguida, começou a ensiná-los…”. “Em seguida”, significa, não somente logo depois de ter dito isto que acabou de dizer, mas também em consequência disso mesmo. Ou seja, Jesus explicita o que estava implícito: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e doutores da lei, ser morto…” (Mc 8,31).

É a partir destas palavras que reluz o mistério do Filho do Homem como o Filho de Deus Servo e Crucificado. O ensinamento, acena também, para aqueles que seguem a Jesus, ou seja, que a essência deste próprio seguimento está enraizada na pureza da fé e da confiança que nascem da graça do encontro com o Crucificado, sem razões e motivações, sem “porquê” nem “para quê”. 

A essência do Crucificado está, portanto, não no sofrimento propriamente dito, mas no sofrimento (paixão) que tem o caráter de rejeição – e, pasmemo-nos, rejeição divina! A cruz é ignomínia, vergonha. O Crucificado não sofre de modo heroico. Não é um herói trágico admirado pelos homens. É um rejeitado pelos homens e – isto é incompreensível humanamente falando – por Deus mesmo, pelo Pai; e, mais ainda incompreensível: esta rejeição é por amor ao mesmo Filho e aos homens, a quem o Pai quer recuperar como filhos. D. Bonhoeffer[1] nos chama a atenção para isso:

“O chamado ao discipulado está, aqui, no contexto do anúncio da Paixão de Jesus. Jesus está para sofrer e ser rejeitado…A Paixão como acontecimento trágico poderia ainda ter valor próprio, honra e dignidade própria. Jesus, porém, é o Cristo rejeitado na Paixão. A rejeição tira da Paixão toda a dignidade e honra. Ela deve ser sofrimento sem honra. Paixão e rejeição, eis em resumo a definição da cruz de Jesus. Ser crucificado é sinônimo de sofrer e morrer rejeitado e repudiado por força da necessidade divina. Qualquer tentativa de impedir o que é necessário é satânica, mesmo que esta tentativa provenha do círculo dos discípulos (o que é um agravante), pois  assim não se quer permitir que Cristo seja Cristo. O fato de ser justamente Pedro, a Rocha da Igreja, a tornar-se o culpado, logo após sua confissão de Jesus Cristo como o Cristo e de sua instalação, revela que, logo de início, a Igreja se escandalizou com o Cristo sofredor. Ela não quer semelhante Senhor e, como Igreja de Cristo não quer permitir que se lhe imponha a lei do sofrimento. O protesto de Pedro exprime sua relutância em se dispor a sofrer. Deste modo é que Satanás entrou na Igreja, pretendendo arrancá-la à cruz de seu Senhor”

O que chama a atenção é a ambiguidade de Pedro. Se, primeiramente, sua confissão nasce do sopro de Deus, agora se deixa conduzir pelo seu ser carnal, mundano, humano, demasiado humano, chegando à ousadia de chamar Jesus à parte a fim de repreendê-lo. Pedro quer que Jesus o siga em seu conselho. Pedro desvirtua tudo: põe-se ele à frente e quer que Jesus o siga, que vá atrás dele.

A reação de Jesus, humanamente livre e soberanamente divina, porém, é também imediata e contundente: “Voltou-se, olhou para os discípulos e começou a repreender a Pedro: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (Mc 8,33). Comentando esta repreensão de Jesus a Pedro, diz o Subsídio litúrgico O Pão Nosso de Cada Dia: “Na verdade Jesus não diz “para longe de mim”, mas, para trás de mim” que é a expressão usada no chamamento dos discípulos. “Atrás de mim” (“opisso mou”, em grego)!”

Pedro está, pois, invertendo as coisas. Em vez de seguir a Jesus onde quer que ele queira ir, está querendo que Jesus o siga. Está querendo levar Jesus por um caminho que é o caminho humano, isto é, o caminho de quem pensa e discerne (phroneín) segundo os critérios humanos de julgamento. Em vez de deixar Jesus seguir o Pensamento, a Paixão  de Deus, que estão infinitamente acima do pensamento e da paixão dos homens.

Eis a nova e definitiva etapa de formação para a qual Jesus está introduzindo seus discípulos. Por isso, em verdade, “Jesus não manda Pedro para longe, não o expulsa de sua Escola, mas o chama de novo a segui-lo! Jesus chama Pedro para que fique perto dele, mas no seu devido lugar: ‘atrás de mim’. Colocar-se atrás de Jesus, segui-lo, trilhar seus passos, fazer seu caminho, viver sua vida é a característica fundamental do discípulo” (idem).

  • Tome a sua cruz e siga-me

Chegamos assim à conclusão deste trecho e que é também, o ponto central e vital de todo o Evangelho de Marcos, o grande ensinamento de Jesus: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mc 8,34). Temos aqui a mais decisiva e cristalina definição de um cristão, isto é, de um discípulo de Cristo: o caminho do cristão é o caminho de Cristo e o caminho de Cristo é o caminho da Cruz. Aqui se revela o caráter do Servo-discípulo-escutador-obediente de Deus que aparece nos escritos que estão sob a égide de Isaías.

Jesus diz, “se quiser…”. Jesus deixa livre os seus ouvintes. Não impõe o seguimento, o discipulado. Este deve nascer da espontaneidade da boa vontade do ouvinte. Entretanto, caso o ouvinte queira se fazer seguidor, discípulo, este querer nasce já do toque da afeição do encontro com o Mestre que chama.

Diz, também: “Renuncie-se a si mesmo”. Renunciar é abnegar-se. Abnegar-se é um negar-se. É dizer de si mesmo o que Pedro disse de Jesus: “não conheço este homem”. A autonegação do discípulo, porém, não é a afirmação de si em sacrifícios, martírios, asceses. A autonegação significa desconhecer-se a si mesmo (tirar a atenção –  não olhar para si mesmo) e conhecer apenas a Cristo e a si mesmo apenas a partir de Cristo. Esta autonegação não é, pois, mera denegação de si. É ab-negação: uma negação que desprende para a força do sim ao seguimento de Cristo. A partir do seguimento de Cristo o discípulo se re-anuncia, isto é, faz um novo anúncio acerca da verdade de si mesmo: ele não é mais aquele homem que vive a partir de si, mas aquele homem que é, agora, por graça de Cristo. Ele é o que é diante de Deus, nada mais nada menos.

E conclui o Mestre: “… tome sua cruz”. Quem esclarece bem o sentido cristão da cruz é Bonhoeffer: “Não é desventura nem pesado destino; é o sofrimento que resulta da união exclusiva com Cristo. A cruz não é sofrimento casual, mas sofrimento necessário. A cruz não é sofrimento relacionado com a existência natural, mas com o fato de pertencermos a Cristo”[2]. Cruz é o sofrimento de ser rejeitado por pertencer a Cristo. Cruz é, para o cristão, toda a luta, toda tentação, todo desafio que é assumido por e para pertencer a Cristo. Cruz é con-sofrer com Cristo o sofrimento de Cristo. É com-paixão com Cristo Crucificado.

Cada cristão, diz Jesus, tem a sua cruz. A cruz é a sua cruz – isto é, cada cristão tem a sua medida e o seu modo, seu jeito, único, pessoal, de participar do sofrimento-rejeição do Cristo Crucificado. É o seu modo de desvincular-se do “mundo”, de deixar morrer em si o homem velho, adâmico, psíquico (anímico – animal), carnal, na luta diária contra o pecado, contra aquilo que seduz, isto é, induz para fora do discipulado, do seguimento de Cristo. É o seu modo de, com Deus e com Cristo, tomar sobre si o pecado do mundo. Ninguém, porém, é exposto a uma cruz que não pode suportar, que está além de suas forças.

  1. Um seguimento feito de Fé e de obras

            A segunda leitura, tirada da Carta de São Tiago, vem completar ou melhor concretizar o ensinamento de Jesus acerca do servo sofredor que carrega os pecados do mundo: “Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não a põe em prática?” . A fé autêntica, aquela que é propriamente o que há de ser, a fé viva, é uma fé que opera pela caridade. Daí a afirmação de Tiago: “Assim também a fé: se não se traduz em obras, por si só, está morta” (Tg 2,17). Neste mesmo tom fala São João: “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão” (1Jo 4,20-21).

Por isso, lamentava o biógrafo de São Francisco: “Temos mais doentes que militantes quando, nascidos para o trabalho, deveriam ver sua vida como uma luta. Não gostam de ser úteis pela ação, e pela contemplação não o conseguem” (1C 162).

Não podemos confundir, porém, ação com agitação. O cristão, na ação, no cuidado das muitas coisas, como Marta, não perde de vista o Único Necessário: seguir Jesus Cristo – não perde-lo de vista. Por isso, bem alertava Santa Clara a sua Irmã Inês para que mantivesse sempre acesa a chama do “ardente desejo do Cristo pobre e crucificado” (1CCl 13). Finalmente, diz, também o Bem-aventurado Egídio, companheiro de São Francisco: “Se bem crês, bem operas” (DE 2).

Conclusão

A liturgia deste domingo com suas leituras, principalmente, nos convoca a celebrar o princípio, a fonte ou raiz do mistério de nossa identidade mais profunda de cristãos assim definida ou descrita por São Francisco: “Chamados por Deus da cruz e para a cruz”. E para explicar a sumidade desta identidade nos apresenta o jocoso “fioretto” (florzinha) de Frei Bernardo, mais precisamente, “Como Frei Bernardo foi a Bolonha para fundar um Convento”. 

Chegando em Bolonha, esse frade punha-se diligentemente, sentado, todos os dias, na praça da cidade onde era insultado, maltratado, injuriado e até mesmo batido e surrado pelos passantes que assim, nele e através dele, descarregando suas maldades, maus humores, dissabores e espíritos perversos, como se estivessem diante de um doido varrido, voltavam para suas casas aliviados e libertos do peso das chateações da vida e de seus pecados. Enfim, divertiam-se com ele como ou quando certas pessoas maldosas fazem com um doido, uma pessoa abobada ou palhaço.

 E assim, quando aquele povo descobriu que ele fazia tudo aquilo só porque queria imitar Jesus Cristo crucificado; que aquilo era sua Regra, sua Vida, a Regra e a vida de São Francisco e por isso todos queriam tê-lo em suas casas para tratá-lo bem, pensava: “Aqui não tenho mais lucro nenhum. Além do mais o convento, agora, está fundado”. E, imitando o Mestre, às escondidas, saindo procurava outras localidades a fim de repetir o mesmo feito, o mesmo ato, o mesmo “Fioretti”.

Essa maneira, à primeira vista exagerada, desequilibrada e um tanto esquisita  de Bernardo colocar-se na praça pública esconde o segredo mais íntimo de todos aqueles primitivos frades: o exercício de se enraizar cada vez mais profundamente para dentro do seguimento de Jesus Cristo entendido como participação de sua cruz; o segredo de pessoas profundamente apaixonadas pela vocação-missão do Servo Sofredor, de carregar e assumir para si  as maldades, as doenças e os pecados dos homens seus irmãos, os filhos queridos de seu Pai. Mas isso só é possível se estiverem profundamente unidos a Cristo crucificado (Cf. imagem de Murilo). Do contrário sucumbiriam redondamente. Por isso, Francisco ousava defini-los com esta expressiva e desafiadora denominação: “Homens do Crucificado”. Por isso, também, como portadores deste novo princípio da nova criação da humanidade, inaugurado por Cristo Crucificado, se faziam não apenas fontes da Paz, do Bem, mas também estância de uma nova realidade chamada Reino de Deus, Reino dos Céus, Reino do Pai, novo Céu, nova Terra (Cf. Em Comentando I Fioretti, Frei Hermógenes Harada, ifan, pág. 111).

E assim, “carregando a cruz no vestir e no comer e em todos os seus atos, desejavam mais os opróbrios de Cristo do que as vaidades do mundo e as lisonjas enganosas; por isso, alegravam-se pelas injúrias e entristeciam-se pelas honras. E iam pelo mundo como peregrinos e forasteiros, nada levando consigo a não ser Cristo. Pelo que, onde quer que fossem, faziam grandes frutos nas almas, pois eram verdadeiros ramos da videira viva” (Atos 4; Fi 5).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini, ofm

[1] Bonhoeffer, Dietrich. O discipulado. Ed. Sinodal: p. 44-45.

[2] Bonhoeffer, Dietrich. O discipulado. Ed. Sinodal: p. 46.