3° domingo da Páscoa

3º DOMINGO DA PÁSCOA

15/04/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: At 3,13-15.17-19; Sl 4 (5); 1Jo 2,1-5; Lc 24, 35-48

Tema-mensagem: Arrependei-vos, voltai para Deus e sede testemunhas do mistério de seu Filho Jesus Cristo crucificado e ressuscitado.

Sentimento: Júbilo e gratidão.

Introdução

“Aclamai a Deus, toda a terra, cantai a glória de seu nome, rendei-lhe graça e louvor!”(Ant. de entrada). Pois, graças à morte e ressurreição de seu Filho Jesus Cristo, recuperastes a condição de filhos de Deus (Oração).

Eis o sentimento com o qual a Igreja abre a celebração do mistério pascal neste terceiro Domingo da Páscoa.

  1. Do anúncio primordial – o Querigma apostólico

A primeira leitura da missa de hoje, tirada dos Atos dos Apóstolos, apresenta o discurso de Pedro no Templo de Jerusalém, no pórtico de Salomão, que brotou do seu coração logo após o milagre da cura de um paralítico. Aos judeus que o admiravam e queriam adorá-lo como se fosse um deus, dotado de poderes extraordinários, Pedro anuncia, alto e bom som, o princípio de tão estupendo milagre: Aquele que está na origem de toda a vocação e de toda a história de Israel. Por isso, mencionando uma expressão conhecida de cor e salteado por todos os judeus e tirada do livro do êxodo, proclama: “O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus de nossos antepassados glorificou o seu servo, Jesus” (At 3,13).

Portanto, insiste Pedro, a única interpretação válida daquele milagre é que apareceu um poder novo, inaudito, capaz de reerguer e salvar o homem que, desde Adão, havia se perdido e afastado de Deus fechando-se em seu pecado. Este poder, porém, não veio para romper a trajetória essencial da fé judaica, mas para levá-la à sua consumação pois, tudo o que esperavam os patriarcas, tudo o que anunciaram os profetas alcançara o seu sumo (ápice) em Jesus. É o grande discurso, o anúncio primordial apostólico – denominado na tradição da Igreja de “Querigma” (em grego: Kerygma – anúncio, proclamação). Pedro procura mostrar aos israelitas e a todos os seus ouvintes que Deus acabara de cumprir suas promessas feitas aos seus antepassados ao glorificar Jesus, que foi rejeitado por eles e entregue a Pilatos, que estava decidido soltá-lo (At 3, 13).

1.1. O nome Jesus

O lugar de destaque do anúncio de Pedro está no nome Jesus. E ele o faz não com fórmulas ou doutrinas teológicas ou a partir do que Jesus havia ensinado, mas com o testemunho claro, cristalino de tudo o que havia acontecido com Ele nos últimos dias. O milagre que acabavam de assistir era apenas um sinal do mistério de sua paixão-morte-e-ressurreição. Ou seja, foi pelo nome de Jesus que aquele paralítico ficou curado.

Assim, falar e agir em nome de Jesus significa ter a graça de poder contar com esta força nova capaz de curar e salvar; um poder que Deus acabava de dispor em favor dos homens e para os homens. Diferentemente da história do Antigo Testamento na qual Deus para agir e intervir tinha de servir-se de patriarcas, reis e profetas, agora sua intervenção  salvadora é direta e imediata e para todos e para todos os tempos: basta que se anuncie e se acolha este ”nome que Deus exaltou sobremaneira … um nome, que está acima de todo nome… um nome ao qual se dobre todo joelho, nos céus e na terra…” (Fl 2:9-10). Trata-se do nome daquele que, sendo Deus igual a Deus, se esvaziou e se rebaixou, se tornando homem igual aos homens, assumindo a condição de servo: Jesus, o Nazareno, o Crucificado, que Deus ressuscitou. “Jesus” significa: Deus Salva! Nele se manifestou a força salvadora de Deus que atua na história desde os seus primórdios, que chamou e, ao mesmo tempo, enviou os patriarcas de Israel e os Profetas, numa história de salvação que devia se manifestar como universal: bênção para todas as nações da terra.

O modo de Pedro referir-se a Jesus, recorrendo a títulos messiânicos do Antigo Testamento e de sabor arcaico na Igreja revelam que Jesus, em vez de inimigo de Deus, é justamente a consumação de toda aquela sua história de bênção e salvação. Por isso, ele acentua: “Vós rejeitastes o Santo e o Justo, e reclamastes para vós o agraciamento de um assassino!” (At 3, 14). O primeiro título é “ho hágios”. “O Santo” é a aclamação dos anjos testemunhada por Isaias. Na sua famosa visão (Is 6), viu o Senhor sentado num trono alto e elevado e ao seu redor serafins que clamavam uns para os outros: “qadosh, qadosh, qadosh (santo, santo, santo). Por isso, a Igreja, fazendo o memorial do mistério, isto é da obra salvadora deste nome (Senhor), todos os dias, no coração de cada missa, jubilosa, exclama, cantando: “Santo, santo, santo, é o senhor Deus do universo!”

Segundo os entendidos, a palavra “santo”, em seu sentido original, significa luminoso, esplendente, e, assim, como o Altíssimo, separado, retirado, desprendido de tudo. Chamar Deus de santo significa, portanto, reconhecer que ele é elevado e esplendente em sua majestade e, por isso, separado das criaturas em sua transcendência.

Pedro associa Jesus, “O santo”, a Jesus, “O Justo”. “O Santo e o Justo” parecem remeter à figura profética do “Servo do Senhor” de Isaías (Is 52, 13 – 53, 12). Enfim, estamos diante deste insondável mistério: O Senhor das alturas, o transcendente, o esplendente que se encarna na realidade humana e se transforma em servo da baixeza humana; o santo e justo, que nunca conheceu o pecado, se fazendo pecado, maldito para se tornar fonte de graça e de bênção para nós. Eis o nome daquele que salva. Eis o primeiro anúncio de Pedro, da Igreja, ontem, hoje e sempre.

Por isso, este texto que está no plano de fundo do discurso de Pedro é considerado muitas vezes como o “quinto evangelho”. Recordemo-lo. O Servo é um “homem de dores, familiarizado com o sofrimento”; quase não tem aparência de homem; é deixado de lado; dele os outros homens desviam o rosto. Era considerado um homem maldito por Deus. E, no entanto, “nas suas chagas encontrava-se a cura para nós”. A sanção e o castigo que recai sobre ele, na verdade, deveria ter caído sobre nós: “o Senhor fez recair sobre ele a iniquidade de todos nós”.

Assim, o comportamento do povo, que recusou o Santo e o Justo, que dá a vida, contrasta com o agraciamento dos assassinos, que tiram a vida. Aquele que dá a vida, condenado à morte de cruz, nos agracia a todos nós, os culpados, àqueles que de muitos modos agem contra a vida própria e dos outros.

  • Príncipe da vida

No entanto, o acento maior do discurso de Pedro, recai sobre este testemunho claro e incisivo: “Mas o Príncipe da Vida que vós havíeis matado, Deus o ressuscitou dos mortos – disso nós somos testemunhas” (At 3, 15).

Jesus, agora, isto é, pelo que fez por toda a humanidade e por toda a criação, mostra-se como o Princípio (arché) da Vida: Aquele que doa uma nova vida, uma vida vinda do alto, do Espírito, a toda vida, a todo o vivente, a toda criatura terrestre e celeste como se pode ler na Carta aos Hebreus: “o iniciador e o consumador da fé, Jesus, o qual, renunciando à alegria que lhe era devida, sofreu a cruz, desprezando a vergonha, e assentou-se à direita do trono de Deus” (Hb 12, 2).

Assim, Jesus é o Princípio da vida primeiramente porque é Dele que nasce nossa nova vida, mas também porque Ele é o pioneiro, aquele que vai à frente a fim de abrir, através de sua obediência ao Pai até a morte e morte de cruz, a porta do paraíso perdido fechada outrora pela desobediência de Adão. Neste sentido ele é aquele que, a modo de mestre, introduz à vida a todos aqueles que o seguirem na fé deste seu caminho: a cruz.

  • A fé

O discurso de Pedro, visa, também realçar o papel e a importância da fé, que é a resposta positiva ao querigma (anúncio): “Pela  em seu nome é que este mesmo Nome curou este homem que vocês veem e conhecem. A  que vem por meio dele lhe deu esta saúde perfeita, como todos podem ver” (At 3,16). É um tanto estranho que para a leitura deste domingo, os liturgistas deixaram fora esta frase tão significativa. Em todo o acaso, sem a fé o milagre não teria acontecido. Trata-se da fé de Jesus, que tem sua origem em Jesus, autor e consumador da fé, que vem por meio dele (Jesus) e que se comunica aos seus seguidores e aos que aderem ao seu anúncio. Fé que é a pura positividade da doação do amor e que se manifesta como firmeza da fidelidade do amor que ama por primeiro. Fé que também é a graça, a alegria, o vigor do mistério do encantamento do encontro, do toque que leva a pessoa a entregar-se, a confiar-se à pessoa que a toca, procura e ama.

  • Apelo ao arrependimento e à conversão

O anúncio (Kerygma) e o testemunho (Martyrion) acerca de Jesus Crucificado e Ressuscitado, feito por Pedro, termina com este apelo: “convertei-vos, portanto, e voltai a Deus”.

A conversão (metánoia) é a reviravolta da mente que, movida pelo toque do amor, passa da ignorância (desconhecimento dos desígnios de Deus na história – At 3, 17) para a clareza da fé e do conhecimento de sua ação salvífica em Jesus Cristo, o Crucificado, que ressuscitou. É também, retorno para Deus (apostréphein) – voltar a Ele e voltar-se a Ele (em hebraico: teshuvá); em vez de viver “de costas” a Ele, como fizera Adão, começa a viver face a face com Ele na correspondência do amor.

Por isso, o salmista de hoje canta: “resplandeça sobre nós, Senhor, a luz da tua face…” (Sl 4 [5]). Assim como no rosto do/a bem amado/a resplandece a alegria da alma da/o bem amada/o, assim também a luz da graciosidade e da benignidade de Deus haverá de envolver aquele que o invoca na confiança e na fé de seu Filho muito amado, Jesus.

  1. O paráclito e o conhecimento de Deus

Na segunda leitura de hoje, São João chama Jesus de “Paráclito”. No seu evangelho ele traz o anúncio, a promessa de Jesus acerca do envio de “outro Paráclito”. Paráclito é defensor (advogado) e consolador. Defensor no que concerne ao exterior e consolador no que concerne ao interior do homem. Jesus é nosso Paráclito, à medida que ele, o Justo, cunha em nossos corações as marcas das chagas, da cruz do seu amor-doação. Ora, como haveria o Pai de nos condenar vendo impresso em nós tão inaudito mistério de amor de seu Filho muito amado?! Por isso, já na abertura do trecho de sua carta proclamado hoje, podemos vislumbrar o sentimento amoroso da experiência do seu encontro com Jesus. Ele que se via e se experimentava como “aquele que Jesus amava”, agora transfere este mesmo sentimento para seus ouvintes e leitores: “Meu filhinhos…”, isto é, filhinhos, amados e queridos, por causa de Jesus Cristo, o nosso defensor e consolador.

Ter Jesus como defensor e consolador, paráclito, porém, exige que caminhemos na vida em comunhão com Ele, querendo o que e como ele mesmo quer, levando à consumação, por palavras e ações, os seus mandamentos, as suas recomendações, que se resumem no amor-caridade. Naquele que, a partir do amor de Cristo, vive no amor ao irmão, nele o Amor de Deus se consuma.

Este será, também o novo caminho para o conhecimento de Deus. Se até então os judeus primavam o caminho do estudo e da observância da lei, agora o caminho novo é o inaugurado pelo próprio Cristo que vai em busca do Pai através do caminho estreito da “não-ciência”, da Cruz, que traz em si uma sabedoria “misteriosa, escondida” (cf. 1 Cor 2, 7). Ele mesmo já o havia proclamado: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim… Já faz tanto tempo que estou com vocês, e você ainda não me conhece, Filipe? Quem me vê, vê também o Pai.” (Jo 14,6-8).

  1. As provas da ressurreição

No Evangelho deste domingo, Lucas volta ao testemunho da ressurreição de Jesus. As dificuldades acerca da veracidade da ressurreição sempre se fizeram presente entre os judeus e os homens de fé. Ora, aparições, além de contrariar o sistema religioso de Israel, se pareciam mais um fruto de fantasia e não de uma presença nova de Jesus, tão ou até mais real do que antes, durante sua vida pública. No Evangelho de hoje Lucas procura eliminar de vez e cabalmente este engano com provas irrefutáveis. Essas provas, porém, não são dadas ao “mundo”, mas aos discípulos, recebedores e anunciadores da fé, que ele escolheu para serem suas testemunhas frente ao mundo, a fim de que os homens do mundo também cressem.

3.1. Eucaristia, a primeira e grande prova

O Evangelho começa com o fim da narrativa da maravilhosa aparição de Jesus aos discípulos de Emaús: “E eles contaram o que se passara no caminho e como eles o haviam reconhecido na fração do pão”. A eucaristia, ou fração do pão – que Cristo instituíra e confiara aos Apóstolos na Última Ceia –  sempre foi e é o momento privilegiado do encontro com o mistério Dele, com sua Pessoa. Ela é o melhor e maior sinal da sua presença na comunidade dos discípulos. Nela Jesus misteriosamente renova, reatualiza sua entrega, sua doação iniciada na Encarnação e consumada na Cruz. Por isso ela é chamada de “o sacramento dos sacramentos”. “Sacramentum” é tradução do grego de “mysterion”, mistério. Mistério é o que se dá, subtraindo-se; se abre e se manifesta, escondendo-se.

A presença misteriosa ou sacramental de Jesus na Eucaristia é velada, isto é, ela se doa e, ao mesmo tempo, se retira, como é próprio de quem ama; dá um aceno e, ao mesmo tempo, se vela, se encobre, em seu pudor e humildade. Por isso, só pode ser vista por aqueles que, pela fé, isto é, pela graça do encontro, a procuram e a veem recolhida no abscôndito dos corações desejosos de sua revelação. A fé é o ocular, a ótica, que abre ao homem o acesso ao mundo divino, à realidade concreta do encontro com o Tu divino. Os crentes (os fiéis à graça do encontro) são os que olham segundo o espírito, diz São Francisco, na famosa Admoestação “Do Corpo do Senhor”, e não segundo a carne. Segundo o espírito, significa na dinâmica, no modo de ser do amor puro, limpo, que se entrega sem porquê nem para quê, que nada espera e muito menos exige, apenas movido pela alegria de poder doar-se.

3.2. A prova da Paz

Os discípulos de Emaús “ainda estavam falando (da aparição que tiveram de Jesus e que o reconheceram ao partir do pão), quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: ‘A Paz esteja convosco!’” (Lc 24, 36).

O contraste com o clima da sexta-feira santa – desencontro, ódio, desgraça, vingança, injustiça, dor, sofrimento, desolação, frustração e derrota – é evidente. No rosto de Jesus, em seus gestos, sua presença é só paz. Uma paz que veio para invadir o coração de todos os homens de boa vontade.  Por isso, aqui Ele se mostra como o “Paráclito” no sentido de “o consolador”: aquele que retira o homem do assolamento da desolação e da solidão. Por isso, a saudação “A paz esteja convosco”, nascida da nova presença de Jesus os liberta de todo aquele medo, angústia e tristeza, conduzindo-os para dentro do vigor, da saúde, da salvação originária.

Ela vem ao encontro de homens “espantados e cheios de medo” porque vazios, afastados, ainda que momentaneamente, do seu Senhor. Ora, não é, por acaso, o espanto (pavor) e o medo do vazio que atinge os homens de hoje e de sempre, tomados pelo consumismo, pelo niilismo, carentes de uma vida em transcendência, sem Deus? Cristo, com o mistério de sua cruz e ressurreição, vem ao nosso encontro como um raio de luz jovial que corta a escuridão de nossa desolação.

A paz que ele conquistou no meio do maior conflito a que um homem poderia ser submetido – abandonado e condenado por todos e pelo próprio Deus – agora ele a doa: “A Paz esteja convosco!” Ele é o “Deus da paz” (2 Cor 13, 11). “Ele é a nossa paz” (Ef 2, 14). Ele é a “paz que nasce de Deus” (Fl 4, 7). Isto significa que ele é o princípio (Príncipe) da Paz entre o Céu e a Terra – Deus e o homem – e dos homens entre si e destes com todas as criaturas e acontecimentos.

A paz de Cristo é oferecida gratuitamente para todo o homem e para o homem todo (de corpo e alma). É oferecida aos homens na sua mútua convivência. É oferecida aos homens na sua individualidade. Assim, com esta saudação, aos homens divididos entre si e em si mesmos ele quer introduzir a unidade, que propicia a paz. Aos homens divididos e em conflito entre si ele quer dar a paz que brota do amor-caridade, do amor-gratuidade. Ao homem dilacerado em si mesmo, ele quer dar a paz entre seu corpo e sua alma, bem como a paz no seu corpo e na sua alma. Na alma ele quer dar a paz por meio da sua graça e das suas virtudes. Com a paz, vem a beleza da alma: o brilho de seu viço, de seu vigor. Ao homem desequilibrado em seu corpo ele quer dar o equilíbrio da saúde de sua presença. Ele comunica, assim, a salvação (saúde), a todo o homem e ao homem todo. Esta comunicação é destinada a todos.

Os discípulos recebem esta paz e se tornam artífices dela no mundo, como nos recorda a bem-aventurança dos pacíficos (Mt 5, 9). Tornam-se instrumentos da paz no mundo, como nos recorda a oração atribuída a São Francisco: “Senhor, fazei-me um instrumento de tua paz”. Por isso, evangelizar é, fundamentalmente, evangelizar a paz. Não é à toa que São Francisco saudava a todos os que encontrava evocando a saúde da paz: “Paz e Bem!”; que ele, ao começo de toda a pregação, desejava a paz; ao fim, deixava a paz; que ele, em todo o lugar em que ia, levava a pacificação entre os homens, isto é, ajudava-os a reconduzir-se à unidade do amor-gratuidade. A evangelização não é mera doutrinação. A evangelização é também mais do que anúncio (Kerygma), ou melhor, é o querigma em sua consumação. É testemunho no sentido de martírio (Martyrion): difusão, realização da Paz.

3.3. O toque nas chagas, a prova das provas

A paz, porém, não chega assim tão facilmente, como que ao toque de uma vara mágica, ao coração dos discípulos. Resquícios daquele julgamento atroz – Jesus declarado pública e oficialmente como blasfemador, inimigo de Deus e do Povo – ainda permaneciam arraigados e em seus corações. Como, pois, crer nele? Como segui-lo, como testemunhá-lo? O que acontecera naquela sexta-feira fora para além de todas as medidas. Por isso, ainda estavam assustados e com medo.

Jesus, então, recorre à sua última prova: mostra-lhes as mãos e os pés, com as suas chagas. “Nas suas chagas encontrava-se a cura para nós”, já dizia o profeta Isaías (Is 53, 5). Mostrando-as, Jesus curava-lhes as feridas que a dúvida deixava nas almas dos seus discípulos. Na celebração da vigília pascal, a Igreja, ao preparar o Círio Pascal, proclama: “Por suas santas chagas / suas chagas gloriosas / o Cristo Senhor / nos proteja e nos guarde”. Somos guardados pelas chagas de Jesus como a mãe guarda em seu seio o filhinho querido.

Jesus mostra suas mãos e seus pés chagados para dizer a eles: “sou eu mesmo”. Aquele que lhes aparecia era o mesmo que outrora, na Galileia, os havia escolhido e chamado para a sua companhia; o mesmo que foi crucificado e que foi sepultado. Não era outro. Era ele em pessoa e em carne e osso. Só então, eles se alegram. Mas, paradoxalmente, com aquela alegria, eles hesitam ainda: era bom demais para ser verdade.

O corpo de Cristo ressuscitado, inteiramente tomado pelo espírito de Deus, é a semente da ressurreição de toda a carne, de todo o humano. Sua presença corpórea, em carne e osso, palpável, por todos os discípulos, de outrora, de hoje e de sempre, acende nos homens a esperança de que a morte e a corrupção não são a última palavra, mas sim o “meio”, o ambiente, a atmosfera, o habitat para a vida e a incorruptibilidade. Do meio da mortalidade há de irromper a vida. Seu corpo ressuscitado, vivo e presente no coração de cada um de nós (“ele está no meio de nós”) é para nossa alma, nossa nova vida de filhos de Deus aquilo que nosso corpo físico-biológico é a para a nossa vida biológica.

Jesus não quis que suas chagas desaparecessem com sua ressurreição. São as marcas, as credenciais de seu amor pelos homens que ele carrega para sempre no seu corpo glorioso. Isso porque não são chagas de vergonha, mas de glória. Nelas brilha o esplendor de seu amor, de sua misericórdia pelos homens.

  • A refeição, consumação das provas

Ainda para provar-lhes que era ele mesmo em carne e osso, Jesus lhes pede que lhe deem algo de comer. Ele era real, de carne e osso e não um fantasma, uma fantasia deles. Por isso faz questão de comer com eles. Seu alimento foi o peixe assado (alguns manuscritos acrescentam um favo de mel). Tudo tem seu sentido alegórico. Em sua paixão e morte de Cruz ele mesmo fora como um peixe assado no fogo do sofrimento e do amor. O anagrama Ichtys, que significa “peixe”, evoca isso e transforma em declaração o que é um nome. Com efeito, as letras do nome se transformam em iniciais da declaração: “Iesous Christos Theou Yuios Soter” (Jesus Cristo, filho de Deus salvador). Se o peixe grelhado era, para os padres da Igreja, símbolo da paixão de Cristo, o favo de mel seria sinal da doçura e alegria da ressurreição. Já a refeição pascal judaica recordava a mistura de amargo e doce. Não há como fazer a páscoa sem experimentar a tristeza como um retraimento da alegria (Bem-aventurados os que choram!) e sem experimentar a alegria como a abertura e desvelamento do que se ocultava na tristeza.

  • Vós sereis testemunhas de tudo isto

A última parte do Evangelho de hoje termina com este grandioso ordenamento: “E vós sereis testemunhas de tudo isso”. Mas, para isso acontecer, era necessário ainda conduzir os discípulos para o conhecimento da plenitude da mensagem da Páscoa; que entendessem que tudo o que o que acontecera a Ele está contido nas  Escrituras; que Ele, enfim, é a realização, o cumprimento de tudo o que fora anunciado e esperado por Israel, desde Abrão até João Batista. Ou seja, o evento da cruz e ressurreição e sua repercussão universal entre os povos da terra a partir de Jerusalém está no centro de todas as      Escrituras. É o que Jesus expressa citando Isaias 53: “Assim está escrito: “O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia” (Lc 24,46). E eles, agora deverão ser os mensageiros, as testemunhas deste mistério, deste ato iniciado na e pela Cruz.

Os Apóstolos, são, assim, ordenados e constituídos as testemunhas primordiais do evento da cruz e da ressurreição. O seu anúncio e testemunho, pelas palavras e pelas obras, é que daria o arranque inicial da repercussão do mistério pascal de Cristo em toda a terra. O testemunho deles seria animado e amparado pelo Prometido do Pai, pelo Poder do Alto, o Espírito Santo. É o que lemos nos Atos dos Apóstolos, lido durante o tempo pascal. A palavra “atos”, em grego, é “práxeis”. “Práxis” é ação. Não é ação no sentido de mera atividade. É ação no sentido de consumação; um agir que vai nascendo, crescendo, amadurecendo buscando sempre o seu sumo. Agir, portanto, significa, aqui, levar ao sumo o pertencimento ao mistério de Cristo no mistério da Igreja, que, aqui, engloba toda a humanidade e todo o cosmos.

Conclusão

Poderíamos chamar o Domingo de hoje – terceiro da Páscoa – o Domingo do Primeiro Anúncio, do Kerygma cristão.

Hoje, isto é, desde o vaticano II, a Igreja está se empenhando em recuperar cada vez mais consciente e ardorosamente sua dimensão querigmática. Falando da importância e do papel do vigor do Primeiro anúncio, assim se expressa nosso Papa Francisco: “Querigma é o fogo do Espírito… que nos faz crer em Jesus Cristo, que, com sua morte e ressurreição, nos revela e nos comunica a misericórdia infinita do Pai” (EG 164). Este deve ser o ponto de partida, o princípio que deve arder no coração de cada pregador que anuncia e de todo fiel que escuta a Boa Nova da Igreja: “Jesus Cristo te ama, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar” (idem, 164).

“Primeiro”, portanto, aqui não se refere ao primeiro de uma série de outros princípios que viriam depois, mas sim, ao básico, ao fundamental, ao originário, isto é, aquele do qual ainda hoje nasce e deve nascer, crescer e amadurecer todo fiel em seu seguimento de Jesus Cristo, toda a Igreja e toda a sua obra evangelizadora.

Exemplo expressivo desse fogo originário que incendeia e transforma o coração dos fiéis, nós franciscanos podemos ver em São Francisco e Santa Clara. De Francisco, por exemplo, dizem primeiramente as Fontes que, diante do encontro com o Crucificado de São Damião, não apenas ficou tão cheio de contentamento e tão iluminado por aquela alocução que sentiu em sua alma ter sido realmente o Cristo crucificado quem lhe falou (LTC 13), mas também que, perdendo todo o medo e vergonha, saiu pedindo pedras e ajudantes para a reforma das igrejas de AssisE, o mais importante de tudo, logo acrescentam que desde àquela hora […] sempre enquanto viveu levou em seu coração os estigmas do Senhor Jesus (idem). As chagas de Jesus, sinais indeléveis do seu amor pelos seres humanos, seus irmãos, marcaram São Francisco de tal modo que ele se tornou, pela identificação que o amor opera entre amante e amado, suas próprias chagas gloriosas – o que o povo de Canindé, no Ceará, com o seu “São Francisco das Chagas” não esquece, jamais de reverenciar.

Santa Clara, por sua vez, costumava exortar suas irmãs para que se fortalecessem sempre de novo, na forma de vida iniciada nelas pelo ardente desejo do Pobre Crucificado (Cf. 1CCL 13).

Para nós, mais idosos, essa exortação é uma grande novidade, pois durante séculos nossa formação em vez do ardente fogo e da luz clarificadora do encontro com Jesus Cristo crucificado-ressuscitado, contidos na sagrada escritura, principalmente nos Evangelhos  ou, para nós franciscanos, nas Fontes Franciscanas, principalmente nos Escritos de São Francisco, tivemos que nos contentar com a fraca e por vezes ilusória luzinha da teologia sistemática, da ascese, da moral, quando não do Direito Canônico, etc.

Durante séculos nossa formação cristã e religiosa esteve à margem deste Princípio.  Por isso, a insistência do Papa  para que o querigma cristão volte a ser o centro de toda a vida e de toda a ação da Igreja; que o amor salvífico de Deus venha antes e esteja à frente das obrigações morais e religiosas; que a verdade evangélica seja proposta como beleza, encantamento, convite, atração jamais como imposição; que ela, acima de tudo, seja pautada pela alegria, pelo estímulo, e pela vitalidade de uma integração harmoniosa sem a qual a vida e a pregação ficam reduzidas a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas (165).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm