4º DOMINGO DA PÁSCOA
22/04/2018
Pistas homilético-franciscanas
Leituras: At 4, 8-12; Sl 117 (118); 1Jo 3,1-2; Jo 10,11-18
Tema-mensagem: Ovelhas do Cordeiro imolado e pastores do único e bom Pastor.
Sentimento: Júbilo e gratidão.
Introdução
Em seu zelo e desejo de conhecer e viver sempre mais profundamente o mistério pascal, a Igreja, através da liturgia deste 4º Domingo da Páscoa, nos põe na proximidade do Cristo, o verdadeiro Cordeiro sem mancha e o único Bom Pastor.
- De novo, o nome de Jesus
Na primeira leitura de hoje ouvimos uma parte do discurso de Pedro diante do Sinédrio. Depois da cura do paralítico no pórtico de Salomão, no Templo de Jerusalém, enquanto ainda discursava, Pedro, juntamente com João, foram presos e levados para interrogatório diante do Sinédrio. Os maiorais do conselho dos sacerdotes (Anás, Caifás, etc.) mandam trazer Pedro e João à presença deles e os interrogam: “A que poder ou a que nome recorrestes para fazer isso?”
Esta situação dá a Pedro a oportunidade de testemunhar o Nome de Jesus.
- Jesus cumpre sua promessa
O primeiro ato dos Apóstolos, e o mais significativo de todos, vem assim e brevemente descrito: “Pedro, cheio do Espírito Santo, disse…”. Realizava-se, assim, a promessa que Jesus lhes fizera: que, ao serem levados diante das sinagogas e outros tribunais não deveriam se preocupar porque naquela hora, o Espírito Santo haveria de dizer-lhes o que e como deveriam responder (Cf. Lc 12,11-12). Assim, o processo ou acusação, que no princípio lhes parecia uma desventura ou desgraça, transforma-se na preciosa ocasião, alegria e honra de poder fazer o anúncio do Nome de Jesus, isto é, da vigência de sua pessoa e de sua obra.
Torna-se evidente, então que o verdadeiro protagonista e ator dos Atos dos Apóstolos não são eles, os Apóstolos, mas o Espírito Santo, o Espírito que ressuscitou Jesus dentre os mortos e que ele prometeu enviar-lhes como o outro Paráclito. É Ele que se manifesta, dando a Pedro, que, no momento da Paixão de Jesus havia fracassado e O havia negado, a coragem de, agora, testemunhar sua fé no Nome de Jesus.
A experiência de ser possuído e de deixar-se conduzir pelo Espírito Santo, sempre entusiasmou os verdadeiros evangelizadores como, por exemplo Joana Darc, São Francisco com seus primeiros frades. Destes temos os famosos “Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus Companheiros”, os feitos das primeiras gerações do movimento franciscano e que são conhecidos mais popularmente como “I Fioretti”. Num desses Atos, por exemplo, narra-se que sendo “capturados e atormentados de muitas maneiras e amarrados fortemente, foram levados para junto do sultão, em cuja presença, São Francisco, tomado pelo Espírito Santo, pregou tão divinamente acerca da santa fé católica, que se ofereceu a demonstrá-la pela prova de fogo” (Atos 27). “Os atos da vida dessas primeiras gerações não são fatos apenas; são feitos, verdadeiras taumaturgias, isto é, feitos realizados no poder e pelo poder de criação do Espírito de Cristo pobre, crucificado” (Fontes Franciscanas: Introdução Geral, Mensageiro de Santo Antônio, p. 10).
Como diz São João numa de suas cartas, lida no segundo domingo da Páscoa: “É o Espírito quem dá testemunho, porque o Espírito é a verdade”. É o Espírito Santo que abre, revela, manifesta e faz brilhar quem é Jesus Cristo, que, por sua vez, é a verdade do Pai: quem o vê, vê o Pai”. Pedro, o Apóstolo, portanto, se torna porta-voz do testemunho do Espírito Santo. E este testemunho versa a respeito do Nome de Jesus.
- Jesus, o centro e a essência do querigma cristão
Assim, movido pelo Espírito de Deus, Pedro proclama: “É pelo nome de Jesus Cristo, o Nazareno, crucificado por vós, ressuscitado dos mortos por Deus que este homem se acha aí, diante de vós, curado!”. No centro desta fala de Pedro, portanto, está o Nome de Jesus. Eis o querigma que eles, israelitas, deviam acolher porque predito pela Sagrada Escritura, principalmente pelo profeta Isaias.
Anteriormente, no seu discurso no pórtico de Salomão, Pedro já tinha dito à multidão, em tom de testemunho: “Graças à fé no nome de Jesus, este Nome acaba de fortalecer este homem para o qual estais olhando, e que vós conheceis; a fé que vem de Jesus restituiu a esse homem toda a saúde, na presença de todos” (At 3, 16).
Nome, aqui, mais que um “rótulo”, um sinal vocal que designa alguma coisa ou alguém, é a proximidade, a presença da pessoa mesma nomeada, evocada, invocada. No caso, a pessoa mesma é Jesus. Para o discípulo, Jesus é nome sagrado, precioso porque evoca sempre de novo a alegria e o encantamento, a doçura e a ternura da graça do encontro e do chamado. De São Francisco, por exemplo diz São Boaventura: “Ao ouvir dizer, porém, o nome de Jesus, enchia-se internamente de certo júbilo e externamente parecia transformar-se todo, como se um sabor de mel lhe mudasse o gosto ou um som harmonioso lhe mudasse a audição” (1B 19,6). De Joana Darc se conta que ao encaminhar-se para o cadafalso ia repetindo somente “Jesus! Jesus! Jesus!”
Que este Nome é fonte de salvação, isto é, de plena, vigorosa, essencial saúde, estava sendo provado pela cura daquele paralítico, mas também pela conversão e fé dos próprios apóstolos, Pedro e João, que de simples e humildes pescadores, medrosos e incrédulos se tornaram ardorosas testemunhas de Jesus.
1.3. Jesus, a pedra angular
Em seguida, Pedro, servindo-se de novo da Sagrada Escritura, proclama: “Ele é a pedra que vós, os construtores, tínheis rejeitado e que se tornou a pedra angular” (Sl 118,22). O próprio Jesus, no evangelho de Lucas, cita esta passagem do salmo, no contexto da narração dos vinhateiros homicidas (Lc 20, 17). A pedra de ângulo é o princípio a partir do qual se dá toda a edificação de uma construção e que reúne os lados diversos dela.
Ora, se até então Israel havia se edificado, construído sobre a pedra angular da lei, dos profetas, etc., agora, diz Pedro, a edificação do novo Israel e da Nova Humanidade, da nova história se dá graças a Jesus. É Ele quem começa a reunir os dois lados da humanidade, judeus e gentios, num único povo de Deus, na única família do Pai. Ele – o rejeitado, o recusado, o deixado de lado pelos homens – por sua oferenda sacrifical expiatória, consumada na cruz, foi acolhido por Deus, ressuscitando-o de entre os mortos. Esta é a maravilha, o grande e estupendo ato que Deus fez na Páscoa, manifestando que “eterna é a sua misericórdia”. Os maiorais dos sacerdotes, porém, em vez de se reerguerem a partir desta Pedra fizeram dela uma pedra de tropeço, de escândalo. Pedro, ao testemunhar o Nome de Jesus, corajosamente lança na face destes homens – aparentemente zelosos pelo Templo e pelo culto de Iahweh – a verdade do seu tropeço.
A essência da pregação apostólica consiste, portanto, na revelação, no anúncio universal – católico – deste Nome; consiste em deixar os homens de toda a terra, de todos os povos, nações e línguas acessar a salvação do Pai, que age em toda a parte através do anúncio deste nome; consiste em congregar sob o brilho e o vigor deste Nome os homens novos, que cantam o canto novo dos renascidos em Cristo, cujo sacramento (sinal visível do mistério) é a Igreja. Consequentemente, o desafio contínuo desta Igreja é ser de fato o que ela é a partir do nome de Jesus: una pela unidade da caridade Dele; santa porque, desprendida dos interesses mundanos, está ligada unicamente a Ele; católica porque aberta a todos os seres humanos de toda a terra em suas diferenças acolhe a todos como mãe amorosa e misericordiosa; e apostólica porque fundada no testemunho dos Apóstolos que, por sua vez, se funda no testemunho do Espírito Santo.
- Filhos de Deus, nossa nova identidade.
A segunda leitura de hoje, tirada da primeira Carta de João, toca na raiz de nossa identidade: “Vede que grande amor nos outorgou o Pai, que sejamos chamados filhos de Deus, e nós o somos!” Estamos, pois, diante da nossa nova identidade ou filiação. Adão (o homem terreno, terroso), fora criado por Deus como sua imagem e semelhança, isto é, como seu filho. Mas, Adão menosprezou o dom da criação-filiação e negou-a com o pecado, passando a viver, assim, fora da comunhão-unidade com Deus. A filiação divina do homem ficou inacessível aos filhos de Adão. Esta realidade é não somente resgatada, mas recriada no novo nascimento dos homens em Jesus Cristo, o último e verdadeiro Adão, à imagem do qual o primeiro fora criado. Ser discípulo de Jesus é participar deste novo nascimento.
O cristão é verdadeiramente filho de Deus. Trata-se de uma realidade nova no coração, isto é, na raiz do nosso humano, uma realidade que antes não existia. Graças a esta nova realidade radical estabelece-se uma nova relação com Deus, tornada possível pela obra de Cristo, isto é, pela sua encarnação-paixão-morte e ressurreição. Não se trata de uma obra que surge através do esforço do homem, mas, repetindo, de “um presente de Deus”, isto é, uma presença do amor do Pai (1Jo 3,1). É graças à presença e atuação desta nova “realidade” – o Espírito de Deus – que nos tornamos libertos e temos a ousadia de chamar Deus de “nosso Pai” (Cf. Introdução ao Pai Nosso, na Missa)
Nossa filiação divina, porém, não é um dado pronto, feito, mas a se fazer. O devir e o ser filho de Deus é obra da graça de Deus, de seu amor gratuito, de sua benevolência, assim descrito por Mestre Eckhart:
Deus e eu, nós somos um nesse operar: Ele opera, e eu venho a ser. O fogo transforma em si o que se lhe acrescenta, transformando esse acréscimo em sua natureza. Não é a madeira que nela transforma o fogo, mas antes o fogo nele transforma a madeira. Assim também nós somos transformados em Deus, de tal modo que o conheceremos como Ele é (1 Jo 3, 2). São Paulo diz: Assim conheceremos: justamente, eu a Ele, como Ele a mim, nem menos nem mais, simplesmente de modo igual (1 Cor 13, 12).
Este processo de conhecimento ou de assemelhação significa vir a ser filhos no Filho e consequentemente, nós também, filhos muito amados do Pai. A esta graça os cristãos gregos chamaram de “theiosis” e os latinos de “deificatio”: deificação. Mestre Eckhart recorda que esta graça é fruto da encarnação. Ele diz: “a imagem do Pai, que é o Filho eterno, tornou-se a imagem da natureza humana. Pois é tão verdadeiro Deus ter-se feito homem, como também o é o homem ter-se tornado Deus”.
E João continua falando desta filiação: “Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas o que seremos ainda não se manifestou. Sabemos que, quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele, já que o veremos, tal como ele é” (Jo 3, 2). O nosso conhecimento de Deus no amor, isto é, nossa assemelhação com Ele, é, aqui, incoativo. Está em devir como já dissemos. Estamos sendo gerados e gestados por Deus. Ele já sabe o que seremos, mas a nós, este mistério ainda nos está oculto. Por isso, os antigos diziam: pouco saber, mas muita jovialidade é dada aos filhos de Deus na terra. A única coisa que sabemos é que na aparição definitiva de Jesus Cristo nós aparecemos como seus irmãos, como seus semelhantes. No rosto de cada um de nós, a exemplo de São Francisco, resplandecerá o ser e as marcas – as chagas – do Filho de Deus.
- Ovelhas do cordeiro imolado e pastores do único e bom pastor
A liturgia de hoje, se empenha em mergulhar no mistério pascal proclamando a parábola do Bom Pastor, usada por Jesus mesmo para transmitir aos seus discípulos a identidade da pessoa Dele e de sua missão.
- Jesus o bom pastor
Acompanhemos então, a parábola. Jesus começa se autodenominando: “Eu sou o bom pastor: o bom pastor se despoja da própria vida por suas ovelhas” (Jo 10, 11).
A alegoria contém elementos muito conhecidos do mundo agropastoril da época. Mas há na narrativa, também, alguns elementos que são aplicáveis apenas a Jesus. Não é verdade, por exemplo, que haja pastores que deem a vida pelas suas ovelhas e nem por isso são considerados maus pastores. A diferença é nítida e gritante. Se na vida pastoril a primazia está com o pastor e seus familiares, em vista dos quais as ovelhas são sacrificadas, com Jesus Cristo se dá o contrário: a primazia está com as ovelhas pelas quais Ele arrisca e dá sua vida.
É importante notar que, se até então, se pertencia ao rebanho de Deus, que era a Casa de Israel, pela observância da lei e de suas tradições, agora para se entrar no novo rebanho, o novo Povo de Deus, é preciso “ouvir sua voz” (do Pastor, de Jesus) (Jo 10, 3). Estabeleceu-se assim um novo princípio de pertencimento ao rebanho, bem como entre o pastor e as ovelhas, Deus e seu Povo.
Para revelar a profundidade desta nova comunhão entre Ele e suas ovelhas, Jesus explica que se trata da mesma comunhão que existe entre Ele e o Pai. Uma comunhão de fé, que se traduz na mútua obediência: assim como o Filho obedece ao Pai e o Pai ao Filho, assim também é o novo relacionamento de Jesus com suas ovelhas: enquanto essas ouvem e obedecem sua voz, Ele ouve, escuta e obedece a suas ovelhas.
Jesus se intitula “bom pastor”. Pastor significa cuidador, protetor, condutor. O texto grego diz, literalmente: “ho poimén, ho kalós” – o “pastor, o belo”. Para a língua grega, “kalós” é tanto “bom” quanto “belo”. O belo é, aqui, o esplendor, o brilho da auto manifestação, da verdade do ser. Jesus é o belo pastor, pois nele brilha o esplendor da verdade do ser Pastor. Bom é o que responde à sua essência: o que é o que é destinado a ser. Jesus é aquele que realiza a essência do Pastor, neste sentido, ele é o bom Pastor. Bom é aquilo que é segundo o Todo. Jesus é o bom Pastor por que é o Pastor “segundo o todo”, isto é, segundo Aquele Bom originário que é o único bom, que, em sua benignidade difusiva, comunica todo o bem aos seres, Deus Pai, proclamado por São Francisco como “todo o bem, o sumo bem, o bem inteiro, o único bom” (LH 11).
- O bom, o belo Pastor expõe sua vida
Segundo a parábola, o Bom (Belo) Pastor “põe a sua alma” por suas ovelhas. Isto é: ele se expõe à morte, se despoja de sua vida por elas porque o sentido de sua vida, o tesouro de seu coração, são elas, as ovelhas. Por isso, amá-las, cuidar delas até a morte é sua honra, grandeza e dignidade. Eis o sentido da cruz e da eucaristia.
A eucaristia, na verdade, anuncia e celebra este mistério da doação diária e permanente de Deus, através de Jesus, às suas criaturas. Uma doação tão radical que suas criaturas podem comer sua carne no pão consagrado e beber o sangue do seu amor no vinho sacramentado. Enfim, o pastor se torna Cordeiro imolado, alimento, comida e bebida, para a vida das suas ovelhas, as criaturas todas.
Cada discípulo de Jesus é chamado a fazer o mesmo em sua memória, isto é, dar a vida, ser pão para o sustento do vigor dos homens, ser vinho para a alegria dos homens, a ser, enfim, “eucaristia”, sacrifício a modo do trigo que triturado se transforma em farinha e pão; a modo das uvas esmagadas que se transformam em vinho, símbolo do sangue derramado por amor. Só assim o discípulo estará cumprindo a ordem dada por Ele na Última Ceia: “Fazei isto em memória de mim”; só assim, poderá fazer o mesmo que o mestre: tornar a sua vida oferenda sagrada – sacro ofício (sacrificium), sacro dom (sacerdos), uma “eucaristia”, isto é, uma bela ação de graças.
Entretanto, nota Santo Agostinho: se Jesus podia fazer de sua vida um sacrifício sem precisar de nós, nós não podemos fazê-lo sem Ele. “Sem mim, nada podeis fazer…” (Jo 15, 5). Sem a caridade, o amor-gratuidade, que vem de Cristo, todo o sacrifício de si é vão (Cf. 1 Cor 13, 3), todo o martírio é “falso testemunho”.
- Jesus e os maus pastores
O Bom Pastor se distingue, assim, do mercenário, isto é, daquele que não é movido pelo vigor da graça do encontro, do toque do enamoramento, da caridade, mas pelo interesse do ganho, do lucro, do prestígio, do carreirismo, clericalismo, gnosticismo, elitismo (Cf. “Cristãos leigos e leigas na Igreja e na Sociedade”, 49), etc. Neste caso, estamos diante de um falso pastor. Por isso, Jesus insiste: “O mercenário, que não é verdadeiramente pastor e a quem as ovelhas não pertencem, ao ver chegar o lobo, abandona as ovelhas e foge; e o lobo se apodera delas e as dispersa” (Jo 10, 12). Na verdade, o mercenário quer e busca apenas o lugar, o status de pastor, mas não sua vocação e missão; não imita seus gestos, obras, sua doação.
- O bom pastor conhece suas ovelhas
Jesus diz, ainda: “eu conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas me conhecem, como o meu Pai me conhece e eu conheço o meu Pai”. Conhecer, aqui, indica o processo de, movido pela graça do encontro, assemelhar-se no co-pertencimento como costuma se dar, por exemplo, entre dois cônjuges. Enfim, conhecer é fruto do amor. Amor entendido como doação-recepção expresso por Jesus com o primeiro mandamento: amar com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças. Poderíamos, pois, parafrasear: “Eu amo as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas me amam, como o meu Pai me ama e eu amo o meu Pai”. Todavia, se o conhecimento – o amor – nasce da gratuidade do encontro, ele só floresce e amadurece na e pela graça da solicitude e do cuidado pelas ovelhas. Por isso, dizia a sábia Raposa ao Pequeno Príncipe: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa ser tão importante!”
Jesus ainda diz: “Eu tenho outras ovelhas que não são deste redil, e também a estas é preciso que eu conduza; elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10, 16). Com esta proposição Jesus explicita que Ele veio restabelecer a vocação-missão original de Israel: ser o Povo de Deus que iria e deveria congregar ao seu redor os povos todos do universo inteiro. Mas, por causa de seu proselitismo sectarista e soberbo Israel perdeu-se a si mesmo como Povo de Deus e impediu, também, que os povos chegassem a esta graça. Os seus mestres e pastores se apoderaram da chave do conhecimento. Eles mesmos não entraram no mistério e impediram a outros de entrar (cf. Lc 11, 52) – o que é o risco de todo o clericalismo – não menos no clericalismo cristão. O clericalismo é uso do poder pelo processamento ideológico da mentalidade do mercenário na liderança religiosa. Está no contrapé do espírito do Bom Pastor: o cuidado humilde e amoroso pelas ovelhas. O clericalismo sempre se rege pela lógica da exclusão. O Bom Pastor se rege, porém, pela catolicidade, isto é, universalidade do amor-cuidado por tudo e por todos.
A universalidade do cuidado de Jesus se mostra em sua morte na cruz assim profetizada, sem o querer ou saber, pelo sumo sacerdote Caifás: “era preciso que Jesus morresse pela nação, e não somente por ela, mas para reunir na unidade os filhos de Deus que estão dispersos” (Jo 11, 52). Não é à toa que sobre a cruz de Jesus estava anunciada a causa de sua morte nas principais línguas daquele tempo, isto é, em hebraico, latim e grego: “Jesus, o Nazareno, rei dos Judeus” (Jo 19, 19-20). Cristo morreu para reunir na unidade não só o Israel do sangue, mas também o Israel do espírito; não só os que são filhos de Abraão pela descendência carnal, mas também aqueles que o são pela descendência espiritual da fé. Jesus prediz a reunião de todos, judeus e gentios, na unidade dos filhos de Deus, da família do Pai. “E haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10, 16).
- A morte na Cruz, uma necessidade livre de Jesus
Por fim, Jesus conclui sua parábola: “O Pai me ama, porque eu me despojo da vida, para a retomar em seguida. Ninguém me tira a vida, mas por mim mesmo eu dela me despojo; eu tenho o poder de me despojar da vida e tenho o poder de a retomar: este é o mandamento que eu recebi do meu Pai” (Jo 10, 17-18). A morte de Jesus na cruz não é a concreção de uma necessidade fatal, nem da mera iniquidade humana que o teria constrangido. Ela é concreção de uma necessidade livre, advinda da gratuidade do amor. O seu amor pelo Pai haveria de se concretizar no seu amor pelos homens. Seguindo o mandamento do Pai, isto é, sua recomendação, Jesus não teve sua vida tirada, mas como filho muito amado, ele a dá livre e espontaneamente por todos os filhos do Pai, dispersos pelo mundo inteiro e por todo o sempre.
Jesus, o bom Pastor, inaugurava, assim, o princípio, a regra de ouro para todas as suas ovelhas. Ser discípulo de Jesus, participar de sua grei, é segui-Lo em dando a vida por Ele e para os seus a partir da gratuidade Dele e não a partir do próprio poder.
Conclusão
O anúncio querigmático de Jesus, por parte de Pedro, que, no sinédrio, falou “cheio do Espírito Santo”, nos remete à exortação do Papa Francisco a que sejamos “evangelizadores com Espírito” (EG 259). Somos evangelizadores com Espírito diz ele, quando vivemos e evangelizamos a partir do amor que recebemos de Jesus, “daquela experiência de sermos amados por Ele e que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de apresentá-la, de torná-la conhecida, que amor seria?” (EG 264). Consequentemente a essência de toda a nossa vida e evangelização não pode ser outra, senão o anúncio de Jesus, o Salvador.
Já, com a parábola do bom Pastor, Jesus nos exorta a sairmos de nossa zona de conforto, de nossa “própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do evangelho” (idem 20); de sermos evangelizadores que contraem o “cheiro” de suas ovelhas pois só assim estas escutarão sua voz (idem).
Foi a partir desse princípio evangélico que o mesmo Papa, em 19 de setembro de 2013, falando a um grupo de Bispos ousava chamar-lhes a atenção para que evitassem o escândalo de serem “bispos de aeroporto!”, isto é, amando mais as viagens e as reuniões do que a presença cuidadosa e compassiva no meio de suas ovelhas. “Sejam antes”, dizia, “pastores acolhedores em caminho com o vosso povo, com afeto, com misericórdia, com doçura e firmeza paterna, com humildade e discrição, capazes de olhar também para os seus limites e de ter uma dose de bom humor”.
Precisamos recordar, ainda, que todo o homem foi criado para ser pastor – isto é – cuidador da criação. Esta foi sua primeira vocação-missão recebida já no paraíso através de Adão: “Enchei a terra e cuidai dela” (Gn 1,28). Nunca, talvez, como hoje, se faz tão necessária a recordação desta vocação, pois “o ambiente natural e social está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável” (LS 6). Cada criatura é uma ovelha pela qual o seu Senhor, o Bom Pastor, nos exorta a que, com Ele e como Ele, dispensemos nossos cuidados e a seu exemplo demos nossa vida para que ela tenha vida e a tenha em abundância.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm