6° domingo da Páscoa

6º DOMINGO DA PÁSCOA

06/05/2018

          Pistas homilético-franciscanas

Leituras: At 10,25-26.34-35.44-48; Sl 97 (98); 1Jo 4,7-10; Jo 15,9-17

Tema-mensagem: Chamados e ordenados para amar como o Pai e seu Filho se amam e nos amam e permanecer nesta ordenação a fim de que nossa alegria seja perfeita

Sentimento: Alegria

Introdução

O tempo da Páscoa, o tempo da celebração das aparições de Jesus ressuscitado, está chegando ao seu fim. Sua volta para o Pai está próxima. Por isso, a Igreja começa a recordar e a celebrar as últimas e mais importantes exortações de Jesus aos seus discípulos. Assim, neste 6º Domingo, ela retoma o grande discurso de despedida de Jesus, no qual, mais uma vez, Ele repete e insiste, como no domingo passado: “Como o Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor”.

  1. A universalidade da Igreja começa a se manifestar

A primeira leitura de hoje, como em todos os domingos da Páscoa, é tirada dos Atos dos Apóstolos que tem como objetivo celebrar sempre de novo o surgimento da Igreja, a partir da ação do Espírito Santo e do anúncio e do testemunho da Palavra de Deus e dos feitos dos Apóstolos. O trecho nos apresenta a conversão e o batismo de um gentio, isto é, de um “goy” (não-judeu), Cornélio, chefe de uma legião de soldados romanos.

  • As visões de Cornélio e de Pedro

Este Cornélio, que vivia em Cesareia, “um homem muito religioso e temente a Deus… que fazia muitas esmolas e rezava constantemente” (At 10,1-2) recebera, misteriosamente, de um anjo, que o visitara em forma de visão, a ordem de que mandasse buscar “um certo Simão, chamado Pedro” (At 10,5). Enquanto isso, Pedro, que estava em Jope, também tivera uma visão misteriosa. Num êxtase viu uma toalha abarrotada de animais impuros e profanos que descia do céu e uma voz que lhe ordenava: “Pedro, levanta-te, mata e come!” (At 10,13). Ao se recusar terminantemente, por ser uma comida impura, a voz voltou com mais insistência e por três vezes: “Não chames de impuro o que Deus purificou” (idem,15). Pedro, desconcertado, procurava saber o significado de tudo aquilo quando chegaram à sua casa os mensageiros do centurião que lhe narraram ordenadamente tudo o que havia acontecido com seu chefe. Pedro então, partiu com eles.

Esse é o plano de fundo da cena que vem relatada na primeira leitura de hoje. Aparentemente, o acontecido em Cesareia é um pequeno fato, restrito ao grupinho do gentio Cornélio e sua família e de Pedro e seus companheiros. Mas, na verdade estamos diante de um grande ato, isto é, de algo semelhante ao irromper de uma fonte que vai aos poucos se transformar num grande rio que, por sua vez irá fecundar terras e despertar a vida em inúmeras aldeias, povos e nações. É o mistério do poder da Boa Nova, do Espírito de Deus, pulsante no mistério da Encarnação, Morte e Ressurreição de Jesus, rompendo barreiras e irrompendo no coração e na história de toda a humanidade.

De novo a iniciativa é de Deus e o protagonista o Espírito e não os gentios, muito menos os Apóstolos e discípulos judeus. Estes, até, no começo, se mostravam muito hesitantes e avessos à mensagem misteriosa vinda do céu. Chegaram até a recriminar Pedro, dizendo: “Tu entraste na casa de pagãos e comeste com eles”. (At 11,3). Por isso, a narrativa termina testemunhando a admirável transformação da mente – conversão – de todos, principalmente de Pedro e demais judeus que o acompanhavam: “Quem seria eu” – exclama Pedro – “para me opor à ação (Ato) de Deus? Ao ouvirem isso, os fiéis de origem judaica se acalmaram e glorificavam a Deus, dizendo: “’Também aos “goyim” (às nações, aos povos gentios) Deus concedeu a transformação do espírito (metánoia) para entrar na Vida” (At 11, 18).

  • Pedro começa a compreender a universalidade da Igreja

Assim, a misteriosa visão em Jope veio para revelar que a discriminação entre sagrado e profano, puro e impuro, fora anulada com a encarnação do Filho de Deus, culminando com o mistério de sua paixão, morte e ressurreição. Portanto, como não há discriminação de alimento puro e impuro, também não se deve fazer discriminação entre “raça pura” e “raça impura”. Deus tornou tudo puro pela encarnação do Filho e santificou todas as coisas pela efusão do Espírito Santo. Assim, todos os povos, de todas as etnias, todas as nações de todos os lugares da terra, são chamados a seguir a Luz, o Caminho que vem do alto, a deixar-se transformar no pensamento, no espírito e a viverem não mais a partir deles mesmos, mas da graça e da justiça da fé em Jesus Cristo. Pedro, começa então a dar-se conta desse inusitado e surpreendente dom de Deus: “Agora estou compreendendo que Deus não faz distinção entre as pessoas” (v. 35).

A visão de Jope veio, assim trazer de novo a religiosidade – que é amor-caridade-doação – para dentro da Religião.  Sem a religiosidade a religião fenece e a discriminação cresce. Faz-se, ou melhor, cria-se a “separação-secção” de puro e impuro, de sagrado e profano, de escolhidos e não escolhidos (gentios para os judeus; pagãos para os cristãos), de clérigo e leigo, de justos (santos) e pecadores, etc…  A religiosidade, porém, “não faz discriminação (prosopolémptes) entre as pessoas”, isto é, não olha para as “máscaras” (prósopa) que os homens usam, não se rege pelos rótulos que eles se aplicam a si mesmos e uns aos outros, mas, ama a todos igualmente e do mesmo modo.

Religião, enquanto exercício do ter, do saber, do poder, que se refere ao domínio do sagrado, discrimina e exclui. A religiosidade, enquanto caridade, vive do esvaziamento (kénosis), da pobreza, de todo o ter, de todo o saber, de todo o poder, para, no não-ter, no não-saber, no não-poder, deixar ser a jovialidade da caridade. Ela se transforma, assim, em comunhão (koinonía), verdadeira “religio” (religação e recolhimento) de todos os homens na unidade da caridade.

Este é o sopro da novidade (kainótes) do Evangelho: a Boa Nova da Nova Humanidade que irrompe do vigor da caridade que o Jesus histórico da fé testemunhou até a morte de Cruz. O grande risco da religião é perder o vigor de raiz da religiosidade e, assim, não deixar o mistério ser mistério, e, deste modo, perder a jovialidade, a Cruz. Por isso, a religião, para ser verdadeira religião, precisa, sempre de novo libertar-se para a liberdade dos Filhos de Deus, isto é, para o vigor e o frescor da religiosidade (o ser do religioso), que é Caridade.

  • A religiosidade da religião

Ser cristão, mais que “católico praticante”, é tornar-se seguidor de uma Pessoa, Jesus Cristo, o filho de Deus Pai, constituído por Ele como nosso Caminho, nossa Verdade e nossa Vida; é dispor-se continuamente a libertar a religião de suas tendências totalitárias, discriminatórias, excludentes, para convertê-la à religiosidade da caridade católica, isto é, universal.

Simone Weil, judia apaixonada por Cristo, que se converteu a Ele na capela da Porciúncula, numa “Carta a um religioso”, reflete a dificuldade do judaísmo de acolher as diferenças dos povos na identidade da Fé, também sobre a dificuldade do cristianismo, precisamente, da Igreja, de ser católica não só de nome, mas de fato.

Ela recorda da dificuldade de Pedro em Jope e de sua perplexidade no caso de Cornélio. Sua carta é um desafio e uma provocação também para os cristãos de hoje. O desafio e a provocação que os discípulos de Jesus encontraram nos primórdios da sua história, narrada nos Atos dos Apóstolos, continua sendo o mesmo. Talvez, até, num mundo que se tornou planetário e, ao mesmo tempo, intolerante e fundamentalista, seja ainda mais agudo. A intolerância e o fundamentalismo se fundam num espírito em que a verdade é reduzida ao correto da ortodoxia e da ortopráxis. Em nome do “correto” da doutrina e da ação se age violentamente contra o “incorreto” (o outro que crê e age de modo “incorreto”). Cristo anunciou, porém, a necessidade de pôr em obra a verdade que liberta para o amor-caridade (cf. Jo 3, 21 – Diálogo com Nicodemos). Aliás, ele mesmo é esta verdade, que é via e vida, ao mesmo tempo; não, doutrina e ideologia. O cristianismo só pode cumprir a sua missão universal se for fiel à sua cristidade, que consiste na universalidade da caridade de Jesus Cristo. O cristianismo se globalizou, o mundo se planetarizou, mas a universalidade da Caridade, com letra maiúscula, está longe de ser o que está no coração de todos os homens de todos os povos da terra.

  • O Espírito Santo desceu sobre todos

A narrativa segue com esta grande surpresa: “Pedro estava ainda falando quando o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a palavra” (At 10,44).  A intenção da narrativa é muito clara: mostrar que o Espírito Santo, o Dom de Deus, o Amor de Deus, se difunde também sobre os pagãos como havia se difundido sobre os fiéis judeus, de Jerusalém e da diáspora, no dia de Pentecostes. Assim, paralelamente ao Pentecostes judaico temos igualmente o Pentecostes das nações gentias, pagãs.

Fica claro, mais uma vez, que a iniciativa é de Deus e não do Apóstolo – tanto é que Pedro mal tinha falado e o Dom de Deus (a água viva a que se referia Jesus no diálogo com a Samaritana), o Amor de Deus que ele derrama como Força do Alto, é derramado sobre os ouvintes gentios. O Espírito Santo é um só e o mesmo. Todos os seres humanos de todos os povos, raças, línguas, nações, são chamados, assim, a receber o Dom de Deus, o Amor que Deus derrama do Alto sobre tudo e sobre todos. A Igreja não está de posse, mas na posse dessa catolicidade (universalidade). Seu desafio é ser de fato o que de nome e por vocação e iniciativa divina ela é: católica, isto é, virada, voltada, aberta para todos na unidade da caridade … universal.

  1. Amar no amor que nos amou por primeiro

A segunda leitura da missa de hoje, tirada da primeira carta de São João, é um desdobramento da segunda leitura da missa do domingo passado, toda ela centrada no “dever” de amar os irmãos: “Caríssimos: amemo-nos uns aos outros porque o amor vem de Deus…” (1Jo 4,7).

A origem do amor fraterno não podia ser mais e melhor expressa do que este “porque o Amor vem de Deus” e mais ainda “porque Deus é Amor”. Ou seja, devemos amar os irmãos porque estamos diante de uma nova origem comum, um novo nascimento. Se o primeiro homem, Adão, era nascido da carne, de baixo, agora somos todos nascidos do alto, de Deus, de um único e mesmo Pai comum a todos os homens e que é Amor.

  • A primazia do amor de Deus

A insistência de João acerca da origem do amor fraterno dos cristãos é muito contundente, clara e precisa e tem como objetivo precaver os fiéis de falsas interpretações como a que já estava acontecendo, por exemplo, por parte dos gnósticos. Sem aprofundar-nos, os gnósticos se consideravam uma classe privilegiada, uma espécie de elite intelectual e espiritual no meio do povo simples e comum porque acreditavam e proclamavam que eles podiam conhecer e amar a Deus a partir de si, de seus conhecimentos elevados, mais sutis que o comum dos fiéis, dispensando, por vezes, até mesmo a Palavra de Deus, a graça. Esqueciam o grande rastro de toda a História Sagrada do Antigo e do novo Testamento: o Amor de Deus sempre veio até nós porque Ele tomou a iniciativa, culminando com o envio de seu Filho unigênito. Assim, o amor que há no homem, se realmente for amor, é coisa vinda, nascida de Deus e não do homem.

  • Nosso amor como resposta

Nosso Papa Francisco, desde a Evangelii Gaudium (2013), vem nos alertando acerca do fascínio pelo espírito do gnosticismo. “O gnosticismo, diz ele, se assenta numa fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos” (EG 94).

Agora, mais recentemente, com a Exortação Apostólica “Gaudete et Exultate”, voltou ao assunto alertando que este inimigo da santidade pode levar-nos a esvaziar o mistério de Cristo, de sua encarnação, preferindo “um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja e uma Igreja sem povo” (GE 37). E este perigo, continua o Papa, pode fazer-se presente “tanto nos leigos das paróquias como naqueles que ensinam filosofia e teologia em centros de formação”. Isso se dá, por exemplo, quando creem que com suas explicações podem tornar perfeitamente compreensível toda a fé e todo o Evangelho, “reduzindo o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura, que procura dominar tudo” (GE 39). Ou ainda, quando, por saberem mais que os outros, se consideram já “santos, perfeitos, melhores do que a ‘massa ignorante’” (GE 45).

E, de novo, para combater estes males, nosso Papa nos coloca diante de São Francisco que, ao ver que alguns dos seus discípulos se envaideciam porque ensinavam a doutrina, escreveu assim a Santo Antônio: “Apraz-me que interpreteis aos demais frades a sagrada teologia, contanto que este estudo não apague neles o espírito da santa oração e devoção” (Idem 46). Esta indicação de Francisco a Antônio, bem como a concepção da “Ciência Útil” de frei Egídio de Assis, constitui o cerne da mística na escolástica franciscana de Alexandre de Hales e sua escola, de Boaventura, de Duns Scotus, etc.

João conclui sua explicação dizendo que “nisto consiste o amor: “Não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou por primeiro” (v.10). Por isso, o amor que o homem pode ter por Deus será sempre uma resposta e não uma iniciativa sua, como o demonstra toda a História Sagrada, culminando com o  Envio de seu Filho único “como reparação pelos nossos pecados” (idem).

  1. Mais que ser amado por Deus importa permanecer em seu amor

O mistério central da celebração deste domingo vem claramente assinalado pelas duas primeiras frases do Evangelho de hoje: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (Jo 15, 9).

Eis o anúncio da fonte, do mistério originário, do novo ordenamento, do novo vigor que vai reger, governar e sustentar a nova humanidade, a nova criação. Um ordenamento que nasce do Pai: “Como o Pai me ama…”, mas, passa ou vem pelo Filho: “assim também Eu vos amei…” e vai, agora se estender para os discípulos: “Permanecei no meu amor”.

  • Permanecer no amor de Deus

Há, pois, primeira e originariamente o movimento, o amor que vem do alto.  Somente assim, isto é, a partir desta origem, é que pode ter início o percurso inverso: de baixo para o alto, do homem para Cristo e de Cristo para o Pai. Ou seja, só podemos amar o Pai, se amarmos, antes, a Cristo e se antes de Cristo amar-nos uns aos outros. Eis, em duas pequeninas frases, o resumo, o coração da nossa fé, do nosso discipulado e de toda a evangelização cristã.

Mas, porque tanta insistência no amor fraterno e nenhuma palavra sobre o amor ao inimigo, tão acentuado em outras ocasiões? A razão é simples: o amor fraterno é a forma que, na Última Ceia, através do mandato do Amor, Jesus instituiu para que façamos circular (evangelizar) no mundo o amor “fraterno” das Três Pessoas Divinas, a Fonte da qual tudo nasce, cresce e floresce. Por isso o ordenamento: “Permanecei no meu amor…”

Permanecer, tem o modo de ser do bom agricultor que procura assentar-se em seu lote de terra a fim de bem conhecê-lo, amá-lo e cultivá-lo. Pois, sabe muito bem que só assim terá boas colheitas. Assim acontecerá também com o discípulo que permanecer, se fundamentar no amor de Jesus. Aos poucos, vai se tornando um com Ele e como Ele, desfrutando de todas as riquezas de ser Filho unigênito do Pai, vindo a ser, assim, também ele, um filho muito querido do Pai.

3.2. Observar os mandamentos

Mas como se realiza ou se concretiza a permanência em seu amor? “Se observardes os meus mandamentos…” (v. 16), responde Ele, assim como ele observa, guarda os mandamentos do seu Pai.

A ordem de fazer-se observador implica atitudes várias. Primeiramente, vem a atitude do vigilante ou das virgens prudentes, do pastor que guarda, protege suas ovelhas contra a investidas do mercenário, ou, melhor ainda, da mãe que observa, olha, cuida com atenção, carinho e amor o nenê e todas as coisas de sua casa. Assim deve ser o bom discípulo de Jesus: sempre olhando com muita atenção, investigando com muito cuidado, estudando com muita diligência, contemplando com devoção o “como” e o “quanto” o Pai nos ama a ponto de nos ter dado seu Filho único até a morte e morte de cruz.

Em segundo lugar, observar significa ser cumpridor deste amor. É ter a postura de quem põe em obra o mandamento do seu Senhor; que pratica a palavra e não apenas a escuta (Cf. Tg 1,22), pois “Não é aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ que entrará no reino dos Céus, mas aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt 7,21).

Fazer-se observador passa a ser, então e finalmente, um seguidor e imitador, ou melhor ainda: um discípulo, um amigo de Jesus. Assim, para quem se faz discípulo ou amigo, isto é, para quem está no vigor da afeição do encontro, Jesus em vez de um personagem distante, que viveu na longínqua e antiga Palestina, há 2000 anos atrás, passa a ser uma pessoa bem concreta, próxima e íntima, contemporânea; alguém com o qual, a exemplo de Francisco, se relaciona e se conversa como com um amigo, se discute como com um juiz, se faz pedidos como a um pai e se brinca como com um esposo (Cf. 2C 95).

3.3. Na perfeita alegria do Filho

Quando entramos na círculação do mistério deste novo ordenamento, não há como não ser tomado pela alegria. Pois, pode por acaso haver maior alegria do que a experiência de ser filho… filho de Deus?! E quem nos proporciona esta alegria é Jesus. Pois, como já vimos, só Nele, com Ele e por Ele é que o Pai – o sentido pleno de nossa vida –  vem até nós, como, também, é só por Ele, só com Ele e só Nele que nós podemos ir ao Pai e isto – morar na casa do Pai – o “meu Deus e Tudo” de São Francisco (Atos 1) . Por isso, Ele, o mais belo dos filhos dos homens (Sl 54,3), é, de fato, a única, a primeira, a última e a perfeita “Alegria do homem” como o decanta tão divinalmente Bach em sua famosa cantata “Jesus Alegria dos Homens”. Nele, por Ele e com Ele, como diz o Apóstolo, podemos ouvir, ver, tocar e contemplar o Princípio da Vida (1Jo 1,2-3). E, por acaso, diz São João, poderia haver júbilo maior que esse: ser tocado pela Fonte, o Pai, e dela podermos beber e comungar até a saciedade (Cf. 1Jo -3-4)?! Por isso, exclama o nosso Papa Francisco: Enche-me de vida reler este texto: “O Senhor teu Deus, está no meio de ti como poderoso Salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa” (Sof 3,17) (EG 4). Ora, se Deus se sente assim tão jubiloso por poder morar com sua criatura, como não haveríamos nós, suas criaturas, a exemplo do filho pródigo, de rejubilar por podermos morar com Ele, em sua casa?

A paixão, o ardente desejo de Jesus de permanecer com os homens e ao mesmo tempo de poder voltar para a casa do Pai são tão profundos que nem a Cruz pesa ou conta. Pelo contrário, ela se torna sua honra, dignidade e glória, enfim, sua alegria. Por isso, o Evangelho em que resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente à alegria (EG 5). Neste caso, “a alegria evangélica, torna-se um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados”… É uma segurança interior, uma serenidade cheia de esperança que proporciona uma satisfação espiritual incompreensível à luz dos critérios mundanos” (GE 125). Por isso, ordenara São Francisco a Frei Leão que anotasse bem atentamente e escrevesse para todos que só na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo está a perfeita alegria (Cf. Atos 7; Fi 8).

Assim, com o reinado, com o mandamento do novo Amor, inaugura-se um novo relacionamento entre Jesus e os discípulos. A partir da Última Ceia e da Cruiz, eles se tornam comensais de seu amor, de sua eucaristia e consequentemente, do amor do Pai. Por isso, não serão mais servos, mas seus amigos, irmãos. Assim, Jesus estava dando por encerrado o ordenamento antigo entre Deus e o homem, que se assentava na observância da lei e a modo de senhor/escravo, soberano/servo. Agora é de Pai/Filho, irmão/irmão, amigo/amigo.

Comentando a graça deste novo ordenamento, Mestre Eckhart diz:

O Pai deu ao seu Filho unigênito tudo que ele pode oferecer – toda sua deidade, toda sua bem-aventurança –, não guardando nada para si (…). Em verdade, no igual nascimento, em que o Pai gera seu Filho unigênito e que lhe dá a raiz e toda a sua deidade, e toda a sua bem-aventurança, sem reter nada para si mesmo, nesse mesmo nascimento ele nos chama amigos.

Na última sessão deste Evangelho Jesus proclama a graça e o mistério do chamado: “Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi…”. O acento está aqui no “eu vos ecolhi”. Eu vos elegi significa: eu me encontrei, me enamorei, me apaixonei e por isso  vos selecionei, dentre todos os seres criados do mundo todo, para serem testemunhas do amor-caridade a todos os homens. Ora, se no mundo qualquer escolha nos deixa alegres, felizes e nos transforma a partir de dentro, de nossa raiz, o que não dizer quando estamos diante de uma escolha que vem do Senhor dos Senhores, do enviado do próprio  pai do Céu e da terra?!

Conclusão

Muitas poderiam ser as conclusões do mistério deste Domingo. Vamos apenas ater-nos a duas.

– “Pedro come e não chames de impuro o que Deus purificou” (Cf. At 10,13).

A história das religiões, também do critianismo, testemunha o quanto se faz presente a tentação da religião, da autosatisfação do “católico praticante”. Como, então, tornar-se cada vez mais religioso, católico (universal, aberto a todos e a tudo)? Eis a questão que  sempre devemos perseguir. O Papa Francisco, depois de alertar-nos acerca do perigo de “pretender reduzir o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura, que procura dominar tudo”, de “querer domesticar o mistério de Deus e de sua graça, bem como o mistério da vida dos outros” (Cf. GE 39-40),  de novo, nos aponta o caminho franciscano, expresso no famosa obra prima  de São Boaventura: “Itinerarium menstis in Deum”: “É necessário que se deixem todas as operações intelectivas e que o ápice mais sublime do amor seja transferido e transformado totalmente em Deus. (…) Dado que, para se obter isto, nada pode a natureza e pouco pode a ciência, é preciso dar pouca importância à indagação, muita à unção espiritual; pouca à língua e muita à alegria interior; pouca à palavra e aos livros e toda ao dom de Deus, isto é, ao Espírito Santo; pouca ou nenhuma à criatura e toda ao Criador: ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” (GE nota 37). Toda a mística do estudo, isto é, de todo o empenho intelectual, de todo cultivo da ciência, de toda a indagação, de toda a leitura, na escolástica franciscana, está voltada para se dispor a esta experiência amorosa, isto é, para o saborear do Mistério, na pobreza do não-saber. Estuda-se para amar mais e melhor e não para saber ou fazer (pastoral).

– “Permanecei no meu amor” (Jo 14,9).

A segunda conclusão procede do mandamento de Jesus: “Permanecei no meu amor”.

Numa época em que tudo se subjetiviza, se comercializa e se consome é grande a tentação a transformar o amor também em vivências que se consomem esteticamente. Mesmo a fonte do amor é pisada com os pés insensíveis do consumo das vivências. O cristão, porém, não é um consumidor do amor, mas um consumador, isto é, alguém que observa e leva a cumprimento, à con-sumação, a obra do amor, concreto, sóbrio.

Portanto, assim como o ministro da Palavra é servo da Palavra de Deus e não da palavra dele, o cristão é chamado e consagrado para fazer circular no mundo a regra de ouro, a forma de vida das Três pessoas divinas: a caridade mútua, fraterna.

Por isso, São Francisco quando nomeava os frades para os diversos cargos não estava, a modo de patrão ou chefe, apenas distribuindo trabalhos e funções, mas acima de tudo, convocando-os para o exercício do ministério da caridade fraterna. Aliás, era e foi este o sentido originário do termo “Frades”, Irmãos. Como os Apóstolos, na Última Ceia, também nós no dia de nossa consagração ou profissão (promessas) somos ordenados, instituídos, ungidos pelo Espírito e através da Igreja para o ministério do amor fraterno evangélico, de Jesus Cristo, assim como Ele havia sido consagrado, ungido pelo Espírito para o ministério do Amor do Pai. Por isso, quando São Francisco estava elaborando a Regra escreveu; “Quero que esta Fraternidade seja chamada – convocada – Ordem dos Irmãos Menores”

Enfim e por isso, suplicava ao Pai, para que fizesse circular ente eles a caridade que circulava na Ordem dos Apóstolos, que era a Caridade que circulava em Jesus Cristo e que finalmente era a mesma que circulava no Pai. Todos os que vivem no ethos (na morada) do amor-caridade ardente, tornam-se, assim, membros místicos da misteriosa “Ordem Seráfica” de que Francisco foi um grande representante[1].

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

 

[1] Nas ordens dos espíritos celestes, os serafins, são os espíritos ardentes do amor.