Francisco, com seu testemunho, despiu-se das mundanidades pontifícias e tem sido capaz de encarnar a reviravolta evangélica, onde o primeiro se faz o último, o senhor torna-se servo, o grande ocupa o lugar do pequeno.
Padre Jaldemir Vitório – Jesuíta
O Papa Francisco acaba de completar 10 anos, desde que foi eleito para assumir a liderança da Igreja Católica. Ao longo dessa década, tive o desprazer de vê-lo sendo atacado, impiedosamente, por católicos ditos conservadores, que transformam a defesa da “tradição” num cavalo de batalha, que os coloca na contramão do Papa, a quem se sentem no direito de ofender, sem escrúpulos.
Pelo que percebo nas opções e nas preocupações de Francisco, tudo está na mais perfeita sintonia com o Evangelho e ninguém será capaz de denunciar nele um só atropelo do que está nas catequeses evangélicas. Seu diferencial, na condição de Papa, consiste, deveras, em colocar em prática o que Jesus nos ensinou e nos ensina, na linha da preocupação com os mais fragilizados do nosso mundo, da busca do perdão e da reconciliação, do esforço de sermos “Igreja em saída” à procura da humanidade caída nas periferias sociais, como o homem semimorto da parábola do bom samaritano, da descoberta da sinodalidade como estilo de vida eclesial contrário ao clericalismo, da preocupação com a sustentabilidade da Casa Comum, como exigência da fé.
Francisco, com seu testemunho, despiu-se das mundanidades pontifícias e tem sido capaz de encarnar a reviravolta evangélica, onde o primeiro se faz o último, o senhor torna-se servo, o grande ocupa o lugar do pequeno. Seu raio de visão vai além da catolicidade para atingir o ser humano de toda língua, etnia, cultura, ideologia e religião. Num contexto marcado por tantas formas de divisão e de preconceito, o Papa denuncia a cultura da indiferença e desce do seu trono para se pôr no nível dos seus muitos interlocutores e, em alguns casos, em nível inferior, como no gesto impactante de se ajoelhar e beijar os pés do presidente do Sudão do Sul, suplicando-lhe o fim das violências e da guerra, naquele país africano. Coisa impensável para os papas semideuses, intocáveis em sua condição de “representantes de Cristo na terra”. O grande mérito de Francisco, no meu entender, consiste em mostrar ser possível transformar o Evangelho em “estilo de vida”, embora, exercendo uma missão que o coloca entre os mais altos líderes mundiais. Ele tem sabido, como ninguém, lançar-se todo no serviço do Reino de Deus, nos passos de Jesus de Nazaré!
O Evangelho de Mateus, objeto de minhas pesquisas acadêmicas, há várias décadas, oferece-me uma chave para intuir o motivo da rejeição de Francisco por uma larga faixa de pessoas que se dizem católicas, de leigos a cardeais. Trata-se dos personagens da narrativa evangélica chamados de “escribas e fariseus”, onipresentes no ministério de Jesus, sempre à espreita para flagrá-lo em alguma palavra, para poderem denunciá-lo às autoridades religiosas e tirá-lo de cena (Mt 19,3; 22,15). Vejamos algumas situações. Acusam-no de blasfêmia (Mt 9,1-8). Atribuem-lhe ter pacto com Belzebu, o chefe dos demônios (Mt 9,32-34; 12,22-28). Irritam-se ao vê-lo comer com os pecadores e gente mal afamada (Mt 9,10-13). Põem em dúvida sua autoridade, exigindo-lhe um “sinal” que lhe comprove a origem divina (Mt 12,38-42). Criticam-no como violador das tradições dos antepassados, pois não se importa com o preceito da pureza ritual (Mt 15,1-9). Onde quer que esteja fazendo o bem, lá estão eles sempre prontos para criticá-lo, por serem do contra e decididos a partir para uma guerra sem tréguas.
Os escribas e os fariseus estão ligados, de cheio, à morte de Jesus (Mt 16,21; 20,18). A certa altura do seu ministério, decidem eliminá-lo, ao vê-lo curar, em dia de sábado, um homem cuja mão era atrofiada (Mt 12,14). Entretanto, ele sabe estar lidando com pessoas perigosas e inescrupulosas, e as denuncia com terríveis invectivas (Mt 23,1-39). Com certeza, estavam conluiados com as autoridades religiosas que levaram Jesus a Pilatos, autoridade romana, a quem pediram a pena capital de crucificação para aquele que consideravam maldito de Deus (Mt 27,1-2).
Os escribas e fariseus, na catequese mateana, encarnam o tipo de pessoas religiosas, muito apegadas à Lei de Deus, a qual cumprem de maneira obsessiva, sem omitir qualquer detalhe. Antes, preocupam-se em encontrar novas exigências, de modo a demonstrarem uma fidelidade a Deus a toda prova. Jesus, porém, reconhece tratar-se de um bando de hipócritas e exibicionistas (Mt 6,1-18), menos preocupados de serem fiéis a Deus do que apegados a uma tradição a ser levada adiante a ferro e fogo. O resultado dessa religião intolerante é bem conhecido: tornaram-se culpados pela morte iníqua do justo Filho de Deus (Mt 27,54).
A caminhada do Papa Francisco tem muitos pontos de convergência com a de Jesus de Nazaré. Os escribas e fariseus de plantão, com suas múltiplas identidades e categorias eclesiásticas católicas, cuidam de dificultar o ministério papal. Defensores da tradição (a deles!), acusam Francisco de pôr em risco a Igreja, não se importando com a missa em latim, com as indumentárias papais, com o glamour pontifício, tampouco com o rigor da doutrina e da moral (a deles!). Consideram desvio de conduta do Papa a acolhida que oferece a todos, sem qualquer distinção e o fazer-se próximo de todos, recusando-se a apontar o dedo para os considerados pecadores por seus detratores. Tratam o Papa como se fora um anarquista, quando rompe com a “tradicional moral católica” (a deles!) e se pauta pelo princípio da misericórdia, no trato com temas espinhosos da moral. Pensam mal de um Papa capaz de gestos proféticos, às vezes, contradizendo o bom senso cristão, por considerá-lo perigosamente distante do pedestal em que, ao longo de séculos, os papas foram colocados.
Como, no passado, os escribas e os fariseus tudo fizeram para eliminar Jesus, no presente, indivíduos semelhantes estão interessados em apressar a sucessão de Francisco ou anseiam sua morte, na esperança de que se restaure o papado, fazendo-o voltar aos tempos áureos dos papas imperiais, como se via até o Concílio Vaticano II. Como o Pai dos Céus deu razão a Jesus de Nazaré, contradizendo seus inimigos, haverá de dar razão a Francisco, cujo empenho em fazer a Igreja Católica voltar aos trilhos do Evangelho se tornará divisor de águas de uma história milenar, em que nem sempre os papas deram ouvidos à voz do Mestre, a clamar: “convertam-se e creiam no Evangelho!”
Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE