2º Domingo da Quaresma 2021

2º Domingo da Quaresma

Leituras: Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18; Sl 115 (116); Rm 8,31b-34; Mc
9,2-10

Tema-mensagem: No mistério da Transfiguração, o Pai nos revela que
não há outra glória para seu Filho e seus seguidores senão seguir o caminho
de sua Paixão e Cruz

Introdução
Domingo passado, Jesus nos exortava: Convertei-vos e crede no Evangelho! Hoje, vem nos ensinar que crer Nele significa trilhar o caminho glorioso
de sua Cruz, revelado e testemunhado no famoso milagre da Transfiguração.

1. Abraão, movido pela fé, sobe o monte Moriá para o sacrifício do filho (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18)

O caminho de Jesus e seus seguidores, o glorioso e luminoso caminho da cruz, já havia sido prenunciado inúmeras vezes e de muitas formas no Antigo Testamento.

1.1. Abraão, o Pai dos crentes

A Liturgia da Palavra inicia, hoje, com o livro do Gênesis. Livro que nos introduz no mistério das origens, isto é, das gerações. Primeiramente, a origem do céu e da terra (o universo); depois, da geração do homem e das gerações provenientes de Adão e de Noé; por fim para coroar todas as gerações, a geração do Povo crente, proveniente da fé de Abraão. E é justamente dessa misteriosa e enigmática figura, que nos fala a primeira leitura de hoje.
Ela começou com este dramático pedido de Jahvé a seu servo Abraão: Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece -o aí em holocausto sobre um monte que eu te indicar (Gn 22,2).
Adão, Noé e Abraão são princípios da humanidade. São os grandes pais, nos quais o vigor e o frescor “principial” ou fontal da vida humana se manifesta de modo exemplar. Em Abraão esse vigor e frescor originário se manifesta como a esperança de uma humanidade vindoura, nova, que vive da fé de Deus
e que, por esta mesma fé, vê Deus. Toda a história de Abraão, de sua vocação em Ur Kasdim e Haran, até a prova do monte Moriá, narra como ele se tornou um vidente de Deus. Desse mesmo modo, todo aquele que crê vê o invisível e, assim, em meio às vicissitudes e peripécias da vida, com suas provações e tentações, permanece inabalável (Cf. Hb 11,27).
Bom vidente não é aquele que vê o visível, mas aquele que, movido pelo vigor da graça do encontro, vê o invisível, isto é, aquele que, sempre de novo, abandonando tudo, se dispõe a “sofrer Deus” (Dionísio Areopagita). Ou seja, como ensinou São Francisco, em sua primeira Admoestação: só se pode ver a Deus, o inacessível, se nos dispusermos a olhá-Lo não a partir de nós mesmos, carnalmente, mas a partir Dele mesmo, espiritualmente. Espiritualmente significa movidos pelo vigor da gratidão humilde, generosa, sem “por quê” nem “para quê”; vigor que nasce da gratuidade do encontro, isto é, do amor puro com o qual Ele nos amou por primeiro. Por isso, logo que o Senhor chamou:
“Abraão!”, sem pestanejar, ele se apresenta: “Aqui estou!”


1.2. Fé provada e comprovada


Toda fé, porém, precisa ser provada e comprovada. É o que segue na segunda parte da primeira leitura de hoje. Outrora, Abraão provara sua fé, obedecendo ao mandato de sair, de ir embora, de deixar para trás a terra conhecida, o passado. Agora, no fim, ele deve se desprender também do seu futuro.
Abraão leva seu filho amado, penhor da descendência numerosa que Deus lhe havia prometido, para o alto da montanha. Contemplamos, atônitos, Abraão tomando a lenha para o holocausto e colocando-a sobre os ombros de seu filho Isaac. Abraão carregava a pedra-de-fogo e o cutelo, “mas cadê o cordeiro para o holocausto?” pensa e pergunta o filho. Abraão responde: Deus saberá ver o cordeiro para o holocausto, meu filho (Gn 22,8).
No entanto, quando estava para consumar o sacrifício do filho amado, o Senhor o interrompeu. E, eis que, de repente, Abraão vê um carneiro que estava preso pelos chifres num denso espinheiro. E lemos: Ele foi apanhá-lo para oferecê-lo em holocausto, em lugar de seu filho. Abraão chamou aquele lugar ‘o Senhor vê’; por isso se diz hoje em dia: ‘É sobre a montanha que o Senhor foi visto’ (Gn 22,14).
É evidente que estamos aqui diante de um texto profundamente teológico e não humano. Por isso, o interesse maior e decisivo de toda essa história é mostrar que é a fé que determina cada um dos movimentos e das ações de Abraão.
Consequentemente, se alguém quisesse lê-lo com outros olhares, veria apenas um Deus terrível, monstruoso e, em Abraão, um pai cruel e assassino.
Consumada a fé, Abraão recebe de volta o filho que intencionava oferecer ao seu Senhor. Ali, no alto daquela montanha, Deus vê e é visto. Ali o olhar de Deus se cruza com o olhar de Abraão. O olhar de Deus é graça e misericórdia. O olhar de Abraão, fé e gratidão. Ali Abraão consumou sua existência de profeta, de vidente de Deus. A fé não é cega. A fé é visão, mas, uma visão enigmática que vê, para além das aparências, a verdade mais verdadeira e real das coisas, pessoas e acontecimentos. Ali, naquela montanha, tornaram-se um, não só o céu e a terra, mas também o humano e o divino. Ali o ver e o ser visto já não eram dois, mas um.
Estava consumada a história, a vocação e a fé de Abraão, que se tornarão a história, a vocação e fé de todos os crentes e, através desses, de toda a humanidade.


1.3. Pai de muitas gerações


O Senhor, então, a partir dessa fé, renova seu compromisso com Abraão e com sua descendência (no singular!). E, a partir dessa descendência, promete a bênção para todas as nações da terra, como escreve Paulo em sua Carta aos Romanos (Cf. Rm 4,17-18).
Para Paulo, a verdadeira descendência de Abraão, o verdadeiro Israel (cujo nome, segundo certa interpretação etimológica, significa “Aquele que vê Deus”), é constituída pelos que, como ele, caminham com Deus na fé, esperando contra toda esperança. Esses são os verdadeiros herdeiros de Abraão, sejam eles judeus ou gentios (goim). Para fazer parte dessa nova humanidade, a condição primeira é aprender, como Abraão, a crer e a esperar contra toda a esperança. No século XIX, o pensador da existência crente, Kierkegaard, escrevera contra a banalização da fé na cristandade, que arruinava, segundo ele, o vigor do ser cristão. No livro dedicado a Abraão, intitulado “Temor e Tremor”, ele escreve:


Em nosso tempo, ninguém para mais na fé, mas vai além.                                                            Perguntar aonde estes chegam, seria talvez uma estupidez, enquanto é sinal de cortesia e de educação admitir que todo o mundo tem fé, porque, de outro modo, não teria sentido o dizer que vão além.                                                                                                                               Nos tempos antigos, a situação era diferente: então a fé era uma tarefa para toda a vida, porque se estava convencido de que a prática do crer não se adquiriria em poucos dias e em poucas semanas.


1.4. Abraão, protótipo de Jesus Cristo


A mesma aprendizagem da fé e da espera, que se faz esperança contra toda esperança, precisa ser feita pelo discípulo de Jesus Cristo, “filho de Abraão”, aquele que, segundo diz o Evangelho de João, foi visto por Abraão e cuja visão lhe ofereceu grande alegria19. Todo discípulo, com efeito, há de aprender a condição fundamental para seguir Jesus (Cf. Lc 14,26-27).
D. Bonhoeffer lê assim a experiência religiosa, fiducial de Abraão, à luz dessa experiência crística:
Ele teve de abandonar amigos e casa paterna, Cristo se interpôs entre ele e os seus. Neste caso, a ruptura se fez visível. Abraão se fez estrangeiro por amor da terra prometida. Este foi seu primeiro chamado. Sucessivamente, Abraão é chamado por Deus a sacrificar o filho Isaac. Cristo se põe entre o pai da fé e o filho da promessa. Aqui não é só a imediatez natural, mas também a imediatez espiritual a ser infringida. Abraão deve aprender que a promessa não está ligada nem mesmo a Isaac, mas justamente, somente, a Deus.
[…] Abraão fica totalmente só. De novo é em tudo e por tudo um indivíduo, como quando saiu da casa. Abraão tinha abandonado tudo e se tinha posto no seguimento de Cristo e, agora, na plenitude do seguimento, pode retornar a viver no mundo em que vivia já antes. Exteriormente, tudo permanece como no passado. Mas, o passado passou, e tudo foi feito novo. Tudo precisou passar através de Cristo (D. BONHOEFFER, Sequela, p. 91).


2. No caminho da cruz, Jesus se transfigura (Mc 9,2-10)


O Evangelho de hoje está intimamente ligado ao Evangelho do Batismo de Jesus. E tanto naquele como neste, o centro e o móvel está na voz do Pai:
“Este é meu Filho amado. Escutai-o!”


2.1. A Transfiguração


Marcos, no Evangelho de hoje, em vez da conhecida expressão litúrgica“naquele tempo”, começa com: Seis dias depois… (Mc 9,1). Esse “seis dias depois”, se refere ao primeiro anúncio que Jesus fizera de sua paixão e de ter dito expressamente: “Se alguém quiser vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” etc. (Mc 8,34b-35). Os “seis dias” (Hexaemeron) apontam para a nova criação do novo homem (novo Adão), que se dará no mistério pascal de Jesus Cristo. O esplendor de Jesus Cristo, revelado no monte da Transfiguração, é a glória Dele e de todo homem que, Nele, participa dessa sua Paixão.
É então que Jesus toma consigo Pedro, Tiago e João… (Mc 9,2). Por que esses três? As razões podem ser várias. Primeiramente, porque eram os mais íntimos de Jesus. Pedro, o discípulo que muito amou a Jesus Cristo, e