PENTECOSTES

PENTECOSTES

20/05/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: At 2,1-11; Sl 103 (104); 1Cor 12,3b-7.12-13; Jo 20,19-23

Tema-Mensagem: Este é o dia em que o Espírito do Senhor foi derramado definitivamente e em plenitude sobre toda a humanidade e sobre todo o universo.

Sentimento: Júbilo-espanto 

Introdução

Muitas são as manifestações ou vindas do Espírito Santo ao longo da história, como, por exemplo, na criação, no dilúvio, na Encarnação sobre Nossa Senhora, no batismo sobre Jesus, etc. Em todas elas, manifesta-se sempre o milagre da vinda ou descida seja em forma de criação ou de recriação. Hoje, porém, dia de Pentecostes, celebramos a consumação de todas as suas manifestações ou vindas; dia em que o Espírito do Senhor foi derramado de modo definitivo e pleno sobre todo o orbe da terra e sobre toda a humanidade. 

Duas e bem diferenciadas são as narrativas do Novo Testamento que evocam este mistério. Uma é do evangelista João e a outra de Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos. Ambas são proclamadas na missa de hoje.

  1. O dom do Espírito Santo – a Boa Nova da Ressurreição

A narrativa de Lucas, vem tão recheada de imagens, detalhes e cores que dificilmente, deixamos de nos perguntar: será que foi assim mesmo? Um tanto perplexos nos perguntamos: o que realmente aconteceu, como e quando se deu este que é o mais admirável e o mais importante de todos os eventos e atos do Novo Testamento? Enfim, tudo nos parece um tanto exagerado, forçado.

Na verdade, para a primeira comunidade dos cristãos, e entre eles, o próprio autor dos Atos, estas questões eram-lhes irrelevantes. O evento do Espírito não é uma ocorrência factual, um acontecimento existencial-histórico. Antes da certeza dos fatos a evidência e a certeza de sua presença e de sua atuação são de cunho mais fundamental, pois tem a ver com a liberdade e não com as ocorrências factuais. De uma coisa, porém estavam absolutamente certos e seguros: não podiam ignorar e muito menos negar Sua presença como uma realidade que começou a marcar radical e definitivamente a vida daqueles homens e daquelas mulheres a ponto de transformá-los por dentro e por fora. Todo livro dos Atos dos Apóstolos tem como único protagonista o Espírito do Senhor.

 Trata-se de uma realidade misteriosa que não pode ser vista e explicada por argumentos e razões humanas, mas tão somente através de imagens, como estas do sopro, do ar, do vento, do fogo. Tudo isso está a indicar que o Espírito é realidade realíssima; que é força de vida; sim, que é sensível (!) ao coração humano. O Espírito é concreto. Não é abstrato. É de uma concretude fundamental: o concreto mais concreto de tudo, pois a partir dele concresce e dele vive tudo o que vem à concreção. Se Deus envia o Espírito, tudo é e vive. Se o Espírito se retira, tudo retorna ao nada (Cf. Sl 146,4). E, no entanto, esta realidade realíssima, a realidade de toda a realidade é misteriosa… Todos falam da presença e da atuação deste Espírito, mas poucos se arriscam em descrevê-las. Na verdade, mistérios, isso é, realidades que estão acima de nós são indescritíveis. Para falar de Deus, do seu espírito, precisaríamos ser Deus, ser espírito. Ora, este é o convite que sempre de novo recebemos: sermos espírito a partir do Espírito, sermos Filhos de Deus, isto é, sermos deificados: sermos divinos com Deus, em Deus.  Este é o verdadeiro sentido do conhecimento do Espírito: é preciso ser um com Ele para saber dele. É preciso que sua realidade nos molde e nos perpasse, que nós nos tornemos espírito no Espírito e a partir dele. Neste saber, mais do que compreender, somos compreendidos. Por isso, mais que querer compreendê-lo, importa aproximar-se Dele e deixar-se tocar e apreender por Ele. Ou, como exortava São Francisco: “Estar atento ao Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (RB 10,9) ou ainda como, mais recentemente, nos ensina outro franciscano, São João XXIII: “sermos dóceis aos sinais dos tempos”.

O Espírito é o Incompreensível que nos compreende. Mas o incompreensível não é incognoscível. Dele se sabe por um saber feito de experiência. Desse saber estava impregnada a comunidade dos Apóstolos no livro dos Atos. Entretanto, as alusões aos novos sinais da vigência do Espírito e a retomada dos antigos sinais do Espírito no Antigo Testamento servem-nos de moldura para contemplarmos esta misteriosa vigência sempre nova e a mais arcaica.

  1. O dia de Pentecostes

Assim, talvez, possamos compreender a maneira lacônica com a qual Lucas começa sua narrativa: “Quando chegou o dia de Pentecostes…”. “Pentecostes”, cujo nome significa o quinquagésimo dia após a Páscoa, era uma festa judaica (Shavuot) cujo objetivo era celebrar e agradecer os frutos recebidos da terra e de Deus. Por isso, era chamada também de a “Festa das Colheitas” ou “Dia das Primícias”, ou seja, dos primeiros frutos colhidos (Yom Habikurim). Era uma festa, portanto, intimamente ligada a Páscoa, isto é, à libertação da escravidão do Egito e da saída para uma terra fecunda e acolhedora. Assim, se na Páscoa se celebrava a alegria da libertação, em Pentescostes se celebrava os primeiros frutos colhidos da Terra Prometida.

Ao sentido histórico da festa de Pentecostes, veio agregar-se, por volta de 450 A.C., também, a festa da “Torah”, que tinha como objetivo celebrar a graça da redescoberta da Lei que selara a antiga aliança de Deus com seu povo predileto; uma lei prenhe de sabedoria e de espírito como se lê nesta passagem: “há nela um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, distinto, sem mancha, claro, inalterável, amante do bem, diligente, independente, benfazejo, amigo do homem, firme, seguro, tranquilo, que tudo pode, supervisiona tudo, e penetra os espíritos, os inteligentes, os puros, os mais sutis” (Sb 7, 22).

Por isso, não foi muito difícil para os primitivos cristãos-judeus ver a Vinda do Espírito Santo como um novo Pentecostes que veio selar uma nova Aliança não mais com uma lei escrita em pedras, mas com o derramamento do Espírito de Deus no coração dos homens. Assim, o Ensinamento (Torah) de Deus se tornaria íntimo no homem e o conhecimento de Deus – tão esperado pelos Profetas – se espalharia pela terra. Por isso, segundo Lucas, o mistério de todo este dom se realiza cinquenta dias depois da Ressurreição de Jesus: o novo Pentecostes

  • De repente veio do céu um barulho

Assim, logo após anunciar a Festa de Pentecostes, Lucas acrescenta: “os discípulos estavam reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um barulho, como se fosse uma ventania…”.

O objetivo é muito claro e simples: mostrar que os discípulos em vez de embriagados, como os acusavam os chefes judeus (Cf. At 2,15), eram movidos por uma força vinda de fora, do alto, de Deus, “do céu”. O Espírito, como um vinho divino, traria uma embriaguez sóbria e uma sobriedade ébria, isto é, o estar-fora-de-si tomado pelo fervor e pelo entusiasmo (plenitude do divino na alma) e ao mesmo tempo lúcido em si, ciente e consciente do real. Além do mais, este Espírito tinha endereço certo: os discípulos. Por isso, não era um vento generalizado, mas que tinha uma direção única e certa: o lugar, a casa onde eles estavam reunidos. Por outro lado, era preciso também, mostrar aos judeus das diversas regiões que estavam diante de um novo e grande poder vindo do céu. Por isso, não vem em forma de brisa, mas em forma de barulho semelhante a uma grande ventania. A impetuosidade da ventania mostra o vigor soberano do Espírito, sua potência que sopra onde quer e como quer.

2.2.  Línguas de fogo que se repartiam

São Lucas, como já dissemos, coloca a Vida do Espírito Santo dentro da Festa de Pentecostes com a nítida intenção de realçar que este dom não é apenas para um pequeno grupo de pessoas, os judeus, mas para todas as raças, povos e nações de todo orbe terrestre e de todos os tempos. Pois, naquela festa se reuniam em Jerusalém judeus vindos de todas as partes do mundo. O sinal escolhido para manifestar o poder maravilhoso deste dom foi o milagre da universalidade das línguas, assim descrito por Lucas: “então lhes apareceu algo como línguas de fogo, que se repartiam, e pousou sobre cada um deles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e se puseram a falar outras línguas” (At 2, 2-3). Assim, a partir de Jerusalém, o Evangelho de Jesus Cristo, a modo de um fogo alastrante, iria se difundir por toda a terra e ser pregado em todas as línguas, reunindo todos os povos na comunidade universal da caridade, que é a Igreja. A difusão da centelha divina levaria este Povo Novo a cantar os louvores de Deus por toda a face da terra transformando suas vidas num contínuo ofício divino. As línguas dos homens, em sua diversidade, iriam se reunir na Identidade e Unidade da Linguagem do Amor Jovial, num só canto de louvor.

A partir de então, como se poderá ver ao longo de todo o livro dos Atos dos Apóstolos, não só os judeus, mas também os gentios convertidos ao Evangelho do Cristo farão parte de uma nova humanidade, representada pela universalidade do novo Povo de Deus, a Igreja. Magistral é esta conclusão de Pedro em seu famoso discurso em Cesareia: “Na verdade, eu me dou conta de que Deus não faz acepção de pessoas e de que, em toda nação, quem quer que o tema e pratique a justiça é acolhido por ele” (At 10, 36). E, no meio do seu discurso, o Espírito Santo se manifestou naqueles que o escutavam. “Foi uma estupefação entre os crentes circuncisos que acompanhavam Pedro: o dom do Espírito Santo era agora derramado sobre as nações pagãs! De fato, ouviam essas pessoas falar em línguas e celebrar a grandeza de Deus” (At 10, 46).

A transformação do judaísmo para a universalidade do Cristianismo e da Igreja na mente de muitos judeus convertidos, porém, não foi fácil. Prova disto vemos no famoso conflito que se criou com os discípulos oriundos do farisaísmo (At 15, 5) que pretendiam impor a circuncisão também aos cristãos vindos do paganismo. Pedro, de novo, testemunha dessa catolicidade (universalidade) do Evangelho e da Igreja, assim se expressou: “Vós sabeis, irmãos, foi por uma escolha de Deus que, desde os primeiros dias e entre vós, as nações pagãs ouviram de minha boca a palavra do Evangelho e abraçaram a fé. Deus, que conhece os corações, lhes prestou testemunho quando lhes outorgou, como a nós, o Espírito Santo. Sem fazer a menor diferença entre elas e nós, foi pela fé que ele purificou os seus corações” (At 15, 7-9).

O milagre das línguas, no Pentecostes, traz consigo, pois, o poder maravilhoso do Espírito-Caridade, que reúne numa identidade comum todos os homens, com as suas diferenças, sem discriminações étnicas, culturais, etc. O amor produz comunhão (koinonía).

Mestre Eckhart ensina não só que o Espírito Santo é o Amor na Trindade, mas também que o Amor é, em sua fonte ontológica, o Espírito Santo:

“O amor é tão puro, tão despido, tão desprendido, em si mesmo, que os melhores mestres dizem que o amor, com o qual amamos, é o Espírito Santo. […] O amor, no mais puro e mais desprendido, o amor em si mesmo, nada mais é do que o próprio Deus” (Sermão 27).

  1. O espírito que é amor une e forma os cristãos no amor fraterno

Quem fala com muita precisão e clareza acerca desse poder do Espírito Santo é São Paulo na sua 2ª Carta aos Coríntios. Chega a dizer, na abertura do trecho lido hoje, que “Ninguém pode dizer Jesus é o Senhor a não ser no Espírito Santo”.

         A intenção de Paulo é esclarecer os coríntios e toda a Igreja a respeito dos dons do Espírito Santo e assim evitar que se apropriem dos carismas, se perdendo em alucinações subjetivas e personalistas. Por isso, insiste à semelhança de um refrão: “Há diversidades de carismas … diversidades de atividades … diversidades de ministérios…, mas um mesmo é o Senhor”. E conclui com esta chave de ouro: “A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1Cor 12,7). Aqui está, pois, o segredo para saber se, a exemplo de São Francisco, somos realmente carismáticos, isto é, se realmente temos a Cristo como Senhor e mestre dos “nossos” dons; se o coração de nossos atos é o de servos ou de usurpadores dos dons do Espírito: “o bem comum”, a unidade, a comunhão.

         Para Paulo, o bem maior é a Comunidade, porque ela é o Corpo de Cristo, sem o qual falimos, não podemos existir. Assim, seguindo a conhecida alegoria do corpo, os membros superiores de uma comunidade, a exemplo da cabeça e dos olhos no corpo, não podem desconsiderar os membros inferiores, a exemplo dos dedos e das mãos no corpo, pois também estes são igualmente importantes e necessários para o bem de todo o corpo, isto é de toda a comunidade. O corpo é um, mas os membros são muitos e diversos. Mas, em todos, na sua diversidade, atua o vigor de uma única animação, de uma única vida, um único e mesmo sopro, um único e mesmo espírito. Assim, esta nova humanidade é o Corpo Místico de Cristo, em que o Espírito Santo atua com o seu vigor, como o Espírito da Caridade, que é Deus: “Na verdade, todos nós – judeus e gregos, escravos e livres – fomos batizados num só Espírito, para constituirmos um só corpo. E a todos, nos foi dado beber um único espírito” (1Cor 7,13).

Esta experiência de vida comunitária da Igreja Apostólica é paradigmática para toda a história da Igreja e necessária hoje para o mundo, na medida em que a vida social se encontra dilacerada, funcionalizada, virtualizada e a vida em comunidade definha. O filósofo Rombach viu bem o significado de Pentecostes para o mundo atual e seu desafio na práxis da vida comunitária-social, quando escreve:

Em nenhum outro lugar o espírito da comunidade na tradição cristã se anuncia tão figurativamente como no evento do Pentecostes. Uma comunidade produz, sob um recíproco dar e receber, o pensamento animador e entusiasmador, cuja evidenciação se manifesta como o sentido fundamental desta comunidade. Ele produz esta comunidade, assim como esta comunidade o produz. Ele forma com ela uma unidade e é o que há de comum nela. O comum esplende em cada um como sua vontade mais própria. Isso a fé apreende na imagem das chamas de Pentecostes. Não há nenhum outro caminho para a comunidade do que este: que ela se torne “um único espírito”. A este espírito a comunidade chega apenas através daquele ato criativo, ao qual cada um contribui. Cada um contribui, à medida que cada um se dá a si mesmo e dá o seu modo próprio de ser. A comunidade não está contra o modo próprio de ser de cada um, mas se baseia nele. O espírito de uma comunidade é a imagem estrutural dos participantes. Cada um recebe de volta seu modo próprio de ser de maneira nova e mais aguda a partir do acontecimento do encontro. Tais gêneses da comunidade podem ser poderosas ou superioras, com irradiações para todo o mundo, ou podem permanecer nos mais pequenos círculos, sim, podem ser um acontecimento totalmente pessoal entre dois. A história está cheia de tais formações comunitárias, que são, ao mesmo tempo, nascimentos do espírito. Em toda a parte, é feita a experiência de que deste modo todo participante experimenta uma singular “purificação”, de que ele é libertado de suas fraquezas, de seus egoísmos e cegueiras, sem por isso perder o seu próprio. 

Infelizmente, esta visão comunitária dos ofícios na Igreja foi, muitas vezes, quebrada pelo “verticalismo” por parte de muitos dirigentes que se adonavam de modo subjetivista e personalista dos dons. Nosso papa Francisco nos dá um belo exemplo acerca do respeito e da valorização do sentido comunitário dos dons. Ainda lembramos que, antes de dar sua primeira bênção apostólica, inclinando a cabeça, pediu aos fiéis que rezassem por ele.

  1. O dom do Espírito Santo a primeia experiência dos Apóstolos e da Igreja

Entre as diversas aparições de Jesus, a que é proclamada hoje, tirada do evangelho de São João, é certamente a mais importante não apenas porque nos põe em contato com a primeira experiência que os Apóstolos fazem do ressuscitado, mas, também porque “Jesus soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22).

4.1. O primeiro da semana

São João gosta de chamar o dia da Ressurreição de “primeiro dia da semana” porque vê nele uma relação muito expressiva com o primeiro dia da semana da criação. Em outras palavras, se outrora, na primeira criação, o homem foi criado a partir do barro, da terra, de baixo, deste mundo, agora, na segunda, isto é, com o mistério pascal, o novo homem é nascido do alto, do espírito, do sopro expirado do peito de Jesus, na cruz. Se o primeiro homem era terrestre o novo é celeste, divino; se o primeiro se regia pelas leis da natureza este se regerá pelo espírito de Jesus crucificado-ressuscitado, a misericórdia do Pai.  No primeiro Adão – alma vivente – nós nascemos para a vida mortal e morremos a morte vital a cada dia, desde o útero até o túmulo. No segundo e último Adão, isto é, Cristo – espírito vivificante – nós morremos para o pecado enquanto doença mortal e para a morte enquanto separação de Deus, e nascemos para a vida de encontro eterno com Deus.

Fica claro, portanto, que os discípulos antes da Cruz ainda não haviam recebido o Espírito Santo em sua plenitude, porque Jesus ainda não havia sido glorificado ( Cf. Jo 7, 39). Isso quer dizer que o dom da plenitude do Espírito Santo nasce da glorificação de Jesus, do mistério pascal, isto é, quando, na cruz “ao consumar toda a sua obra, inclinando a cabeça, entregou o espírito”.

4.2. O dom da paz

Chama-nos a atenção a insistência de Jesus em conceder aos discípulos a paz e antes do dom do Espírito Santo. A explicação é simples e dada pelo próprio evangelista: “por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam estavam fechadas”.

Os discípulos, embora já tivessem recebido, por parte de Maria Madalena,  a notícia do sepulcro vazio, não só não conseguiam crer na ressurreição do mestre, mas continuavam perturbados, com medo, atribulados e envergonhados por causa de sua fuga ou traição por ocasião da prisão do Mestre. Consequentemente, ainda não haviam se reencontrado nem consigo e nem com Ele. Ora, Jesus sabe muito bem que sem isto, ou seja, sem o reencontro pessoal e com Ele – o crucificado-ressuscitado – não há como receberem do seu Espírito, muito menos de sua missão. Por isso, e para isso era necessário, primeiro, pôr ordem na casa, paz no coração, reconciliá-los com a cruz, libertá-los da vergonha e do medo de abraçar e seguir o caminho da cruz, palmilhado por Ele. Daí a insistência e a repetição: “A paz esteja convosco”. Não se trata, portanto da paz dos contratos humanos, cheios de desconfianças, nem da paz como serenidade psicológica ou ausência de conflitos e contrariedades, no sentido do pacifismo ou da pacificação oriundos do mundo, ou mesmo da egoísta fuga do mundo. A paz que Cristo veio trazer ao coração dos homens e da humanidade é processo, trabalho, luta a fim de permitir que se introduza no coração do homem a fé, a confiança Naquele pelo qual Jesus deu sua vida, o Pai; a paz que já havia sido anunciada na noite do Natal como dom do Céu “aos homens queridos de Deus”; uma paz, portanto, que nasce da mesma fé, da mesma confiança que Ele testemunhou até a morte e morte de cruz.

Jesus sabe que um coração perturbado seria como terreno pedregoso ou espinhento que sempre impedirá que o Espírito Santo seja recebido e acolhido. Por isso, quem toma a iniciativa é Jesus. É Ele quem abre a porta, põe-se no meio deles, mostra-lhes as mãos e o lado, isto é, os sinais de sua cruz e diz: “A paz esteja convosco”. Uma paz, portanto, que nasce da reconciliação e do reencontro com o Senhor crucificado-ressuscitado, o seu “novo” mestre, o mesmo de antes, mas agora transfigurado. Este reencontro, a reconciliação com o Senhor crucificado-ressuscitado, era indispensável, pois será justamente este o Evangelho, a Boa Nova, que eles deverão viver a partir de agora e anunciar aos quatro cantos do mundo até o fim dos tempos. Um reencontro, que apaga o pecado da desconfiança, da traição e da fuga da Cruz; mas, também, que não tem nada de autossatisfação, uma vez que os unge e os encoraja para o mesmo caminho e para a mesma missão que Ele recebera do Pai: “Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Ora, este “como” não é outro senão o caminho e a missão da Cruz.

Portanto, ao dom do Espírito Santo precede o dom da paz. Sem este não há como receber aquele. Por isso, a Igreja, mãe amável e mestra sábia, sempre, no início de cada celebração eucarística, bem como no momento da comunhão, antes de receber o Corpo do Senhor, insiste, renova e reatualiza para seus fiéis este gesto e esta saudação de Jesus com os Apóstolos: “A paz do Senhor esteja sempre convosco”. O dom da Paz se concretiza, logo em seguida, com o perdão dos pecados, com a reconciliação com Deus e com os irmãos. Só então, pode-se partir para o reencontro com o Senhor na Palavra e na Eucaristia. São Francisco, fazendo eco a este dom, tanto em seu Testamento como em sua Regra, exorta os frades para que sempre ao iniciarem uma pregação ou entrarem numa casa dissessem, primeiro: “O Senhor te dê a paz” (T 23).

4.3. Jesus soprou sobre eles

Continuando, o evangelista escreve: “E depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’”.

Estamos diante da primeira e mais significativa experiência crística da Igreja primeva: a presença criativa do Espírito.

A alegoria do vento leva o leitor e o ouvinte para o princípio da criação onde o Espírito de Deus pairava sobre as águas abismais (Cf. Gn 1, 2) a fim de fecundá-las, tornando-as assim, princípio da vida terrestre. Agora um novo sopro irá adejar sobre todos os povos de estirpes diferentes e congregá-los na unidade de um novo povo, de uma nova nação, sem fronteiras geográficas, nem de raça ou cultura. Realizou-se assim a profecia que viera à fala pela boca de Joel: “Derramarei o meu espírito sobre todo o ser vivo: vossos filhos e filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões; também sobre os meus servos e servas derramarei, naqueles dias, o meu espírito” (Joel 2, 8).

No crucifixo, que São Francisco contemplou na Igrejinha de São Damião, em Assis, o Cristo Crucificado aparece com o peito luminoso e pleno do Espírito Santo que o acompanhou e lhe deu alento desde a sua encarnação até a sua glorificação na morte de cruz; um Espírito pronto, sedento e desejoso de ser comunicado a todos os que fossem atraídos e viessem a Jesus, que, na cruz, foi elevado da terra na direção do céu, cumprindo, assim, o que ele disse: “Quanto a mim, quando eu for elevado da terra, atrairei a mim todos os homens” (Jo 12, 32).  

A experiência da presença cuidadora, amorosa e maternal do Espírito Santo na Ordem era tão clara e evidente para Francisco que chegara a afirmar que o verdadeiro Ministro Geral da Ordem é o Espírito Santo (Cf. 2C 193).

4.4. O perdão dos pecados 

Ao dom do Espírito Santo, segue o dom do perdão dos pecados: “A quem perdoardes os pecados…”.  Trata-se do fruto maior de toda a obra de Cristo, sua grande Boa Nova, repetida inúmeras vezes em todas as suas pregações, gestos e atitudes, culminando no supremo ato de misericórdia, a Cruz: o perdão, a reconciliação com o Pai e, através desta, a reconcliação com todos os homens e todas as criaturas. Estamos diante do supremo poder do amor-caridade: o perdão dos pecados, maior que curar enfermos e paralíticos, sim, maior até mesmo que ressuscitar mortos. No perdão, porém, atua o Espírito da Caridade, ou melhor, o Espírito que é a própria Caridade incriada, o Espírito Santo, o Dom do Amor, que vive na doação-recepção de Pai e Filho na Trindade Santa. Por isso, “quem realmente perdoa em todo e qualquer perdão é sempre Deus. Nos atos de perdoar reverbera e repercute a presença de Deus. Em Deus, perdoar não é ato, é ser” (E. Carneiro Leão). Ou, como se expressou nosso Papa: “o nome de Deus é misericórdia”.

Ao homem compete apenas abrir-se ou não à misericórdia. Os que se abrem são perdoados. Os que se fecham, permanecem nos seus pecados, pois Deus não pode arrombar a sagrada porta da liberdade nem se impor, muito menos vir às brutas. Suas vindas são sempre suaves como o pouso da pomba e suas batidas leves como a brisa da tarde. Deus, põe-se, assim, como um mendigo do amor, que solicita ao homem a graça de ser recebido por ele no amor.

Conclusão

A partir do Domingo da Ressurreição ou de Pentecostes, através do júbilo e do fogo do encontro com Jesus Cristo crucificado-ressuscitado, os discípulos, os homens e as criaturas não são mais os mesmos. Tomados pelo poder do Espírito Santo, que invadiu o universo inteiro, agora são mais que homens e mais que criaturas: tornaram-se ‘deuses”, seres espirituais, da estirpe de Deus (Cf. At. 17,29), filhos de Deus. Começa a surgir, assim, de fato e de maneira nova, a humanidade dentro das humanidades, uma nova criação dentro da criação, uma nova história dentro da história: o Reino de Deus, assentado não mais no poder da lei ou da carne, isto é, de contratos ou decisões humanas, mas na paz que brota da reconciliação e do perdão dos pecados que nos mereceu o Cordeiro imolado, Cristo crucificado-ressuscitado.

As maravilhas que então começaram a surgir a partir deste processo de transformação, gerado e incendiado pela presença contínua deste Espírito, podem ser contempladas ainda hoje nos famosos Atos dos Apóstolos.

Hoje, depois de alguns séculos, a Igreja, um tanto ou muito esquecida do fogo do Espírito Santo, como o protagonista de toda a sua vida e missão, volta a sentir a necessidade de evangelizadores com Espírito (Papa Francisco, em EG 259). E, como exemplo de tais evangelizadores, ele nos recomenda São Francisco e seus primitivos companheiros (Cf. LS). De fato, poucas vezes na história se pode ver tão bem o ressurgimento da Igreja primitiva, a Igreja dos Apóstolos, como em São Francisco e seus companheiros (Cf. Jacques de Vitry, em FF, pág. 1306). Como os primitivos cristãos também estes tiveram no Espírito Santo seu primeiro e principal protagonista. Por isso, como aqueles, também estes possuem os seus “Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus Companheiros”, seus “Fioretti”, isto é, seus feitos heroicos, seus prodígios e milagres.  Mas, tanto lá como cá, em tudo e com todos, era sempre o mesmo Espírito o autor de tantas maravilhas, a ponto de Francisco exortar seus Irmãos que, ao comungarem, estivessem muito atentos, pois, diz ele, “quem comunga, quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor não somos nós, mas o Espírito do Senhor que habita nos seus fiéis” (Ad I,12).

Enfim, evangelizadores com Espírito, diz o Papa Francisco, são “evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo” (EG 259).

 Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini