fonte: franciscanos.org.br
Fazia um tempo que não tocava meu violão sozinho. Aproveitei uma tarde bonita e inspiradora e dedilhei as cordas buscando uma inspiração. É a semana que vai novenando uma grande Festa. Num lampejo veio a mente a Oração a São Francisco em forma de Desabafo, de Pedro Casaldáliga e Cirineu Kuhn. A letra não estava toda na memória, mas a pasta de canções guarda tesouros escondidos nas gavetas do meu quarto. Achei e cantei com voz meio rouca e lágrimas afinadas. A letra e música emergiram no encaixe do hoje:
“Compadre Francisco, como vais de Glória? E a comadre Clara e a Irmandade toda?
Nós, aqui na Terra, vamos mal vivendo, que a cobiça é grande e o amor pequeno,
O Amor Divino é muito pouco amado e é flor de uma noite o amor humano.
Metade do mundo definha de fome e a outra metade de medo da morte. A sábia loucura do Santo Evangelho tem poucos alunos que levam a sério.
Senhora Pobreza, perfeita alegria, andam mais nos livros que nas nossas vidas.
Muitos tecnocratas e poucos poetas. Muitos doutrinários e menos profetas.
Armas e aparelhos. Trustes e escritórios planejam a história, manejam os povos.
A Mãe Natureza chora poluída no ar e nas águas, nos céus e nas minas.
Pássaros e flores morrem de amargura e os lobos do espanto ganharam as ruas.
Murchou o estandarte da antiga arrogância, são de ódio e lucro as novas cruzadas.
Sucedem-se as guerras e os tratados sonham sangue por petróleo e os impérios trocam.
O mundo é tão velho, que para ser novo, Compadre Francisco, só fazendo outro”
Ah! Compadre Francisco, não me deixe afastar do caminho do Amor e que se precisar cantar, que cada canção que você inspira vire caminho. Às vezes me sinto perdido, mas você tem o mapa para que possa sair das trilhas confusas. Nem sempre sou um bom filho e compadre seu, mas não deixo de caminhar ao seu lado. Você me ensinou a não dar só presença e serviço, mas dar amizade e humanidade junto com qualquer coisa que possa trazer consciência, como cantar, por exemplo.
Fiz um caminho de uns 28 km do trabalho até em casa. A tarde estava linda, mas vi e vivi algumas coisas estranhas. Parei com o carro na faixa de pedestre para que uma senhora passasse e gentilmente fiz um sinal indicativo com a mão para que ela fizesse a travessia. Ela veio na janela do carro, e embravecida pediu que abaixasse o vidro e vociferou: não precisa fazer gesto nenhum, eu estou na lei. Estava certa na norma, mas a voz tinha raiva do incômodo de ser tratada bem. Uns 100 metros à frente, uma moça queimada de sol distribuía panfletos no semáforo. Não sei se era propaganda imobiliária, política ou de algum restaurante. Mas o motorista que parou na minha frente gritou para ela: vai estudar, menina, para não ficar aí pegando um melanoma por 25 reais por dia!
Bem a meio do percurso fui atravancado no meu ritmo por dois outros veículos, caminhão e carro de passeio, com adesivos eleitorais colados nos vidros, e os condutores trocando ofensas, direção perigosa e quase chegando às vias de fato por causa de algumas caras e números sorrindo falsidades. Ah! Compadre Francisco, o que está acontecendo? Tanto ódio e maldade onde poderia ser e estar a sua sonhada via da cordialidade!
Nesta hora tive até medo de ser louco como você! Porque não é suficiente ser bom; parece que a estrada coloca cones para não deixar a boa energia passar. Vi os condomínios murando paisagens e ocultando o verde da beleza. Nem os muros dos mosteiros da Comadre Clara esconderam o que deve ser mostrado: que o desejo da vida é um quadro de preciosidades para serem partilhadas.
Quanta pressa, Compadre Francisco! Eu estava numa estradinha vicinal indo para casa e não numa pista de competição de arranque. Faróis piscavam luzes para ultrapassar nas faixas proibidas. Eu estava ali, no possível do acelerador e da velocidade permitida, somente para conduzir o meu compromisso de voltar para casa após um dia de trabalho.
Mas agradeço você, meu Compadre e meu Pai, porque você naquele momento se fez o motor da minha mobilidade. Eu tinha os olhos voltados para a belezas que me ensinou a ver, ou melhor ainda, a contemplar. Sem este olhar fica faltando muita coisa na vida. A Comadre Clara, sabia muito disso! Melhor ter uma comunhão de vida e destino com os detalhes das vias. Tinha um final de queimada sendo apagada por um solitário cuidador de gramas, árvores e galhos secos, socorrendo uma capivara chamuscada.
No acostamento, uma família carregava o que pode comprar em sacolas de algum mercado qualquer para garantir a janta, virando o pó nos chinelos compassados, para não deixar filhos, certamente com apetite voraz, que vem da fome dos que pouco têm para comer. Não falta coragem às almas simples que, com paciência, esperavam à beira da estrada uma condução que demora chegar. Vi o ônibus escolar parando e as crianças saindo naquela nobreza que ainda habita nos pequenos, com mochila nas costas e buscando as mãos seguras de quem as aguardava.
Tinha um sol preparando o seu acaso atrás do horizonte do Bairro Moenda onde moro. Era uma luz fazendo-se cores para ser uma energia criadora que se comunica. No caminho você, Compadre Francisco me ensinou a descobrir a alma das coisas e escreveu um Cântico para isto acontecer. Quando amamos, todo caminho é sagrado e o amor vai encarnar-se no mundo. Ah! Mas eu estava cantando a Oração do Desabafo, mas você, Francisco me sopra nos ouvidos que seu eu der passos em direção à vida, a humanidade vai ser amada. A canção de Pedro e Cirineu não é pessimismo, mas profetismo. Versos que geram consciência recolocam a vida nas mãos, e isso é privilégio. O que vai no coração e nas mãos é o que faz a diferença.
Cheguei em casa e o portão foi aberto com prontidão e sorriso de quem estava ali de plantão. Bom é saber que você não é um patrão, mas uma saudação, uma palavrinha, uma atenção, um irmão. E logo vieram também Nina, Ceará, Mel, Pequi, Akira, nossos cães que sempre se juntam para nos acolher numa alegria feito abraço. Eles são carinho e abandono. Rabos abanando e acenando certezas de felicidade, lambidas de amor puro. No jeito simples dos nossos animais tem Deus vindo ao encontro da gente como numa oração sálmica na hora das Vésperas.
Compadre Francisco, você ajudou a reconstruir a casa para onde tenho que sempre retornar para refazer as forças. Aos poucos foram chegando os confrades de suas lidas diárias. Tem uma Fraternidade ali de uma inspiração respirada junto. Esta coisa de estarmos juntos no mesmo projeto também você nos mostrou. Colocar tudo à disposição. Ajeitar o balcão e a mesa para a janta. Ver notícias e curiosidades televisivas. Conversas e até um Instagram de soslaio, afinal ninguém é perfeito. Tem uma mesa redonda no quiosque para mostrar qual era seu sonho: fazer tudo uma távola de aproximação sem ser superior a ninguém. Você queria que fôssemos menores para aprender a grandeza das pessoas e de tudo. Comemos e bebemos a doação do nosso eu que se derrete em temperos. Mas também vemos o noticiário mostrando competição, estado, pesquisas, leis, guerra e violência. Nesta hora estamos sós e sentimos falta dos nossos colaboradores e colaboradoras, Júnior, Janete e Marianis que ecologizaram a nossa casa durante o dia. Ouvimos as mentiras dos candidatos e verdades na voz de Milton Nascimento.
Depois, Compadre Francisco, chega a hora de ir dormir. Amanhã vai ser outro dia de ‘Siga e Pare’ na estrada que vira tapete em época de eleição, até os buracos voltarem quando as promessas dos votos forem para o esquecimento. Mas antes do sono ainda penso: que dia! Olho para a sua imagem sobre a minha cômoda e pergunto: O que falta no ser humano? Parece que diminuiu o sentimento no modo de andar na vida, como que tivesse sofrido uma lobotomia; como que tivesse uma mutação genética e tornasse incapaz de sentir a vida e as pessoas. O ser humano tem jeito? Tem! O pior ele já fez: matou um Deus encarnado e continua matando religião e espiritualidade, fazendo um caminho culposo e demonioso que não vai levar a lugar nenhum! Prefiro o caminho seu e de Seu Mestre, uma estrada mais leve e bonita, cheia de graça e glória.
Compadre e Pai, Francisco, a humanidade tem jeito? Você diz que tem! Tem jeito quando antes de descansar você pede que é um doce dever lembrar a pessoa Amada e saber que também se é bem lembrado no coração. Que tem oração, saudade, abraço e beijo mesmo que seja zapeado. Que ainda existe a perfeita alegria!
Mas então, Compadre Francisco, o que é a perfeita alegria? E você revela em meu sono preparando sonhos, que a perfeita alegria está na paciência de esperar o amanhã e amar como se não houvesse o amanhã , e voltar para o surpreendente da estrada. A perfeita alegria você me diz que é fazer valer caminhos de solidariedade em vez de lugares de destruição. Pede para que eu comece a mudar o olhar e ajudar a mudar o olhar da humanidade. Convoca a considerar e criar um modo diferente de observar a realidade e fazer disso uma prática.
Mas, então, Pai Francisco, o que é a perfeita alegria? E você sussurra em meu quase dormir e me acorda para dizer que o futuro da vida é cuidar do humano, cuidar do que herdamos: a justa medida das coisas. Quem sabe amanhã nas lombadas e placas eu possa ver valores éticos. Não há razão para eliminar a vida deste jeito, nem domesticar instintos de agressividade. Amanhã a vida vai amanhecer do jeito que o Criador quer. Você sabe este segredo!
Não há razão para que o ódio mate outro ser; e você me ensina que é o Sagrado que impõe limites à violência humana. E pede que eu ore para ser um Instrumento de Amor onde há a ira. Amanhã vou para a Universidade pedagogizar sentimentos: Educar para a Paz os construtores do Bem. Basta estar ali!
Ah! Estou cantando bem às vésperas de sua Festa! Porém, a maior Festa que você ensinou é respeitar e proteger todo ser vivente , e que o futuro da humanidade e do mundo passa pelo cuidado. Que a questão central não é uma religião cheia de apetrechos, mas uma Fé que salva vidas. Seu Mestre e meu Mestre veio para isto. A sua Festa lembra que quanto mais relação eu tenho mais posso ajudar, mais posso priorizar sentimento, afeto, capacidade de sentir.
A sua voz hoje clama no Papa Francisco que nos convoca a fazer um Pacto Social de Economia e Pacto Educativo Global. Uma fusão de mística, realidade e solução. Isto é o mínimo e o máximo para uma boa convivência. Unir para garantir, unir para salvar. Ou mudamos ou morremos. Não existem coisas, objetos apenas… Existe uma Rede de Relações. Tem que existir uma incursão nas diferenças. Não perder este ponto de partida, dizia a Comadre Clara!
A matéria sempre lembra algo maior: é o Espírito do Senhor que faz tudo ser um organismo vivente. É o caráter sacramental! Aprendi isto no nosso compadrio. O universo não consegue conter tanto Amor que vem de nosso Deus. A vida está sendo patenteada, privatizada, pedagiada, mas ela é de todos na gratuidade e na retribuição de graça sobre graça.
Tudo isto começou com uma canção, mas você foi Trovador em tantas festas em Assis e então deixa-me cantar este seu espírito de serviço atento a vida e não ao lucro, essencialmente voltado para a pessoa e não para o uso utilitário de mercado. Vou dormir acalentado por sua canção verdadeira: ser pobre para aprender a dividir recursos para todos. Ser obediente para ter vontade e projetos. Ser puro de coração para fazer valer a epifania do Amor Universal! Boas Festas, Compadre Francisco! A Comadre Clara já enfeitou a Casa Comum com sua Beleza, e a Irmandade vai chegar para a cantoria! Vamos fazer outro mundo? Paz e Bem!
Frei Vitorio Mazzuco Filho, OFM, é mestre em espiritualidade franciscana e coordenador de Pastoral da Universidade São Francisco (USF).