2021 MAIS DOIS JUBILEUS FRANCISCANOS !

2021

MAIS DOIS JUBILEUS FRANCISCANOS

– REGRA NÃO BULADA

(Regra da Ordem Primeira)

– PRIMEIRA CARTA AOS FIÉIS

 (Regra da OFS e da TOR)

Introdução

São Francisco de Assis é de uma fecundidade espiritual, evangélica, crística ímpar. Por isso sua vida vem recheada de feitos, atos (fioretti) admiráveis que encantam todos os homens, séculos afora. Assim, a cada pouco, temos o aniversário, a celebração de algum de seus feitos. No ano passado, por exemplo, celebramos o jubileu dos 800 anos de sua visita ao Sultão, na época, o líder máximo dos muçulmanos.

Neste ano, 2021, temos a graça de celebrar o Jubileu dos 800 anos de duas de suas Regras, apontadas acima no título.

  1. Regra Não Bulada

O primeiro jubileu franciscano deste ano é o dos 800 anos da Regra Não Bulada (RNB). O ano de 1221 sinaliza o encerramento de um dos períodos mais fecundos da busca do sentido Vida franciscana, de sua vocação-missão por parte daquela primeira geração de frades. A Ordem já marcava presença, praticamente, em todas as regiões conhecidas da Europa daquele tempo; um ano antes, em Marrocos, havia dado a Deus e à Igreja seus primeiros cinco Mártires.

Mas, um dos sinais mais expressivos do vigor dessa busca foi a conclusão da tecitura da, posteriormente, chamada Regra Não Bulada.

Em 1209, três anos após ter o coração profundamente tocado e transformado pelo encontro com o Crucificado e sua Paixão, em São Damião, e um ano depois do encontro com o Evangelho do Envio dos Apóstolos, Francisco, com seus doze primeiros companheiros, vai a Roma e recebe do Papa Inocêncio III a aprovação da “Vida e Regra” de seu grupo. Mas, essa Forma de Vida era muito enxuta: só algumas frases do Evangelho do Envio dos Apóstolos. Para Francisco, e aquele pequeno grupo de Doze, bastava aquele resumo. Tanto é que ele voltara de Roma sem nada por escrito. Estava tudo bem impresso em seu coração e gravado em sua memória. Nunca, até então, passara pela cabeça dele que a “coisa” se desencadeasse da forma como aconteceu.

Duas são, então, as causas que levam São Francisco e aqueles Frades ao processo de redigir aquela que passará para a História como “Regra Não Bulada”.

Primeiramente, como pessoas profundamente tocadas pelo mistério da Paixão de Cristo crucificado, logo sentiram que essa Pessoa que os chamara para segui-la, precisava ser sempre mais e melhor conhecida, amada a fim de sempre mais e melhor poder servi-la, anunciá-la, testemunhá-la. É da natureza do amor verdadeiro e puro, como no casamento, por exemplo, que as pessoas sintam a necessidade de se conhecer sempre mais e melhor. Não um conhecimento informativo, funcional, psico-anímico, consumista, mas existencial, vital, de profunda doação-comunhão, que vai até à raiz da pessoa! E isso pelo desejo apaixonado de poder servir cada vez mais e melhor à pessoa amada.  Se, por acaso, isso não acontecer, o casamento não vai longe. Ou, se acontecer apenas em parte, também o casamento será apenas em parte. Por isso, aquela Forma de Vida evangélica, isto é, a Pessoa de Jesus Cristo Crucificado, sua Paixão e o Evangelho do Envio dos Apóstolos, precisavam ganhar corpo na mente, no espírito, no coração, no corpo deles, bem como na instituição que ia nascendo. E isso todos os dias, em tudo. Assim, se pudéssemos fazer um raio X de cada capítulo, veríamos pulsando, na raiz de sua redação, a Pessoa de Jesus Cristo pobre e crucificado. Eis a primeira fonte que dá origem à nossa RNB.

 Além do mais, era preciso que essa Forma de Vida dos Apóstolos se encarnasse nas diversas dimensões e necessidades da vida apostólico-missionária da novel Ordem. Ou seja, era necessário que essa Forma de Vida se encarnasse no mundo, no século e o mundo, o século, por sua vez, fosse acolhido pelo vigor evangélico dessa Forma de Vida.

Foi, portanto, para atender essas duas necessidades que, a partir daquela data, 1209, todos os anos, por ocasião do Tempo de Pentecostes, Francisco se reunia, em Capítulo, com todos os seus Frades no Convento da Porciúncula. No Tempo de Pentecostes porque, desde o começo do processo de sua conversão, Francisco sempre teve uma experiência muito forte e concreta de sua presença e atuação. Por isso, dizia ser Ele, o Espírito Santo, o Ministro geral da Ordem (2C 193)  

Assim, os 24 capítulos que formam essa Regra não nasceram de uma penada e muito menos de uma única pessoa ou comissão. Ela nasceu da Paixão de Cristo, que crepitava no coração daqueles homens simples; uma Paixão levada à práxis, à vida e da vida, da práxis levada à Paixão de Cristo e seu Evangelho por todos aqueles frades. Temos, assim, uma tecitura sofrida e jubilosa, plena “de Espírito e Vida”. Uma Regra que é Vida e uma Vida que é Regra. Uma unidade perfeita e não um binômio, como nós costumamos pensar. Testemunho disso são os inúmeros “Fragmentos de outra Regra Não Bulada” (Cf. Fontes Franciscanas). Por isso, mais que de Francisco e dos frades ela é fruto do Espírito do Senhor e seu santo modo de operar (RB 10,9). Por isso, também, nela não aparece o autor. Esse está escondido e atuando em todos os Irmãos, tanto nos sábios e instruídos como nos idiotas e simples (2C192).

Se quisermos realmente dar-lhe uma autoria, devemos dizer que é o Espírito Santo, com a cooperação de todos os Irmãos, de toda a Fraternidade. E Francisco? Francisco é aquele que, mais que todos, sabia ver e incentivar todo esse processo de busca e escrituração do espírito através dos fatos vividos, vistos e lidos à luz da Paixão de Cristo e do Evangelho e a Paixão de Cristo, o Evangelho lidos à luz dos fatos. Por isso, no dizer de nossos Ministros Gerais ela é, antes de tudo, um “pedaço de vida”, mais do que um “pedaço de papel”. A palavra escrita busca, assim, dar resposta a perguntas nascidas da escuta continuativa da realidade concreta (Carta Viver e Seguir, dos Ministros Gerais, de 04/10/2020).

Por isso, a Regra Não Bulada, juntamente com o Testamento, sempre foi considerada como o texto que mais fielmente nos guarda e nos põe em comunhão com o ardor do querigma franciscano, o espírito carismático originário que moveu, transformou São Francisco e toda aquela primeira geração de Frades. O que mais se lê, se vê e se sente na leitura de seus 24 capítulos é a paixão daqueles homens pela Pessoa de Jesus Cristo, o mais belo dos homens, o homem que todos os homens gostariam de ser, o homem que todos gostariam de ter como irmão, amigo, companheiro ou esposo.

Por isso, o que mais transparece em todo esse texto é a alegria, o júbilo, a gratidão, o louvor por, a exemplo dos Apóstolos, terem sido escolhidos para tão nobre e ingente missão de levar Essa Pessoa e seu Evangelho – a Cruz – aos quatro cantos da Terra. Por isso, eles se definiam como os homens chamados da Cruz para a Cruz ou do Crucificado para o Crucificado (Atos, 4). Eis o que mais se lê e mais se sente soar no fundo das palavras, das linhas, das frases, e dos capítulos dessa Regra. Mais que um texto de espiritualidade ou doutrina é um texto do puro Espírito franciscano. Um texto cujo vigor do Espírito (“Vida”) os regia (“Regra”), os levantava e, fervorosos e apaixonados, os fazia pôr-se na busca dessa Pessoa amada, pulsante em todas as pessoas, acontecimentos e, principalmente, na Eucaristia. Era assim que, a exemplo dos Apóstolos, livres e alegres como as aves do céu, aqueles homens de Deus percorriam cidades e aldeias a fim de anunciar a todos a paz e a penitência evangélica (1C 29). Enfim, um texto para “viver a Vida de Jesus Cristo” observando seu Evangelho! (RNB Pró e 1).

A tradição deu a essa Regra o título de “Não Bulada” pelo fato de nunca ter sido apresentada a Roma e, por isso, jamais ter recebido o selo, a bula de sua aprovação. Diante desse fato, assim se expressam nossos Ministros Gerais: Talvez, valha a pena aproveitar da falta dessa bula para lembra-la não apenas pelo dado formal e jurídico, mas também para valorizar seu alcance existencial. Queremos, assim, dar graças ao Senhor pelo dom de um testemunho mais do que um texto – que permanece sem limites, ainda aberto e “generativo”. No papel, na Profissão, a RNB não pode ser professada, mas pode ser seguida no dia a dia de quem acolhe, por “inspiração divina”, o seguimento de Cristo, na genialidade de Francisco, pois “as palavras que vos disse são espírito e Vida” (RNB 22,39) (Carta dos Ministros Gerais, 04/10/2020).

 

  1. Primeira Carta aos Fiéis

A Primeira Carta aos Fiéis é conhecida, também, como Forma de Vida ou Regra para os Irmãos e Irmãs da Penitência. Trata-se de um texto que Francisco escreveu em 1221 como resposta a muitos seculares leigos que queriam segui-lo, vivendo a mesma vida dele e de seus Irmãos, mas no mundo e com o mundo, principalmente com suas famílias.

Hoje, depois de alguns séculos de esquecimento, a nova redação da Regra da OFS, aprovada pelo Bem-aventurado Papa Paulo VI, em 1978, reintroduziu, como seu Prólogo, princípio e coração, todo o texto dessa Carta. Dividida em duas partes (Dos que fazem penitência e Dos que não fazem penitência), essa Forma de Vida resgata de maneira inédita o sentido original da Penitência evangélica: Amar o Senhor de todo coração, de toda alma e de toda a mente, com todas as suas forças e amar o próximo como a si mesmo e odiar o próprio corpo com seus vícios e pecados e receber o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo (1CF 1). Quem de nós, ou qual o teólogo, hoje, imaginaria ser essa a penitência do seguidor de Cristo, a penitência evangélica!?

Também a nova Regra dos Irmãos e Irmãs da Terceira Ordem Regular de São Francisco, aprovada pelo Papa São João Paulo II, em 1982, faz o mesmo: retoma, como seu prólogo ou princípio, pelo menos, a primeira parte da Carta aos Fiéis: “Dos que fazem Penitência”.

 

Conclusão

A celebração desses dois Jubileus nos traz para mais perto ainda a graça de poder mergulhar no coração da experiência originária franciscana que nos transforma, põe de pé e nos faz caminhar no vigor da Paixão de Cristo. E isso não apenas para nós, que professamos essa Forma de Vida, mas, também, para milhares e milhares de pessoas sedentas de um novo humano e de uma nova humanidade: o humano, a humanidade de Jesus Cristo, pobre e crucificado, o mais belo dos filhos do homem, a “Alegria dos homens”  (Bach). Desde que Cristo veio ao mundo e morreu na Cruz dando sua vida por nós, o brilho e o calor dessa sua Paixão, aparecem em todas as coisas, pessoas e acontecimentos do nosso cotidiano; mas de modo especial aparecem em momentos de grande aflição como o nosso, tomado pela pandemia do coronavírus, Covid-19. Fazemos nossas as palavras do Papa Francisco:

Vejo um transbordamento de misericórdia derramando-se ao nosso redor. Os corações foram postos à prova. A crise suscitou em alguns uma coragem e uma compaixão novas. Alguns foram sacudidos e responderam com o desejo de reimaginar nosso mundo; outros procuraram socorrer, com gestos bem concretos, as carências de tantos, capazes de transformar a dor do próximo (Papa Francisco: Vamos Sonhar Juntos, pág. 13).

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Para conhecer mais de perto essas duas obras primas de São Francisco temos:

Escrito em 2005, o livro, de 250 páginas, através da leitura de cada capítulo da “Regra Não Bulada”, leva o leitor a entrar no mistério originário franciscano que pulsa em cada palavra ou frase dos seus 24 capítulos.

 Em estoque apenas 9 exemplares.

Elaborado pela Equipe de Formadores da OFS do RS, sob a nossa orientação e publicado em 2019, o livro de 254 páginas, põe o leitor em contato direto com a Carta aos Fiéis, coração da Forma de Vida de São Francisco dada aos Irmãos e Irmãs seculares. Nele, também, se encontra um capítulo destinado a recuperar o sentido da Penitência evangélica entendida como a Alegria de ter sido escolhido por Jesus Cristo, para segui-lo e testemunhá-lo.

Escrito em 2011, esse livro, além de também ele abordar substancialmente a Carta aos Fiéis, dedica uma boa parte das suas 262 páginas aos diversos artigos da nova Regra dos Irmãos e Irmãs da Terceira Ordem Regular de São Francisco de Assis. No final, num Apêndice, apresenta a relação das quase 300 Congregações Franciscanas, desde a primeira, “Franciscanas de Dilingen”, até hoje. O número revela, mais uma vez, a fecundidade e a atualidade histórica do Carisma do nosso santo Pai, de sua Vida e de sua Regra.

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Por tudo isso, é com toda a razão que o Santo dizia que a Regra é o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do Evangelho, o caminho da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da aliança eterna (2C 208).

Fraternalmente,

Frei Dorvalino Fassini, ofm.