Batismo do Senhor – 2021

Batismo do Senhor

Leituras: Is 55,1-11; Sl 28; 1Jo 5,1-9; Mc 1,7-11

Tema-mensagem: No Batismo do Senhor cada um e todos os homens e toda a criação, somos batizados no Espírito do Senhor, tornando-nos todos, como Ele, filhos muito amados do seu Pai.

Introdução

O Batismo de Jesus é a festa que encerra o Tempo do Natal-Epifania e, ao mesmo tempo, a festa que dá o princípio, faz o aviamento do Tempo Comum, em que seguimos Jesus em sua missão no meio do povo.

  1. Um convite ao banquete escatológico-messiânico (Is 55,1-11)


O profeta, por ser um homem de Deus, vivendo em profunda comunhão e intimidade com Ele e com seu desígnio, vê tudo como Ele vê e sente; vê, até à raiz, o sentido dos acontecimentos e das pessoas, um sentido que está para além do tempo e do espaço.

Isaías, do qual se proclama a primeira leitura de hoje, estava no meio de uma multidão de israelitas, repatriados; gente que, sem um vintém no bolso, suspirava pelo dia em que de novo teria uma mesa farta, cisternas cheias de água. É então que ele – o profeta – é convidado a emprestar sua voz à terna e promissora palavra do Senhor: Ouvi-me com atenção e alimentai-vos bem, para deleite e revigoramento do vosso corpo. Inclinai vosso ouvido e vinde a mim, ouvi e tereis vida: farei convosco um pacto eterno, manterei fielmente as graças concedidas a Davi (Is 55,2).

Isaías, porém, em profunda sintonia com tudo o que estava acontecendo, vê não apenas os judeus e os pagãos, mas todos os famintos e sedentos de todos os tempos sendo convidados para o grande banquete escatológico. Por isso, na Bíblia, o banquete nupcial é sempre a imagem preferida para expressar a profunda degustação do amor de Deus, de sua presença e convívio, que se dará no fim ou na consumação de todos os tempos.

A única exigência é a aceitação livre. Daí a insistência amorosa de Deus: ‘Vinde’, ‘Apressai-vos’, ‘Vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite sem nenhuma paga’, ‘ouvi-me’, ‘inclinai vosso ouvido, vinde a mim, vinde e tereis vida!’ Aí – nessa palavra do Senhor que se faz compaixão, misericórdia, aliança e, enfim, que se fará, posteriormente, homem – é que está ou é a fonte da vida, a “vida eterna”, “vida em Deus”. Pois, Nele está a vida e a vida era a luz dos homens (Jo 1,4).

A liberdade física ou política e social dos exilados era um ótimo indício para pensar na busca da libertação de todas as escravidões, resumidas na escravidão do pecado, isto é, na escravidão do egocentrismo que leva ao esquecimento, afastamento e abandono do banquete de amor-doação que é Deus.

Era, portanto, preciso ouvir o que o Senhor lhes dizia. Pois, só assim, sua palavra, à semelhança da chuva, que só retorna ao céu depois de ter fecundado a terra, não retornará a Ele sem antes ter produzido o efeito de sua bondade e amor. Sua palavra significa seu plano de congregar e reunir todos os homens e criaturas ao redor de seu amor, mais tarde, expresso de modo admirável no banquete eucarístico.

2. Tu és meu Filho muito amado, em ti ponho todo meu bem-querer! (Mc 1,7-11)

O Evangelho de Marcos, referente ao Batismo de Jesus, divide-se em duas partes. Primeiramente, vem o anúncio e a descrição que o Batista faz de Jesus, e, depois seu Batismo.

2.1. João Batista, o anunciador de Jesus

Marcos começa com a figura enigmática de João Batista. Enigmática tanto pelo nascimento como pelo nome e pela sua vocação e missão. Pelo nascimento porque foi concebido através de uma promessa de Deus a um casal de idosos e incapazes de gerar um filho; pelo nome porque, fugindo à tradição judaica, em vez de ser registrado com o nome de seus antepassados, foi-lhe imposto por parte de Deus o nome de João que significa o amado, o querido de Deus; pela vocação e missão porque, em vez de, como membro da dinastia sacerdotal, servir ao templo a exemplo de seu pai Zacarias, sentiu-se chamado a romper com o templo e sua religião para retirar-se para o deserto a fim de convocar todos à conversão porque o reino de Deus está próximo (Mt 3,2).

O grande objetivo de Marcos é responder à pergunta “Quem é Jesus?” Por isso, o trecho de hoje começa proclamando: “Depois de mim virá alguém que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias” (Mc 1,7). Logo, os ouvintes não devem ficar olhando para ele, mas preparar-se para olhar, ver, ouvir e seguir aquele que virá depois dele. Por isso, também, não é mais tempo de esperar, mas de agir. Como? Através do Batismo com a água, um Batismo que se apresenta como um rito de iniciação ou inauguração da comunidade messiânica.

O Batismo de conversão, proposto pelo Batista, porém, é algo inédito, à margem, fora da lei e das tradições judaicas, longe do Templo e da Religião. Ser submergido nas águas vivas do rio Jordão, bem lá onde outrora seus ancestrais haviam concluído o êxodo, deixando para trás a terra da escravidão e entrado na graça da terra da libertação como povo de Deus, significava dispor-se para acolher o dom de uma nova libertação e da inauguração de um novo povo de Deus. Trata-se, portanto, de uma conversão radical a Deus. Ele mesmo fala em “machado posto à raiz das árvores” (Mt 3,10); conversão que significa abandono do pecado e retomada da aliança com Deus e, acima de tudo, uma conversão que se traduza numa mudança radical também nos comportamentos comunitários e sociais: quem tiver duas túnicas dê uma a quem não tem, quem tiver comida, compartilhem-na com o famintos; os cobradores de impostos não cobrem nada além da taxa estabelecida; e os soldados não maltratem ninguém, não façam acusações falsas, e fiquem contentes com seu salário (Cf. Lc 3,10-14).

João, porém, tem evidência de que seu Batismo, embora muito importante, era ainda e apenas com água, isto é, provisório. Por isso, aponta para o definitivo, dizendo: “mas ele vos batizará com o espírito” (Mc 1,8).

2.2. No rio Jordão, o princípio do Batismo de Jesus e de toda a humanidade

A segunda parte desse trecho, a mais importante e fundamental, começa dizendo que naqueles dias, Jesus veio de Nazaré para a Galileia e foi batizado por João no rio Jordão (Mc 1,9).

Sempre impressiona que, em dado momento de sua vida, sem nenhuma explicação, Jesus tenha ido ao rio Jordão para também ele receber de João o Batismo de penitência. Isto significa que, também ele, a exemplo de todas aquelas multidões, ansiava por uma mudança radical. Essa, de fato, aconteceu, pois logo ao sair da água, viu os céus se abrirem e o Espírito, como pomba, descer sobre Ele. E do céu veio uma voz: “Tu és meu Filho muito amado, em ti ponho meu bem-querer!” (Mc 1,10-11).

O misterioso anúncio caiu como um raio em seu coração. Nunca, em nenhuma página do Antigo Testamento, nem aos patriarcas, nem mesmo a Moisés, Deus falara assim para uma pessoa, com tanta familiaridade e afeição. Por isso, agora, Deus, que se revela desse modo, só pode ser compreendido, visto e amado como Pai. Este Pai e sua vontade passam a ser, agora, a paixão, a vida e a Boa Nova – a salvação – que Ele precisa anunciar para todos os homens. Por isso, nem mais voltou para casa, a ponto de deixar seus familiares perturbados. Chegaram até mesmo a pensar que estava ficando louco (Cf. Mc 3,21).

A partir de então, Jesus não era mais o mesmo. Viver anunciando a todos que Deus é Pai torna-se seu pão de cada dia, o fogo que devorava seu coração. Ele estava inteiramente voltado para o Pai e seu Reino. Mas, bem diferente dos penitentes ou convertidos do Antigo Testamento e do próprio João Batista. Diferente, porque sua penitência vinha recheada da alegria da presença do Pai e não do temor frente à ameaça do juízo.

O Batismo torna-se, assim, o princípio a partir do qual Jesus como Filho muito querido de Deus Pai começa a manifestar-se e a expandir-se publicamente pelos povoados, cidades e aldeias da Galileia e da Judeia. O beijo de amor de Deus dado à humanidade na noite do Natal começa a tornar-se público. É a salvação anunciada durante séculos, começando a acontecer na pessoa de Jesus e através Dele no coração dos cegos que começam a ver, dos coxos que começam a andar, dos leprosos que são purificados, dos surdos  que começam a ouvir, dos mortos que são ressuscitados, dos pobres e pecadores para os quais o Evangelho e  o perdão são anunciados (Cf. Mt 11,5).

O Batismo de Jesus, porém, sempre nos deixa intrigados, pensativos. Porque Ele se fez batizar se era uma pessoa divina, isenta de todo pecado? A resposta é simples, embora muito emblemática: é que Ele veio para beijar, abraçar e comungar a condição mais dura e pesada de toda a humanidade: a de pecadores. Por isso, dirá mais tarde São Paulo: Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus (2Cor 5,21).

Jesus, Deus e homem, o inocente que se faz pecado, eis a mais importante chave para compreender tanto a Cristologia como a Eclesiologia do segundo Evangelho. Em Marcos o divino não deve jamais ser apreciado às custas do humano, como também o humano não pode jamais ser apreciado às custas do divino. A partir deste princípio dialético, também a Igreja deverá compreender-se e aprender a encetar sempre de novo sua caminhada de santa e pecadora: aprender a compartilhar com os demais humanos essa triste e pesada história de pecado, procurando sempre de novo o vigor da pureza originária do beijo do amor de Deus, a fim de que possa lutar eficazmente contra o pecado em si e no mundo.

3. Amar a Deus é observar seus mandamentos (1Jo 5,1-9)

A segunda leitura é da 1ª Carta de São João. Mais do que uma declaração de fatos ou ocorrências, estamos diante de fervorosa exortação aos fiéis de diversas comunidades acerca do fundamento mais seguro e importante da fé cristã: Caríssimos: ‘Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus!’ (1Jo 5,1).

Nessa exortação está implícita a fé em Jesus Cristo como o Filho do Deus vivo, de modo que todo aquele que nele crê nasce de Deus, tornando-se também ele, por participação, verdadeiro filho de Deus. Crer, aqui, significa amar, entregar-se a Ele, jogar-se para dentro Dele, como ele se entregou, se jogou para dentro de nossa humanidade e para dentro do Pai por nós; significa amar os filhos de Deus, nossos irmãos, entregar-se a eles como Ele os ama e a eles se entrega. Lembremos, apenas, como Ele se entrega na Eucaristia, nos doentes e pecadores. A argumentação ou conclusão é simples: Por isso, sabemos que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e guardamos seus mandamentos. Pois, isso é amar: observar seus mandamentos (1Jo 5,2).

Nós costumamos dizer que sabemos que amamos a Deus quando amamos os irmãos. João parece inverter o dito: sabemos que amamos os irmãos quando amamos a Deus. Discutir qual das duas versões é a mais acertada é de somenos importância, pois que a comunhão fraterna e a comunhão com Deus andam sempre juntas, porque ambas estão sob o vigor do novo mandamento, isto é, do novo ordenamento dos homens inaugurado por Cristo: amar-nos como Deus nos ama. Assim, não há comunhão com o Pai sem a comunhão com os seus filhos, a começar pelo Filho primogênito, Jesus, o Cristo.  Da mesma forma não há comunhão com os irmãos sem a comunhão com o Pai. Pelo Batismo todos formamos uma grande Família na qual o que acontece num de seus membros acontece no seu todo.

Enfim, o amor nasce da fé. Por isso, quem ama é porque está sendo movido pela fé, isto é, pela fidelidade de Deus e quem está sendo movido pela fé é porque nasceu de Deus.

 

Conclusão

O Batismo de Jesus, mais que um evento particular Dele, adquire e se reveste de dimensões universais. Com Jesus é a humanidade e a criação toda que são mergulhadas nas profundezas do rio das águas puras do Amor infinito de Deus, a fim de, libertadas das amarras do pecado da soberba, que nos prende a nós mesmos, ser conduzidos para dentro da pátria da liberdade dos filhos de Deus.

Essa força originária do bem-querer de Deus, trazida ao mundo na Noite do Natal, e manifestada solene e publicamente na Pessoa de Jesus no seu Batismo, é uma realidade que acompanha os homens séculos afora. Em alguns, como São Francisco, ela se manifesta de modo admirável. Deste santo assim fala São Boaventura: O Senhor mostrou sua complacência com o bem -aventurado Francisco, pois quis falar-lhe não como se fala a um estranho, mas como a um amigo do coração (‘sicut amici speciali’: como a um amigo especial), como se deu na Igreja de São Damião quando lhe falou com voz humana (‘sermone vocali’) o Crucificado… E conclui São Boaventura: Se nós também estivéssemos dispostos ao que agrada ao Senhor, Deus nos revelaria sua vontade (São Boaventura, Opera Omnia, IX, 580b).

Por isso, neste santo, a exemplo de Cristo, o vigor da doçura deste bemquerer do Pai não ficou sem resposta. É o que podemos ver e admirar em seus inúmeros e famosos I Fioretti ou Atos do Bem-aventurado Francisco e de seus Companheiros, bem como nestes seus belos Louvores ao Deus Altíssimo:

Tu és o santo, Senhor Deus único, que fazes maravilhas.

Tu és o forte,

Tu és o grande,

Tu és o altíssimo,

Tu és o rei onipotente,

Tu, Pai santo, o Rei do Céu e da Terra,

Tu és o Trino e Uno,

Senhor Deus dos deuses,

Tu és o bem, todo o bem, o sumo bem, Senhor Deus vivo e verdadeiro…

Grande e admirável Senhor, Deus Onipotente, misericordioso Salvador          (LDA).

Mas, o vigor da doçura do beijo do bem-querer do Pai que, a partir do Batismo, começou a tomar conta do coração de Jesus e, através Dele, a expandirse mundo afora, não se atem a um pequeno grupo de privilegiados. Pode ser visto nos pais que criam seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir (GE 7).

Frei Dorvalino Fassini/ Marcos Aurelio Fernandes