Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus 2021

Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

Leituras: Nm 6,22-27; Sl 66; Gl 4,4-7; Lc 2,16-21

Tema-mensagem: Maria, a santa Mãe de Deus, gera e oferece ao mundo o Príncipe da paz.

Introdução

“Solenidade de Maria, Mãe de Deus!” É assim que a Igreja, hoje, dentro da oitava do Natal, expressa e celebra, jubilosa, a identidade mais profunda, misteriosa e encantadora, mas, também dramática de Maria. Com Maria, a Mãe de Jesus, a Mãe de Deus e, por extensão, nossa Mãe, a Mãe do Príncipe da Paz universal, temos também, juntamente com o início de um novo ano civil, a alegria de podermos celebrar a graça do mistério do tempo, da existência humana e de toda a criação.


1. A grande bênção patriarcal (Nm 6,22-27)

A primeira leitura de hoje traz a bênção aarônica, bênção sacerdotal da Antiga Aliança, de cuja invocação foram incumbidos Aarão e seus filhos: “Invocarão o meu nome sobre os filhos de Israel e Eu os abençoarei” (Nm 6, 27). Como dádiva divina graciosa, dispensada pelo Senhor, em sua liberdade soberana, a bênção nasce sempre de seu bem-querer. Por isso, sempre se expressa num relacionamento de intimidade de um “Tu” para outro “tu”: “O Senhor (o grande TU) te abençoe e te guarde…” (Nm 6,24).

A invocação do nome do Senhor sobre o povo é como a garantia de uma assinatura, de um selo ou carimbo de pertença. Por três vezes ela se repete:

  • Que o Senhor te abençoe e te guarde!” (Nm 6,24). Literalmente, te doe proteção. No homem, Deus vê seu Filho muito amado – seu alumnus, seu pupilo. Por isso, o Senhor o protege como a menina de seus olhos;
  • “O Senhor faça resplandecer sobre ti seu olhar e te conceda sua graça!” (Nm 6,25). Literalmente, te doe perdão, misericórdia. Deus quer que nós comunguemos de sua identidade mais profunda, de sua benevolência, de seu amor, através de um rosto sorridente, alegre e misericordioso, como o rosto do Pai do Filho pródigo;
  • O Senhor volte para ti o seu olhar e te dê a paz!” (Nm 6,26). Literalmente: “Que o Senhor levante seu rosto para ti e te dê a paz!” Levantar o rosto significa acolher. Que o Senhor te acolha! Que ele não desvie o rosto de ti! Essa é a vontade paterna de Deus: acolher o homem que se volta para Ele.

A primeira leitura termina com esta orientação: Assim, invocarão seu nome. O Nome do Senhor é secreto, maravilhoso (Cf. Gn 32,30; Jz 13,18). É nome inominável, inefável, porque acena, guarda e comunica tudo aquilo – o mistério – que Deus, Jahvé, quer ser para o seu povo: Deus que quer marcar presença, caminhar com seu povo e ser dele.

2. Filhos no Filho (Gl 4,4-7)

A segunda leitura, tirada da Carta aos Gálatas, começa com o anúncio do cumprimento do tempo messiânico: Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho… (Gl 4,4).

O desafio que nos incumbe essa mensagem é experimentar essa plenitude no meio das vicissitudes do dia a dia; de dispor-nos para acolher o mistério da humanidade e da humildade de Deus, do Deus Menino, em nossas vidas. Só então acontecerá também para nós a plenitude de nosso tempo. Isso se dará se fizermos cada dia de nossa vida um dia de Natal; se vivermos sempre de novo, a cada amanhecer, o irromper da plenitude de nosso tempo. Celebrar o Natal significa dispor-nos a abrir o coração para que ela, essa plenitude – a presença do Menino Deus – se dê nas mais diversas vicissitudes, nos apertos e nos alívios, nas alegrias e tristezas de cada dia.

A vinda de Cristo na história humana, porém, antes de uma chegada repentina, a modo de um meteorito, vem de dentro, num processo de gestação: nascido de uma mulher, nascido sujeito à lei (Gl 4,5). Neste processo, Jesus vai comungando de todas as consequências e reveses da condição humana decadente desde a queda de Adão. Para o apóstolo Paulo é de suma importância insistir na mensagem de que o Filho de Deus é homem como todo e qualquer homem, homem inteiramente humano e, por isso, plenamente inserido naquele estado da maldição da lei, no qual e pelo qual se tornou  maldito a ponto de ser suspenso no madeiro (Cf. Gl 3,13).

A importância desta insistência de Paulo é para mostrar que só assim o homem é libertado, de modo radical e inteiramente, de sua condição de escravo da lei; só assim ele – o homem – passa, como Ele, a ser filho do Pai. Esta identificação libertadora segue o caminho da kénosis, isto é, do abaixamento, através da qual Ele imerge inteiramente na miséria humana até a morte mais vergonhosa, que é a morte de cruz; atraindo, assim, a si todos os que comungam dessa miséria.

Estamos diante de um novo princípio de salvação para todas as relações humanas, sociais, políticas, econômicas e religiosas. Por isso, todos aqueles que, realmente, proclamam esta fé de filhos do único Pai, devem considerar a si e a todos como verdadeiros irmãos, não podendo admitir nenhuma discriminação seja de que tipo ou nível for, social ou religioso, econômico ou político. Bem dizia São Francisco:

‘Todos vós sois irmãos! Por isso, não vos chameis de pai sobre a Terra, pois, um só é vosso Pai, que está nos Céus. Nem vos chameis de Mestre. Pois um é o vosso Mestre’ que está nos Céus. ‘Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem emvós, pedireis o que quiserdes e vos será dado. Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles’ (RNB 22,33-36).

3. Maria, fazendo-se Mãe de Deus, faz-se também Mãe da nova humanidade e nos dá o Príncipe da Paz (Lc 2,16-21)

Entre os diversos aspectos (mistérios), que envolvem o nascimento de Jesus, está o de Maria, sua Mãe, e dos pastores.

3.1. Os pastores, sua louvação e anúncio

O Evangelho de hoje começa com a visita dos pastores. Na origem desse evento está uma bela notícia, um verdadeiro Evangelho vindo do céu, através do Anjo do Senhor: “Hoje, nasceu para vós um Salvador!” (Lc 2,10-11). O anúncio exige uma dupla resposta: que o sinal seja verificado e que seu significado aceito. Por isso, os pastores vêm pressurosos e, de fato, encontram tudo como fora anunciado pelo Anjo: Maria e José, e o Menino deitado no coxo (Lc 2,20). Ato contínuo, entoando glória e louvores a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, à semelhança dos Apóstolos, mais tarde, diante da Ressurreição, saíram a anunciar a Boa Nova desse nascimento, cheio de mistério, a todos quantos encontravam, tornando-se, assim, os primeiros evangelizadores.

Usualmente a tradição cristã vê nestes pastores a figura dos pobres da terra que vivem à margem da segurança e das benesses do estado, da sociedade e da Religião, uma gente fora da lei, envolvida, muitas vezes, em brigas internas por causa de furtos e outras desavenças comuns neste gênero de vida. Mas, não podemos esquecer, principalmente, que esses pastores estão ligados a Belém, a cidade de origem do menino Davi, pequeno pastor, escolhido para ser o grande rei, um segundo fundador do Povo eleito, imagem do futuro Messias; devemos também recordar Abraão e demais patriarcas, humildes e simples pastores que, também, souberam dar sua resposta de fé à visita e ao chamado do Senhor.

Mas, acima de tudo, o evento dos pastores nos coloca, já de saída, diante do paradoxo fundamental de todo Cristianismo: o Salvador vem em forma de um menino, indefeso, deitado numa manjedoura, envolto em faixas pobres, em meio a animais. Um Menino que se tornará o Cordeiro de Deus. E eles, ao contrário dos poderosos deste mundo, creram, botaram fé, se fiaram neste sinal, que é a Senhora Pobreza, como dirá mais tarde São Francisco. Assim, neles, os mais humildes, pequenos e marginalizados de Israel começou a brilhar, como outrora em Abraão, a nova luz acerca da verdade de Deus e que brilhará em plenitude, mais tarde, no Gólgota: o Crucificado, o Cordeiro de Deus que, ao morrer entre ladrões, dá sua vida pelos homens.

3.2. Maria, Mãe de Deus 

Em seguida, Lucas nos mostra Maria recolhida e recolhendo (symbállousa) em seu coração todas as coisas que via e ouvia, buscando nos acontecimentos-palavras (tà rhémata) um sentido divino. Esse era seu empenho maior (Cf. Lc 2,19), seu alimento diário. Ser mãe, mais que gerar, é buscar, colher e recolher o sentido desse milagre da vida – o filho – a fim de poder ser-lhe, cada vez mais, o mais fiel possível. Nele está seu tudo. Um mistério que a acompanhará por todos os dias de sua vida: um menino que tem sangue de seu sangue, osso de seus ossos, mas que é de origem misteriosa, divina. Como entender esta união divina e humana?

Estamos diante do outrora (século IV) tão discutido e famoso mistério, dogma, da “união hipostática”. Este mistério significa que Jesus é uma única pessoa, portadora de duas naturezas: a divina e a humana, que, sem se confundir, encontram-se unidas intimamente. Consequentemente, Maria não é simplesmente a mãe do varão Jesus, mas também do Deus-homem, do Verbo encarnado, ou, como a saudou Isabel: Mãe do Senhor (Lc 1,43), verdadeira Theotokos, isto é, verdadeira genitora de Deus. Eis o título com o qual nós a saudamos hoje e em todas as “Ave Marias”: “Mãe de Deus”. É o título mais nobre que uma mulher mortal poderia receber. Todos os seus outros títulos, como água de uma vertente, emanam dessa sua dignidade de mãe de Deus, “Mãe do Senhor”.

Segundo Santo Efrém, o Sírio (+ 373), com o título Theotokos (Mãe de Deus), a Igreja antiga quis manifestar para com ela toda sua devoção, reverência e amor:

Mas, ó Virgem Senhora, imaculada Mãe de Deus, minha Senhora gloriosíssima, minha Senhora beneficentíssima, mais sublime do que o céu, muito mais pura do que os esplendores, os raios, os fulgores solares, … Vara germinante daquele Aarão, vara que verdadeiramente apareceste, e mostraste a flor, teu Filho, nosso Cristo verdadeiro, meu Deus e meu autor. Tu, segundo a carne, geraste Deus e Verbo, antes do parto, servindo na virgindade, virgem permaneceste após o parto, e nós fomos reconciliados com Deus, o Cristo, teu Filho!

3.3.  Maria, Mãe da Igreja

Maria, por ser a Mãe de Jesus, torna-se também a Mãe de todos os seguidores de seu Filho, a Mãe da Igreja. Costumamos argumentar que Maria se torna Mãe da Igreja quando no auge da Cruz, Cristo, se dirigindo a ela, indica o discípulo que Ele amava e diz: “Mulher, eis aí teu filho!”; e depois dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” (Jo 19,26-27). Mas, talvez, Jesus esteja dizendo que, agora sim, pela participação dela na paixão da Cruz, Maria consumara sua Maternidade, iniciada com a anunciação do Arcanjo: que agora, sim, Maria acabava de se tornar verdadeiramente Mãe Dele – Jesus, dele João e de todos quantos O seguirem.

Quem compreendeu bem essa exclamação foi São Francisco, quando redigiu a seguinte saudação: Salve, Senhora, santa Rainha, santa genitora de Deus, que és virgem feita Igreja! (SVM).

Segundo essa saudação, Maria e a Igreja fundem-se na mesma alma, vocação e missão: a maternidade divina. Assim, quem vê Maria vê a Igreja e quem vê a Igreja vê Maria. Na maternidade de Maria, a Igreja contempla e vive sua maternidade. Na maternidade da Igreja, Maria vê prolongar-se sua Maternidade divina.

Assim, o mistério da maternidade divina de Maria, em vez de restringirse apenas a ela, estende-se a toda a Igreja e a toda a Humanidade, a toda a Terra. Ela é a mãe dos homens da terra e da terra dos homens. Sim, a nossa irmã, a mãe terra (CIS 9) também participa deste mistério da maternidade divina, gemendo em dores de parto (Cf. Rm 8,22). Sim, todos nós humanos, com todas as demais criaturas, somos chamados a ser em Jesus filhos de Maria e filhos de Deus, como também chamados a ser em Maria, mães de Jesus.

Maria torna-se assim a Nova Eva (Mãe da vida e dos viventes), assim como Cristo, seu Filho, se tornou o Novo Adão. Deles nos advém a Nova Criação: o Natal do Novo Céu e da Nova Terra, a Paz e a Fraternidade universal.

3.4.   Deram-lhe o nome de Jesus

O Evangelho de hoje termina dizendo: Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo próprio Arcanjo, antes de ser concebido (Lc 2,21).

Estamos diante do sumo da bênção de Deus, atestado na primeira e segunda leitura de hoje. Essa bênção nos vem em seu Filho Jesus, porque Ele é o próprio Deus-conosco, o “Emanuel”, assim decantado por São Paulo: Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a bênção espiritual nos céus, em Cristo Jesus (Ef 1,3). Se neste mundo receber um filho, ganhar um irmão é uma grande bênção, o que não dizer quando este filho e irmão é o Filho de Deus!?

Por isso, para nós o nome “Jesus” é tudo.  É nosso caminho, nossa verdade, nossa vida. Disso souberam e provaram os cristãos do ocidente e do oriente. Os que escreveram sobre São Francisco, por exemplo, falavam de como o nome de Jesus era doce ao paladar espiritual desse Santo. Tomás de Celano, ao mostrar a devoção de Francisco para com a “Natividade do Menino Jesus”, fez questão de anotar como ele pronunciava este nome com singular afeto, balbuciando doces palavras como uma criancinha, e como, para ele, esse nome (Jesus) era como favo de mel em sua boca (1C 86). Santa Joana D’Arc, por sua vez, quando ia se encaminhando para a fogueira, não cessava de balbuciar “Jesus!”, “Jesus!”, “Jesus!”.

Conclusão

A alegria da Solenidade de Maria, Mãe de Deus, coincide com a alegria da chegada do Ano Novo, evento que nos leva a bendizer a graça do mistério do tempo, da existência, do ser.

Além do mais e, principalmente, por mais secularizada que hoje esteja, esta festa ainda traz, no ocidente, as marcas do mistério da Encarnação. Nosso calendário, dizendo “depois de Cristo”, sempre proclama que estamos reiniciando o Tempo de Cristo, que todo o ano é ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Neste sentido, o novo ano pode significar a graça de começar, de nascer de novo, como recomendava São Francisco, no fim de sua vida: “Meus irmãos, comecemos a servir, de novo e com humildade, ao Senhor, porque até agora bem pouco fizemos” (1C 103).

Por tudo isso, vem muito a propósito a Igreja iniciar o novo ano, o dia da Paz e da Fraternidade universal, e, celebrar a solenidade de Maria Mãe de Deus, com a proclamação da primitiva bênção de Aarão, o dia em que Deus fez Maria sorrir porque ela deu à luz o sorriso de Deus, Jesus Cristo (Tesouros da Literatura e da História, Santo Antônio de Pádua, volume II, 1987; pág. 625 – III Sermão in Nativitate Domini).

Contemplando este mistério, assim se expressa Santo Anselmo:

Toda a criação é obra de Deus, e Deus nasceu de Maria. Deus criou todas as coisas, e Maria deu à luz Deus! Deus que tudo fez, formou-se a si próprio no seio de Maria. E, deste modo, refez tudo o que tinha feito. Ele, que tudo pode fazer do nada, não quis refazer em Maria o que fora profanado. Por conseguinte, Deus é o Pai das coisas criadas, e Maria é a Mãe das coisas recriadas. Deus é o Pai da criação universal, e Maria a Mãe da redenção universal… (Ofício das Leituras, 8 de dezembro).

Como os pastores, nós também, terminada a Oitava do Natal, voltemos jubilosos para as casas de nosso cotidiano, de nosso tempo, de nossa “Casa Comum” glorificando e louvando a Deus por ter-nos concedido a graça de ver, celebrar e testemunhar, mais uma vez, o Mistério divino-humano de Jesus e de Maria, a Mãe de Deus.

Por intercessão de Maria, a Mãe de Deus, que durante todo este novo Ano:

O Senhor te abençoe e te guarde!

O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face, e se compadeça de ti!

O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz (Nm 6, 23-26).