SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO – REI DO UNIVERSO
22/11/2020
Pistas homilético-franciscanas
Leituras: Ez 34,11-12.15-17; Sl 22(23); 1Cor 15,20-26.28; Mt 25,31-46
Tema-Mensagem: – Toda honra, glória e poder ao Rei do Universo, Jesus Cristo crucificado-ressuscita
Imagem: Cf. final deste anexo: O Crucificado de São Damião.
Introdução
Hoje, último domingo do ano litúrgico, celebramos o mistério do fim último de todas as coisas, de todos os povos, nações, pessoas e de todas as criaturas, afinal, o fim último de todo o universo e de toda a história. Segundo o Evangelho de hoje, naquele dia, seremos congregados ao redor do grande, belo e bom pastor, o Cordeiro imolado e imaculado, o Cristo crucificado-ressuscitado, Rei do Universo. Então receberemos Dele a sentença final acerca de nossa conduta de ovelhas ou de cabritos.
- Deus promete fazer-se pastor de suas ovelhas, Israel (Ez 34,11-12.15-17)
Quem nos introduz no mistério desta solenidade é o profeta Ezequiel. Para entender a perícope de sua profecia, usada hoje como primeira leitura, é preciso ter em mente a decadência dos dirigentes do povo judaico, em especial de seus reis. Tudo o que aquela gente estava fazendo pode ser resumido nesta constatação: em vez de apascentar se apascentavam, em vez de servir se serviam do povo, tratando seus irmãos com crueldade, violência e se aproveitando deles como escravos. Assim, muitos fugiram e se dispersaram por entre povos vizinhos, pagãos, impedidos, muitas vezes de realizar seus compromissos mais sagrados: as devoções e o culto ao seu Deus.
Para este povo abatido e abandonado, porém, soa a voz do Senhor: “Vede! Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas. Como o pastor toma conta do seu rebanho… assim eu vou cuidar de minhas ovelhas”. Para diferenciar seu modo de reinar com o dos deuses dos pagãos, porém, Deus usa a figura do bom pastor que apascenta e dá sua vida pelo seu rebanho. E consequentemente, este deveria ser também o espírito, o modo de reinar de todos os dirigentes de Israel.
Ezequiel, então, anuncia que os maus pastores estão com os dias contados. Pois Deus mesmo virá para reunir suas ovelhas dispersas, abandonadas, para reconduzi-las à sua própria terra e apascentá-las em pastagens férteis e tranquilas (vers. 11-12). Mais: Deus, o Bom Pastor, irá procurar cada ovelha perdida e tresmalhada, cuidar da que está ferida e doente, vigiar a que está gorda e forte (vers. 16); além disso, julgará pessoalmente os conflitos entre as mais poderosas e as mais débeis, a fim de que o direito das fracas não seja pisado (vers. 17).
Toda esta auspiciosa notícia profetizada por Ezequiel ressoa no coração do salmista do Salmo 22/23 e de cada um de nós, hoje: “O Senhor é meu pastor: nada me faltará”. O salmista ou fiel de ontem e de sempre sabe, por experiência própria que a bondade e a graça hão de acompanhá-lo todos os dias de sua vida e que habitará na casa do Senhor para todo o sempre. Eis com que bondade, cuidado e misericórdia se rege o senhor Deus, o bom e belo Pastor em relação a nós suas ovelhas!
- Cristo ressuscitado primícias da ressurreição e todos os homens (1Cor 15,20-26.28)
Deus estima criar os homens não apenas para tê-los como seus filhos queridos, mas também para destiná-los a participar da sua glória. Esta destinação, porém não se realiza como efeito de uma ordem patronal ou repentinamente ao toque de uma vara mágica, mas através de uma longa história, chamada de história da salvação, cujo centro é seu Filho Jesus Cristo que se encarna para assumir a humanidade como sua esposa e pela qual dá sua vida até a morte e morte de cruz. Assim, segundo São Paulo Cristo ressuscitado dos mortos torna-se as primícias de todos os que morreram. É o que ele nos anuncia na 2ª leitura de hoje: “Na realidade, Jesus ressuscitou dos mortos como primícias daqueles que morreram”. Isto significa que a ressurreição de Cristo antes de individual é um evento, uma raiz comum a todos aqueles aos quais ele se uniu e através desses, a todas as demais criaturas terrestres e celestes. E, para explicar e realçar esta dimensão universal, cósmica da ressurreição inventa a feliz metáfora do novo Adão. Se o primeiro Adão conduziu sua humanidade à morte, Cristo, o segundo Adão conduz os seus à ressurreição.
A imagem de Cristo-primazia leva Paulo imaginar o processo da ressurreição como uma realidade organizada de modo cronológico e hierárquico. Ou seja: Cristo ressuscitou por primeiro a modo de primícias, como célula-mãe da nova criação, do novo mundo. Depois, na sua parusia, irão aqueles que são Dele e, logo em seguida, será posto o ponto final desta história: a morte como “o último inimigo a ser destruído” (v. 26). Entretanto, entre o ponto inicial – as primícias” da Ressurreição de Cristo – e final – a ressurreição daqueles que o seguiram e estão com Ele – há uma longa história de reveses de uma luta entre Cristo e sua mensagem e as potências deste mundo. Uma luta que só terminará “quando todas as coisas estiverem submetidas a Ele, e então, o próprio Filho se submeterá Àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que ele seja tudo em todos” (v.28). Paulo, porém, através de metáforas (grão semeado na terra, corpos celestes e corpos terrestres (1Cor 15,15-49), faz questão de realçar que o grande evento final da evolução humana em Cristo se reveste de um colorido cósmico, corporal, terrestre.
- Um julgamento de rei (Mt 25,31-46)
Tudo o que o profeta Ezequiel previu e profetizou, tudo o que Paulo revela como evento, isto é, como realidade misteriosa em andamento na história, Jesus anuncia como Boa Nova para toda a humanidade no Evangelho do Último Juízo. O centro desta mensagem não está propriamente no fim do mundo com seus acontecimentos, mas na necessidade ou importância de chegarmos lá devidamente preparados, isto é, identificados com sua pessoa, o Filho do Homem. Só assim poderemos ouvir dele: “Vinde benditos de meu Pai. Tomai posse do reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo”.
- O Filho do Homem que se torna rei divino universal
O evangelho do Julgamento final não pode ser lido fora do grande Sermão da montanha, principalmente de sua conclusão: “aqueles que ouvem a sua palavra e a põem em obra são como um homem sensato que constrói sua casa sobre a rocha; já aqueles que ouvem a sua palavra e não a põem em obra são como um homem insensato que constrói sua casa sobre a areia. A casa do primeiro permanece de pé frente às intempéries. Já a do segundo cai em ruína (Mt 7, 21-27). Aqueles que ouvem sua palavra, mas não a põem em obra recebem, ao fim, a dura palavra: “nunca vos conheci! Retirai-vos para longe de mim, fautores da anarquia” (Mt 7, 23).
Está muito claro que o protagonista desta parábola não é outro senão o Filho do Homem que então vem marcar sua presença como Rei do universo. Universo, aqui, mais que um fenômeno de globalização que tudo achata e despersonaliza, indica o modo de ser, de estar voltado, virado, vertido para o uno, o originário que a tudo e a todos respeita em sua individualidade. Assim “Rei do universo” aponta para aquele Um, aquela raiz ou força originária que erige todas as coisas, que as sustenta e as dirige à sua consumação não pela força dos poderosos deste mundo, mas pela benignidade de um menino que nasce de uma virgem pobrezinha e que é posto num presépio e que, finalmente, condenado injustamente, morre pacificamente numa cruz. Um Rei que sendo o máximo, se faz o mínimo e cujo senhorio é serviço, cuja onipotência coincide com a fragilidade, isto é, a fraqueza e a ternura do amor.
Sim, Jesus Cristo reina a modo de criança como se vê nesta antiga anedota sobre Mestre Eckhart, de como ele encontrou-se com um menino nu:
Perguntou-lhe donde vinha. “Venho de Deus”, disse ele. “E onde o deixaste?”. Perguntou o mestre. E a resposta foi: “Nos corações virtuosos”. “Para onde vais?” “Para Deus!”. “Onde o encontras?” “Onde larguei todas as criaturas”. “Quem és tu?” “Sou um rei!” “Onde está o teu reino?” “No meu coração”. “Toma cuidado que ninguém o compartilhe contigo!” “É o que faço”. Depois disso o conduziu à sua cela e disse: “toma a veste que queiras!”. E o menino recusou: “Deixaria de ser rei!”. E desapareceu. Disse-se que fora o próprio Cristo que viera se divertir com Ele.
- Ovelhas a direita e cabritos a esquerda
A palavra sobre o juízo final é pronunciada dois dias antes da páscoa em que o Rei dará a sua vida como Cordeiro-Servo de Deus e a retomará, em seguida, por sua ressurreição. A sua ressurreição é, pois, colocada como o princípio da nova humanidade promovida pelo seu Reino. Ela antecipa a modo de primícias a ressurreição dos mortos (Cf. segunda leitura de hoje). Jesus é o filho de Deus que se faz Filho do Homem para, através de seu sacrifício na cruz e de sua ressureição recolher na unidade os filhos de Deus dispersos (Cf. Jo 11, 52). Eis o seu Reino para o qual agrega e institui os seus enviados (apóstolos), que apascentariam as suas ovelhas não a partir da violência e da opressão, nem a partir do interesse do ganho e do lucro, mas a partir do amor, da misericórdia (Cf. Jo 21, 15).
Também aqui se revela a dimensão universal deste Rei e de seu Reino, já comentado acima no item 2/no segundo item. Ele vem com todos os seus mensageiros (ángeloi)?? que, para os Padres da Igreja, podem ser tanto os espíritos celestes (“anjos”) quanto os pregadores. Eles comparecem para dar testemunho do ministério que exerceram em favor da salvação dos homens. E todos os povos se reunirão para serem julgados (v. 32). A sua manifestação atinge toda a terra: “de fato, assim como o relâmpago parte do oriente e brilha até o ocidente, assim sucederá na vinda do Filho do Homem” (Mt 24, 27). Na luz desta manifestação, diz Orígenes, todos os homens entrarão no conhecimento de si mesmos. Santo Agostinho, por sua vez, diz que à memória de cada um serão trazidas as suas obras – boas e más – que serão vistas com admirável celeridade pela mente, a fim de que o entendimento acuse ou desculpe a consciência.
E serão separados, então, os justos dos injustos. Os justos são chamados, aqui, de ovelhas, seja em virtude de sua mansidão (Mt 11, 29), de sua simplicidade e inocência, seja em virtude de vida oferente-sacrifical (Is 53, 7): a ovelha prefere morrer do que berrar e acusar. Já os injustos são chamados de cabritos, cujo título, para o mesmo Orígenes, é bem adequado para os injustos, pois estes animais sobem nos penhascos, beiram os precipícios, invadem e saqueiam as pastagens alheias. Crisóstomo recorda a utilidade da ovelha que oferece ao pastor tantos préstimos e a inutilidade dos cabritos. Por isso, Jerônimo observa que o evangelho não fala de cabras, que ainda, de certo modo, são úteis, principalmente pelo seu leite, mas de cabritos.
As ovelhas serão postas ao lado direito do Rei e os cabritos do lado esquerdo. Direita e esquerda, aqui, provavelmente, significam a bem-aventurança e a desgraça. Assim, aqueles que foram justos, isto é, eretos e retos, que guardaram o direito, vivendo a justiça do Reino, ficarão do lado destro do Rei e deste lado encontrarão descanso e glória. São os benditos do Pai. Estes receberão o Reino como uma herança familiar. São os filhos do Reino. São os irmãos de Jesus, que fizeram a vontade do Pai (Mt 12, 50). Que estes viveram retamente, segundo a justiça do Reino, se manifesta nos méritos que o Rei evoca a respeito deles: as sete obras de misericórdia que credenciam os Filhos do Reino a tomarem posse de sua herança. Estas obras, podem ser, segundo os Padres da Igreja, tanto obras de misericórdia corporal quanto obras de misericórdia espiritual.
- A causa do julgamento
Os justos, no entanto, são humildes. Por isso, surpreendentemente, não se reconhecem em tais méritos. O prêmio do Reino lhe parece imerecido. Aqueles que foram injustos, porém, que seguiram a via sinistra da iniquidade, da desventura, do desamor, da falta de misericórdia, ficam do lado esquerdo do Rei. Ainda que tenham confessado o seu nome e professado a fé n’Ele viveram apartados efetivamente d’Ele. Por isso, no juízo, são apartados do Rei. Eles se desculpam, o que mostra a sua soberba. Mas, estas desculpas de nada lhes servem. Orígenes observa como os justos são chamados pelo Rei de “benditos de meu Pai” e os injustos, porém, não são chamados de “malditos de meu Pai”. Com efeito, o Pai é sempre autor da bênção, jamais da maldição. Pois, na verdade, o autor da maldição é cada um para si mesmo, enquanto pratica obras de iniquidade.
O desfecho é o seguinte: enquanto os justos (misericordiosos) recebem a misericórdia e vão para a vida perene, os injustos (impiedosos), que forneceram para si mesmos a maldição, vão para a punição perene. Tornam-se dignos de sofrimento eterno aqueles que aniquilam em si mesmos o bem que poderia ser eterno (Agostinho). Deus não se compraz com esta miséria, porque é misericordioso (Gregório Magno). Mas toma a sério nossa liberdade. Se escolhermos a morte eterna, isto é, o viver eternamente separados de Deus, ele respeita esta nossa escolha. Ao final das contas, os que não mostraram misericórdia pelos outros homens, mostram que não têm misericórdia de si mesmos (Cf. Eclo 30, 24). Os que foram misericordiosos, porém, com os outros, mostram que foram misericordiosos consigo mesmos. Estes recebem o acesso à vida eterna. A vida eterna, porém, é o nosso sumo bem. É a paz. É o conhecimento de Deus (Jo 17, 3), quando os filhos do Reino o verão tal como ele é e serão tal como ele é (1 Jo 3, 2).
Desde a encarnação, não se pode separar Cristo, o Filho de Deus e filho do homem, de seus irmãos. Daí a sentença: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos… foi a mim que o fizestes” (Mt 25). Entende-se, assim, o cuidado de São Francisco pelos enfermos, especialmente pelos leprosos, enfim, pelos mais miseráveis dos homens. No Sermão da Montanha, no ato inaugural da proclamação das bem-aventuranças, Cristo proclama bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Estas palavras – «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» — pergunta o papa João Paulo II, na encíclica Dives in Misericordia,
…não constituem, em certo sentido, uma síntese de toda a Boa-Nova, de todo o «admirável intercâmbio» (admirabile commercium) nela contido, que é uma lei simples, forte e ao mesmo tempo «suave», da própria economia da Salvação? Estas palavras do Sermão da Montanha, mostrando desde o ponto de partida as possibilidades do «coração humano» («ser misericordiosos»), não revelarão talvez, na mesma perspectiva, a profundidade do mistério de Deus: isto é, aquela imperscrutável unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em que o amor, contendo a justiça, dá origem à misericórdia, a qual, por sua vez, revela a perfeição da justiça?
É nesta mesma tonalidade que nos fala o Papa Francisco: “Se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia. O Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis. Continuam a ressoar de grande atualidade estas palavras do santo bispo Crisóstomo: «Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm o que vestir, nem O honres aqui no tempo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez» (Hom. in Matthaeum, 50, 3: PG 58) (Mensagem do santo padre Francisco para o dia mundial dos pobres).
Conclusão
São Francisco, intuiu muito bem a realeza universal de Cristo por ocasião de seu encontro com o Crucificado de São Damião. Por isso, exultante e jubiloso, vivia proclamando que era “o arauto do grande Rei” (1C 16). Mais adiante, numa conversa familiar com Cristo, recebeu dele a seguinte revelação: “Francisco, dirás isto ao Papa: uma mulher pobrezinha, mas formosa, morava num deserto. Um rei apaixonou-se por ela por causa de sua grande formosura; desposou-a todo feliz e teve com ela filhos belíssimos. Quando já estavam adultos e nobremente educados, a mãe lhes disse: ‘Não vos envergonheis, meus queridos, porque sois pobres, pois sois todos filhos daquele grande rei. Ide com alegria para sua corte, e pedi-lhe tudo que precisais’. Surpresos e felizes por ouvirem isso e orgulhosos por saberem que eram de linhagem real, e prevendo que seriam os futuros herdeiros, consideraram riqueza toda sua pobreza” (2C 16).
Além do mais, a solenidade de Cristo rei do universo, neste momento crítico do relacionamento do homem com as demais criaturas, nos leva a recordar as exortações do nosso Papa Francisco: “sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LS 89). E mais adiante insiste: “Não é por acaso que São Francisco no cântico onde ele louva a Deus pelas criaturas acrescenta o seguinte: ‘Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor’. Tudo está interligado. Por isso exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unido ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade” (LS 91).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, OFM
O Crucifixo de São Damião
O Crucifixo de São Damião foi pintado no século XII por um desconhecido artista da Úmbria, região da Itália. A pintura é de estilo romântico, sob clara influência oriental: o pedestal sobre o qual estão os pés de Cristo pregados separadamente; e de influência siríaca: a barba de Cristo; a face circundada pelo emoldurado dos cabelos; a presença dos anjos e cruz com a longa haste segurada na mão, por Cristo (só visível na pintura original), no alto, encimando a cruz.
O Crucifixo original de São Damião está guardado com grande zelo pelas irmãs Clarissas, na Basílica de Santa Clara de Assis, e é visitado por estudiosos, devotos e turistas do mundo todo. É um monumento histórico franciscano e universal.
Outros dados
- Sem o pedestal, o Crucifixo original mede dois metros e dez centímetros de altura e um metro e trinta centímetros de largura.
- A pintura foi feita em tela tosca, colada sobre madeira de nogueira.
- Naquele tempo, nas pequenas igrejas, o Santíssimo não era conservado, isto é, a Eucaristia não era guardada, mas, consumida no dia. Por isso, supõe-se que Crucifixo foi pendurado no ábside sobre o altar da capela, no centro da Igreja
- Provavelmente o Crucifixo permaneceu na Igreja de São Damião até que as Irmãs Pobres, em 1257, o levaram consigo à nova Basílica de Santa Clara. Guardaram-no no interior do coro monástico por diversos séculos. No ano de 1938, a artista Rosária Alliano restaurou o Crucifixo com grande perícia, protegendo-o inclusive contra qualquer deterioração.
- Desde 1958 ele está sobre o altar, ao lado da capela do Santíssimo, na Basílica de Santa Clara, protegido por vidro.
Descrição detalhada da pintura
Descobre-se, à primeira vista, a figura central do Cristo, que domina o quadro pela sua imponente dimensão e pela luz que sua esplêndida e branca figura difunde sobre todas as pessoas que o circundam e que estão todas vivamente voltadas para Ele. Esta luz vivificante que brota do interior de sua Pessoa (Jo, 8,12) fica ainda mais destacada pelas fortes cores, especialmente o vermelho e o preto.
Também impressiona este Cristo ereto sobre a cruz e não pendurado nela, com os olhos abertos, olhando o mundo.
Apresenta ainda uma auréola de glória com a cruz triunfante oriental em vez de uma coroa de espinhos, porque tornou-se vitorioso na paixão e na morte.
Aparecem os sinais de crucificação e as feridas sangrentas mas o sangue redentor se derrama sobre os anjos e santos (sangue das mãos e dos pés) e sobre São João (sangue do lado direito).
Cristo se apresenta vivo, ressuscitado (Jo 12,32), de pé sobre o sepulcro vazio e aberto (indicado pela cor preta), visível por trás. Com as mãos estendidas, Cristo está para subir ao céu (Jo 12,32).
A inscrição acima da cabeça de Cristo, “Jesus Nazarenus Rex Judaeorum” Jesus Nazareno Rei dos Judeus é também própria do Evangelho de João.
Sobre a inscrição, está a ascensão em forma dinâmica, na figura do Cristo ascendente, com o troféu da cruz gloriosa na mão esquerda (só visível na pintura original) e com a mão direita para a mão do Pai, no céu.
Do alto, a mão direita do Pai acolhe o seu Filho, circundado dos anjos (e santos) na glória celeste.
As cores vermelha e púrpura são símbolos do divino; o verde e o azul, do terrestre. Para “ver” bem o conjunto da pintura, deve-se realmente parar diante do Crucifixo pois, ordinariamente, olha-se a imagem somente, de longe, como “turistas”.
À direita do corpo de Cristo, aparecem as figuras de Maria e João, intimamente unidas, enquanto Maria indica o discípulo predileto com a mão direita (Jo 19,26). À esquerda, estão as duas mulheres, Maria Madalena e Maria de Cléofas, primeiras testemunhas da ressurreição (Jo 19,25).
E, embora Maria, à direita e Maria Madalena, à esquerda, ergam a mão direita no rosto em sinal de dor, nenhuma das outras pessoas próximas, manifesta expressão de sofrimento profundo mas uma adesão cheia de fé ao Cristo vitorioso, Salvador.
À direita das duas mulheres vê-se o centurião com a mão erguida, olhando para o Crucifixo. Com esse gesto está a dizer: “Verdadeiramente este é o Filho de Deus”.
Sobre os ombros do centurião aparece a cabeça de uma pessoa em miniatura, cuja identidade se discute: poderia ser o filho do centurião, curado por Jesus (Jo 4,50) ou um representante da multidão ou ainda, o autor desconhecido da pintura.
Aos pés de Maria e do centurião, vê-se o soldado chamado Longino que, pela tradição, com a lança traspassa o lado de Jesus e, o portador da esponja, chamado de Estepatão, segundo a tradição (Jo 19,29). Ambos estão voltados para o Crucifixo.
Debaixo das mãos de Jesus, à direita e à esquerda, encontram-se dois anjos com as mãos erguidas, em intenso colóquio. Parecem anunciar a ressurreição e ascensão do Senhor.
As duas pessoas, à extrema direita e esquerda, parecem anjos ou talvez mulheres que acorrem ao sepulcro vazio.
Aos pés de Jesus a pintura original encontra-se muito deteriorada. É provável que seja: São Damião, São Rufino, São João Batista, São Pedro e São Paulo. Acima da cabeça de São Pedro, está a figura do galo (só visível na pintura original), a lembrar a negação de Pedro a Cristo (Jo 13,38; 18, 15-27).
As pessoas aos pés de Jesus têm a cabeça erguida para o alto, expressando a espera do retorno glorioso do Senhor, no juízo.
Deste Crucifixo descrito em detalhes, Francisco teve uma inspiração “decisiva” para a sua vida, diz Caetano Esser. Passamos a descrevê-la porque é deste fato que se originou a admiração que hoje temos ao Crucifixo de São Damião.
O Crucifixo fala a Francisco
O jovem Francisco encontrava-se numa crise espiritual, cheio de dúvidas e trevas. “Conduzido pelo Espírito”, entra na igrejinha de São Damião, onde se prostra, súplice, diante do Crucifixo. Tocado de modo extraordinário pela graça divina, encontra-se totalmente transformado. É então que a imagem de Cristo Crucificado lhe fala: “Francisco, vai e repara minha casa que está em ruína.
Francisco fica cheio de admiração e “quase perde os sentidos diante destas palavras”. Mas logo se dispõe a cumprir esse “mandato” e se entrega todo à obra, reconstruindo a igrejinha. Depois pede a um sacerdote, dando-lhe dinheiro, que providencie óleo e lamparina para que a imagem do Crucifixo não fique privada de luz, mas em destaque naquele santuário.
A partir de então, nunca se esqueceu de cuidar daquela igrejinha e daquela imagem.
Francisco parecia intimamente ferido de amor para o Cristo Crucificado, participando da paixão do Senhor, de quem já trazia os estigmas no coração e mais tarde, em 1224, receberia as chagas do Cristo em seu próprio corpo.
Segundo Santa Clara, está visão do Crucifixo foi um êxtase de amor radiante e impulso decisivo para a conversão de Francisco.
Entre os estudiosos ainda existe uma dúvida a ser esclarecida: ao ouvir o Cristo do Crucifixo, Francisco pensa na igrejinha material de São Damião. Mas nada impede de se pensar que se trata do “templo de Cristo no coração de Francisco e nos corações dos homens”
Enfim, a própria oração de Francisco diante do Crucifixo de São Damião sugere antes a reparação “espiritual” da casa do Senhor, crucificado no coração.
Tanto que ele pede especialmente pelas três virtudes teologais (fé, esperança e amor) para poder cumprir esse “mandato” de Cristo.
Por Frei Vitório Mazzuco