Santa Clara, Doutora da Igreja?

fonte: franciscanos.org

Carta da Conferência da Família Franciscana do Brasil

Santa Clara, Doutora da Igreja?

Brasília, 08 de agosto de 2019

No findar do dia, quando o sol está quase se pondo, o trabalhador faz o arremate dos feitos a ele pedidos. Assim, o Conselho Diretor de nossa Família, findando os trabalhos a ele confiado pelos irmãos e irmãs na última Assembleia Geral, ousou encaminhar ao Papa Francisco o pedido para que ele declare Santa Clara de Assis Doutora da Igreja, com o título de Doutora da Pobreza de Jesus!

Doutor ou Doutora da Igreja é um título dado a um santo/a cuja doutrina é sólida e capaz de conduzir às pessoas ao coração de Deus.

Neste sentido, nosso pedido não deixa de ser inusitado, pois Santa Clara não escreveu um tratado teológico sobre a pobreza de Jesus. Todavia, na Regra, no Testamento e no Privilégio da Pobreza encontramos algo novo, belo e de grande frescor.

Enquanto a pobreza evangélica, nas Ordens religiosas de então, tinha como modelo a comunidade dos Atos dos Apóstolos, a pobreza em Santa Clara, herança de Francisco, é consequência de sua identificação com o Cristo Pobre. Portanto, uma pobreza na qual a origem é a pessoa de Jesus e cuja consequência de seu seguimento.

A firmeza de Clara diante da recusa da Igreja em aprovar sua Regra nos dá a verdadeira dimensão de sua clarividência, nutrida pela contemplação do Evangelho e do contato com os pobres que acorriam a São Damião.

Mostrou-se ávida aprendiz da pobreza de Jesus e neste itinerário elegeu a Oração dos Salmos, também conhecida como Oração dos Pobres, e o contato real com os pobres que buscavam São Damião como refúgio na dor.

É interessante notar que em todos os salmos encontramos um pobre que grita, que suplica, que chora, que implora, que reza, que bendiz, que louva, que canta sua confiança em Deus. Ele é o único que pode socorrer, acolher, fazer justiça, amparar os pobres. Clara teve esta fina intuição, por isso os Salmos tornaram-se uma fonte límpida para cultivar a pobreza dos pobres. Se os Salmos, tornaram-se reveladores da espiritualidade dos pobres de Javé, imaginemos com que contentamento ela os recebia em São Damião. Para ela, eles não eram pedintes que amolavam o sossego da cláusula, mas eram os mestres dos quais se aprendia o modo de ser pobre.

O não querer propriedades e nem uma clausura rígida revela sua genuína compreensão do Cristo e sua pobreza. Uma pobreza cheia de ternura, calor, perfume e caridade. Em nada contaminada pelo rigorismo estéril e frívolo.

Com a longa demora da aprovação da Regra, ela, para garantir a vivência da pobreza de Jesus, buscou e conseguiu o Privilégio da Pobreza e mais tarde a reconfirmação do mesmo. O Privilégio da Pobreza que, noutras palavras, este pode ser chamado de o ‘privilégio de não ter privilégio.’ Afinal, Jesus sendo Deus abriu mão deste privilégio e em tudo se fez um de nós (Fl 2). Sendo divino, assumiu nossa humanidade no ventre da Senhora Pobrezinha. Viveu em Nazaré, e como Nazareno ficou conhecido, caminhou pela Galileia, o lugar dos últimos, e elegeu a Galileia para ser encontrado após a Ressurreição.

No Testamento assegura ainda a necessidade de as irmãs não abrirem mão da radicalidade da entrega ao Senhor, único amor de um coração consagrado.

Nas cartas a Inês de Praga, podemos perceber a eloquência de Clara diante da pobreza de Jesus e seu desejo ardente em segui-la com radicalidade.

No pontificado de Francisco, reencontramos o tema da pobreza, dos pobres e em contrapartida, tudo aquilo que é uma ameaça ao Evangelho: poder, riqueza, culto ao deus dinheiro, clericalismo, fechamento. Nas entrelinhas de seus documentos, homilias, entrevistas, entramos em sintonia com o tema e a realidade dos pobres e a necessidade de redescobrirmos o significado de uma vida pobre.

Em março de 2020, acontecerá em Assis um encontro aberto a todos os economistas do mundo que pensam uma economia de inclusão, diante dos desafios impostos pela economia da exclusão, também chamada de economia neoliberal, que domina o mundo e nos encaminha a humanidade para um fracasso total.

O próprio Papa desejou que este encontro seja realizado em Assis, por causa do outro Francisco, o Poverello.

Pensar o tema economia tendo como inspiração para o mundo São Francisco de Assis, nos faz chegar a Clara, sua discípula. No tema da pobreza, parece que Clara tenha superado o mestre, tanto pela clareza, quanta pela radicalidade diante da igreja que queria obrigar-lhe outro caminho.

Talvez seja atrevimento demais de nossa parte pedir ao Papa este obséquio. Mesmo assim, estamos seguros da intuição que nos moveu neste intento.

Enquanto aguardamos a resposta de Roma, lembrando que Roma é eterna, parece que lá os relógios não tem ponteiros e o calendário não tem dias e nem anos, façamos o exercício de reler Santa Clara, com esta chave de leitura: Clara, Doutora da Pobreza de Jesus! Indico ainda dois outros exercícios: redescobrir os Salmos como a Oração dos Pobres e aproximarmos dos pobres como mestres.

Será um caminho cheio de belas descobertas e capaz de aquecer o coração.

Frei Éderson Queiroz, OFMCap
Presidente da Conferência da Família Franciscana do Brasil – CFFB