Com pressão de ruralistas, e sem nenhum estudo ambiental, Bolsonaro revoga preservação da Amazônia e Pantanal, diante da expansão da lavoura. Medida amplia ameaça de desmatamento e queimadas – e a pasta do Meio Ambiente sequer se manifestou.
Por Caio de Freitas Paes, na Agência Pública
Em meio à escalada da pandemia, a Justiça Federal no Amazonas impôs uma derrota ao governo de Jair Bolsonaro. No dia 20 de abril, a 7a Vara Ambiental e Agrária no estado novamente proibiu financiamentos públicos para o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia, no Pantanal e na Bacia do Alto Paraguai, onde nascem os principais rios pantaneiros.
A decisão exige que a União apresente, em até 180 dias, estudos ambientais que sustentam a liberação — o prazo termina em outubro. Na sentença, a juíza da 7a Vara Federal foi categórica. Jaíza Pinto Fraxe disse que liberar o crédito para novas lavouras e usinas “sem qualquer estudo científico de viabilidade é apostar na certeza de novos desastres e pragas ambientais, sujeitando povos a genocídios ou massacres imprevisíveis”.
Agora, a tarefa do governo é apresentar os estudos de impacto ambiental que embasaram a liberação. Mas eles não existem. É o que documentos obtidos pela Agência Pública revelam.
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“Uma coisa tem de ficar clara: sem análises ambientais, o decreto que revoga a moratória perde de vez seu efeito, simplesmente”, diz a procuradora Ana Carolina Haliuc Bragança, do Amazonas. Ela coordena a Força-Tarefa Amazônia dentro do Ministério Público Federal (MPF) e trabalhou na ação civil pública acatada pela Justiça.
A moratória a que se refere a procuradora é o chamado zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar, instituído em setembro de 2009. Por meio dele foi realizado um mapeamento em todo o país, estabelecendo quais regiões eram aptas à expansão da lavoura da cana com crédito rural público. A moratória protegia, assim, Amazônia e Pantanal enquanto mirava novos mercados para o açúcar e o etanol brasileiros, mais sustentáveis porque não ameaçavam a vegetação nativa desses biomas.
Outros procuradores da República também defendem que o cultivo de cana pode incentivar conflitos e grilagens – problemas que já assolam tanto a Amazônia quanto o Pantanal. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade de São Paulo (USP) alertam que a medida do governo implica mais desmatamento, queimadas e até mesmo risco de seca em outras regiões. Segundo o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, Marcos Buckeridge, uma trágica reação em cadeia poria em risco a produção de alimentos em grande parte da América do Sul.
“Não há a possibilidade de resultados negativos”
A canetada de Bolsonaro baseou-se em um conjunto de quase 200 páginas de análises jurídicas, ofícios e relatórios. O material revela pressões de canavieiros, de companhias estatais e dos governos da Bahia e de Roraima, com o Ministério do Meio Ambiente apartado dos debates. Para a pasta de Tereza Cristina (DEM-MS), a cana era vista até como solução para as mudanças climáticas.
Procurada pela Pública, a Advocacia-Geral da União (AGU) defende a “legalidade do decreto” e disse que vai cumprir o prazo de 180 dias para apresentar estudos ambientais sobre a medida.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento escolheu a moratória como um de seus primeiros alvos em 2019. Era um antigo pedido da Frente Parlamentar Agropecuária, reduto de Tereza Cristina. Sem demora, a pasta reuniu justificativas econômicas e políticas para autorizar crédito para o plantio em todo o país. A Agricultura manteve contato com a AGU e com o Ministério da Economia para formular o Decreto 10.084, assinado em 5 de novembro.
O desmonte da moratória se consolidou logo nos primeiros seis meses de governo, elaborado pelo coordenador-geral de Cana-de-Açúcar e Agroenergia, Cid Jorge Caldas, e pelo diretor do Departamento de Comercialização e Abastecimento, Silvio Farnese. Secretário de Política Agrícola do ministério e superior de Farnese, Eduardo Sampaio Marques também participou das atividades que sustentaram o decreto de 5 de novembro.
Assinado pelos três no dia 30 de abril, um parecer de mérito sobre o decreto revela como danos ambientais foram minimizados pelo governo. De acordo com o documento, financiar o cultivo não traria consequências ou efeitos colaterais, nem custos ou despesas ao orçamento público e à população. Ignoraram, por exemplo, possíveis gastos com reforço na fiscalização ambiental ou sobrecargas no sistema de saúde, em caso de queimadas ilegais.
A única despesa prevista seria um eventual aumento do preço do etanol se a cana não fosse liberada. Não há cálculos sobre quanto seria o aumento nem em quanto tempo se daria. Questionado no relatório sobre como reverter “danos ou resultados insuficientes” por conta da medida, o Ministério da Agricultura garantiu que “não há a possibilidade de resultados negativos”.
Para a Agricultura, leis aprovadas nos últimos anos fornecem proteção ambiental o bastante. Foram listados o Código Florestal, o RenovaBio e o Zoneamento Ecológico-Econômico como “garantias de preservação” aos ambientalistas. “Os parâmetros que nortearam a elaboração do ZaeCana [Zoneamento Agroecológico] não mais se sustentam”, afirmavam os servidores, enquanto o rotulavam como “defasado”.
Para Marcos Buckeridge, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol e docente na USP, essa é uma visão equivocada. À Pública, ele disse que “políticas como o RenovaBio podem, sim, ajudar, mas ainda não se sustentam”. “Teríamos de esperar sua total implantação, analisar os resultados e, só daí em diante, pensar em mudanças na moratória”, afirma.
Para o ministério de Tereza Cristina, não havia dúvidas quanto aos benefícios trazidos pela cana. Na verdade, a pasta defende até que, sem a moratória, o Brasil estaria mais próximo de honrar seus compromissos com a agenda de mudanças climáticas.
“Para que o Brasil cumpra as metas do Acordo de Paris há necessidade de duplicação na produção e uso de etanol como combustível até 2030. Haverá necessidade de investimento em novas unidades produtoras além de modernização do parque industrial existente”, afirmam os servidores no parecer de 30 de abril.
No conjunto de documentos obtidos pela reportagem, há apenas uma breve menção ao Ministério do Meio Ambiente, pasta que, comandada por Ricardo Salles, poderia responder sobre como a expansão das lavouras influencia a agenda climática.
A menção data de 1o de julho de 2019, quando a consultora jurídica Beatriz Monzillo de Almeida sugeriu “a necessidade de se dar ciência deste processo” ao Meio Ambiente, pasta corresponsável pela moratória em 2009. No mesmo dia, o advogado da União Maximiliano Ferreira Tamer deu sinal verde para a liberação da cana. Não houve nenhuma manifestação ou relatórios ambientais até o decreto.
“Trabalhamos para melhorar a produtividade da cana, fazer com que renda mais em áreas cada vez menores. Mitigaremos as mudanças climáticas por esse caminho, não abrindo nossas florestas e ameaçando sua biodiversidade, como sugere o descarte da moratória”, diz Marcos Buckeridge.
Procurado, o Ministério da Agricultura disse que “a revogação do decreto 6.961/2009 atende a uma solicitação de diversos órgãos e entidades do setor”. Não respondeu, porém, por que não foram analisadas as consequências ambientais da liberação, nem por que a medida ajudaria a combater as mudanças climáticas. O Ministério do Meio Ambiente não se manifestou.
Cana pode causar desmatamento, grilagem e secas na América do Sul, dizem pesquisadores
Abrir a Amazônia e o Pantanal à cana representa um imenso risco para a biodiversidade mundial. Haveria novos desmatamentos, conflitos para a abertura de áreas de cultivo, mais queimadas e violência contra os povos da floresta. É o que preveem especialistas que monitoram o tema.
O pesquisador Lucas Ferrante, do Inpa, expôs os riscos ao MPF ainda em novembro de 2019. Com um dos ganhadores do Prêmio Nobel da Paz em 2007, o pesquisador do Inpa Philip Fearnside, Lucas já havia analisado os efeitos colaterais da cana em outras regiões. A partir dali, o MPF entrou com a denúncia, aceita meses depois pela Justiça Federal.
“Sabemos que o dano não fica restrito às lavouras porque se estende às florestas adjacentes. É o chamado ‘efeito de borda’, que pode penetrar até 1 quilômetro dentro de áreas florestais, ampliando desmatamento e outros impactos à fauna e à flora”, diz Ferrante.
Com a cana tomando espaço das matas nativas há redução na oferta e na produção de água nas florestas. Acrescenta-se ao desmatamento já em alta, pela constante expansão de monoculturas como o milho e a soja. Rapidamente a floresta se aproximaria do chamado “ponto de não retorno”, estimado por pesquisadores em 20% de perda de sua cobertura original.
Um dos resultados dessa trágica reação em cadeia seria a extinção dos chamados “rios voadores”. São os fluxos de chuva, vindos da Amazônia, que rumam a outros pontos do país e do continente, responsáveis por manter produtiva a agricultura no Centro-Oeste, Sudeste e Sul, por exemplo.
Para o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, o decreto de Bolsonaro é uma pá de cal sobre um esforço de diferentes gerações. Buckeridge disse que a moratória de 2009 é um instrumento “completo e complexo”, fruto da união entre cientistas em busca da autonomia energética, produtividade agrícola e proteção ambiental no país.
“Perdemos o carbono capturado pelas florestas, perdemos as riquezas contidas em sua biodiversidade e também colocamos a agricultura na América do Sul em risco. Permitir o plantio nos termos que foram propostos é uma burrice atroz”, diz.
Derrubando a moratória, canavieiros miravam os cofres públicos
A insistência de usineiros na liberação da cana nos últimos dez anos passa uma falsa impressão: sem o cultivo na Amazônia e no Pantanal, o Brasil não conseguiria evoluir sua matriz energética de biocombustíveis. As pesquisas que embasaram o zoneamento agroecológico da cana refutam a tese.
Ao longo da elaboração da moratória, órgãos como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola (Embrapa), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Ministério do Meio Ambiente descobriram que não faltam terras para expandir a produção. Em 2009, a área apta a receber novas lavouras equivalia a mais que o dobro da Itália.
“O Brasil dispõe de cerca de 64,7 milhões de hectares de áreas aptas à expansão do cultivo”, afirmavam as equipes dos seis ministérios envolvidos na pesquisa. Desses, 19,3 milhões – quase o tamanho de Senegal – possuem alta aptidão para a cana-de-açúcar. “Estimativas demonstram que o país não necessita incorporar áreas novas e com cobertura nativa ao processo produtivo, podendo expandir sem afetar diretamente as terras utilizadas para a produção de alimentos”, conclui a pesquisa.
Para canavieiros, o calcanhar de Aquiles da moratória era o rígido controle sobre financiamentos. Ficou proibido o investimento público na expansão do cultivo e na criação de usinas na Amazônia, na Bacia do Alto Paraguai e no Pantanal.
O torniquete financeiro atingiu outras regiões, especialmente o Nordeste. O decreto de 2009 impedia fomento a projetos que dependessem de irrigação plena – quando a lavoura precisa de 100% do suprimento de água por meio dessa técnica – e em terras com leve inclinação, suficiente para exigir o trabalho de boias-frias.
A barreira econômica fez com que a Secretaria de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária da Bahia e a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) pedissem a derrubada da moratória logo no início de 2019, quando Bolsonaro assume a Presidência. O governo baiano enviou ofício à ministra Tereza Cristina em fevereiro, e a Codevasf, em março.
Jair Bolsonaro instaurou um limbo jurídico ao simplesmente anular a moratória para atendê-los, dizem procuradores do MPF. “Entendemos que cabem atualizações [na moratória] graças aos avanços tecnológicos, como no caso das técnicas de irrigação. Mas isso poderia ser feito com ajustes na lei, não com seu cancelamento”, afirma Ana Carolina Bragança.
“O novo decreto não criou nada: não ampliou ou reduziu autorizações para o plantio, apenas retirou o ordenamento jurídico que vigorava. Não podemos ignorar uma atitude dessas diante de um tema tão sensível, em um momento tão delicado”, diz o procurador da República Igor da Silva Spíndola. Ele é um dos signatários da ação civil pública que retomou a moratória.
O coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol concorda. Para ele, atropelos em busca de verbas públicas ameaçam conquistas de todo o setor nos últimos dez anos. “[Sem a moratória] Fechamos as portas para mercados importantes, preocupados com a sustentabilidade, como Europa e Estados Unidos… É um custo muito alto”, diz. Por mais que haja compradores menos rigorosos, como China e países do Oriente Médio, as perdas não compensam, segundo Buckeridge.
Há pouco tempo, associações influentes de canavieiros também apoiavam a moratória. Em março de 2018, quando um projeto de lei do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) atentou contra a medida, a União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica) foi contra. Junto aos membros da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, alegou que a liberação mancharia a boa reputação do açúcar e biocombustível brasileiros, entre outros motivos.
À revista Época, defendeu uma expansão de forma sustentável, porque “o Zoneamento Agroecológico estabelece que a cana poderá ocupar, no máximo, 7% das terras agricultáveis do país. Ou seja, seis vezes mais do que o atual, isso sem contar com ganhos de produtividade ou avanço sobre biomas sensíveis”.
Mas a maré virou desde a eleição de Jair Bolsonaro. Com a pressão de outros grupos, como a Federação dos Plantadores de Cana do Brasil e a União Nordestina dos Produtores de Cana, a Unica mudou de ideia. No dia seguinte à liberação, divulgou uma nota dizendo que a moratória “teve seu papel no passado, ficou justamente lá, um passo atrás”.
“Quem planta [cana] com seriedade não apoia essa medida, não faltam terras nem boas condições em outras áreas. Parece até um decreto feito sob medida para grileiros e empresas que não se preocupam com as consequências”, afirma Buckeridge.
À Pública, o Ministério da Agricultura disse que “com a revogação do decreto de 2009, o que ocorre é a permissão para que qualquer projeto, após receber a aprovação dos órgãos ambientais estaduais, possa ser avaliado por bancos oficiais de crédito”. “Isso, por si, não garante que o projeto receba financiamento, caso a instituição financeira entenda que o projeto não é viável”, complementa a pasta.