VIGÍLIA PASCAL Ano A 11.04.2020

VIGÍLIA PASCAL

Ano A

11.04.2020

Tema-mensagem: Jubilosos e agradecidos, na Ressurreição e na Vitória do Senhor sobre a morte e o pecado, celebremos nossa vitória

Introdução

A maior festa da Igreja – a Páscoa do Senhor – se abre com uma Vigília que poderia ser chamada, também, de “Vigilância”: a “Vigilância pascal”. A vigilância da passagem, do êxodo, da visita.

Sempre que aguardamos alguém, ou algo importante, precisamos andar com as cinturas cingidas, as lâmpadas acesas e os calçados nos pés (Lc 12,35). Para criar este estado de vigilância contínua, pois o Ressuscitado, o novo esposo da humanidade, pode chegar e passar por nós à hora em que menos esperamos, é que a Igreja se reúne nesta noite santa. Jubilosos, os fiéis ouvem e meditam as obras admiráveis das inúmeras e maravilhosas passagens de Deus na história da humanidade e renovam suas promessas batismais.

  1. O grande anúncio da exultação universal

A Vigília começa fora da igreja com a bênção do fogo novo, o fogo do desejo (Cf. Oração), da Paixão de Deus pelos seus amados filhos, revelado em seu Filho muito querido que deu sua vida por nós, morrendo na Cruz. Por isso, à bênção do fogo segue a preparação do círio, símbolo maior de todo o tempo pascal. Para configurar Cristo e seu mistério pascal o sacerdote incide no círio os traços da Cruz com cinco cravos, recordando as cinco chagas, com estes expressivos anúncios: Cristo ontem e hoje, Princípio e Fim, Alfa (primeira letra do alfabeto grego) e Ômega (última letra do alfabeto grego), a Ele o tempo e a eternidade, a glória e o poder pelos séculos sem fim. Alfabeto pode ter o significado, aqui, de língua, fala, comunicação, busca do sentido da vida. E quem mais e melhor para significar todo esse acervo de conquistas e bênçãos senão Jesus Cristo crucificado-ressuscitado!?

Tem início, então a procissão. Nesta noite santa, a Igreja, que entra no templo escurecido, faz a experiência de passar da escuridão das trevas do pecado, isto é, do afastamento de Deus, para a alegria e o júbilo de poder participar do fulgor da graça do reencontro com Deus, através  da Ressurreição do Senhor. É o novo sentido de nossa vida e de toda a humanidade irrompendo do sepulcro da escuridão da morte; morte de uma vida dominada pela tristeza do isolamento individualista, egocêntrico para a alegria da “comungação” com Deus e com todas as suas criaturas. É a noite em que a humanidade, perdida e isolada, ensimesmada, de Adão e Eva, começa a experiência da familiaridade universal, de sua pertença a Casa comum recriada por Deus através de seu Filho Jesus Cristo crucificado-ressuscitado.

A abertura da Vigília se conclui com o famoso e não menos maravilhoso canto do “Exultet”. A Igreja canta, proclama alto e bom som que em vão teríamos nascido, se não fôssemos redimidos. Admirável é a misericórdia do Pai, inestimável o seu amor, a sua caridade: para salvar os servos, entregou à morte o Filho. Coisa nunca vista! Na alegria e na luz desta noite até mesmo o pecado aparece como necessário e a culpa como ditosa: Ó feliz culpa que nos mereceu tal e tão grande Redentor! Verdadeiramente bem-aventurada é esta noite, pois somente ela mereceu saber a hora, em que Cristo ressurgiu da morte.

Cristo, retornando dos infernos da soberba, do ódio, da vingança – Cruz – de um mundo sem Deus, sem seu Criador, sem irmãos, inaugura este dia eterno, o dia da nova criação, do novo céu e da nova terra; um mundo, uma humanidade de irmãos porque se assenta num Deus que, para ser “Deus conosco”, não poupou seu próprio Filho. Como, então, não nos dará juntamente com Ele, e de graça, todas as coisas? (Rm 8,32).

  1. Liturgia da Palavra

Em nenhuma outra celebração, a Igreja se mostra tão pródiga em proclamar as maravilhas do Senhor como na celebração desta noite. Além do Evangelho, oito leituras, sete do Antigo e uma do Novo Testamento, vão lançando aos poucos sementes da Boa Notícia da Vida nova  – o Evangelho – na mente dos fiéis e no mundo inteiro. As leituras do Antigo Testamento podem ser agrupadas assim: as três primeiras tratam da primeira criação do homem, do primeiro Povo de Deus e da primeira aliança de Deus com seu Povo eleito. As quatro seguintes testemunham a fidelidade de Deus diante das contínuas e inúmeras infidelidades de seu Povo.

Leituras do Antigo Testamento

  • A primeira criação (Gn 1,1-2,2)

As grandes leituras desta noite começam com a mais importante de todas as páginas do Antigo Testamento: a narrativa da Criação. Dois insistentes testemunhos, a modo de um leitmotiv de uma grande sinfonia ou epopeia, perpassam todos os versos deste capítulo.  Primeiramente, por oito vezes, o autor testemunha: Deus disse: “Faça-se!” e as criaturas e o próprio homem foram aparecendo do nada. E, cada vez, depois de cada criação, outro testemunho: E Deus viu que era bom. E, quando termina, com a criação do homem, a admiração do próprio Deus chega ao seu auge: E viu que era muito bom (Gn 1,31).

O objetivo da narrativa é muito claro. Primeiramente proclamar que o mundo, a criação toda, portanto, não é fruto do acaso, muito menos do homem ou de possíveis leis da natureza, mas de uma ação bem pensada, desejada, querida e amada por Deus.  Nada do que existe, até mesmo um grãozinho de areia só existe porque vem do ou está no pensamento, no desejo de Deus.

Em segundo lugar, é, também, para proclamar que o nosso Deus é como fonte. Como esta, cuja essência é jorrar e fazer aparecer a água pura, cristalina e fecunda, assim é também nosso Deus: de sua essência ou identidade todas as criaturas nascem limpas, puras, boas. Se alguma maldade aparecer não pode jamais ser atribuída a Deus, mas aos homens. 

Assim, desde o princípio, no coração de cada criatura, principalmente do homem, está gravada a imagem de um Criador que a ama. Esta marca deve, pois servir, também, como seta que dá o rumo, o sentido de toda a sua história, como o primeiro e único ato de fé do homem: crer que somos desejados, amados, criados por Deus e que tudo o que sai deste seu desejo é bom porque Ele é bom.

Mas, apesar de tudo isso, na Oração que segue, a Igreja pede a graça de compreender que a nova criação inaugurada pelo sacrifício de Cristo na Cruz ultrapassa em grandeza a criação do mundo realizada no princípio (Cf. Oração). Ou seja, o tão grandioso e admirável espetáculo da primeira criação é apenas uma sombra, um esboço da nova criação inaugurada pelo sacrifício de Cristo.

São Francisco, contemplando o inaudito espetáculo diário da primeira criação recriada, ainda mais bela e grandiosamente pelo Pai, através de seu Filho muito amado, Jesus Cristo, que se entrega todo à vontade do Pai até a morte e morte de cruz, não se continha. Por isso, compôs e rezava em todas as Horas do dia e da noite os “Louvores para todas as Horas”, começando assim:

Ó santíssimo Pai-nosso, que estás nos Céus…

Santo, santo, santo Senhor Deus todo-poderoso,

que és, que era e que virás:

E louvemo-lo e super-exaltemo-lo pelos séculos.

….

Digno é o Cordeiro, que foi imolado, de receber

a virtude e a divindade, a sabedoria e a honra,

a glória e a bênção:

E louvemo-lo e super-exaltemo-lo pelos séculos  (LH).

  • Da origem do primeiro Povo de Deus (Gn 22,1-18)

A segunda leitura nos leva a recordar e a celebrar o princípio do primeiro ou antigo Povo de Deus. Princípio como raiz, fonte e não apenas como dado histórico. Segundo esta leitura, o Povo de Deus nasce de um inaudito ato de fé e de obediência de Abrão ao chamado de Deus. Por isso, Abraão é posto aqui como o grande pai de todos os crentes. Isto significa que seu ato de fé deverá definir o futuro de todos aqueles que irão pertencer à sua descendência. Entre esses o descendente maior e definitivo, o Filho único de Deus, Jesus Cristo, prefigurado no filho único de Abraão Jacó e nele todos os seus seguidores.

Por isso, na Oração que segue esta leitura a Igreja reza: Ó Deus, pai de todos os fiéis, vós multiplicais por toda a terra os filhos de vossa promessa.

São Francisco, quando da visão do futuro de sua Ordem, fruto também ela desta antiga Promessa, se rejubila assim: Vi uma enorme multidão de homens vindo a nós e querendo viver conosco este gênero de vida e esta Regra de santa Religião… Vi que os caminhos pareciam apinhados de gente, vinda de quase todas as nações: vêm franceses, apressam-se espanhóis, correm alemães e ingleses e se adianta uma multidão enorme de outras línguas diversas (1C 27).

 

  • Da graça da libertação nasce e se forma o antigo Povo de Deus (Ex 14,15-5,1)

A terceira leitura, tirada do livro do Êxodo, recorda e celebra a grande libertação dos israelitas da escravidão do Egito, denominada de êxodo, saída, ou mais precisamente de páscoa, passagem. Israel, com esta narrativa, não pensa em apenas conservar uma simples lembrança histórica, mas expressar a nota essencial de sua auto compreensão: um Povo que foi salvo e será sempre salvo da escravidão por obra admirável e inaudita de Deus. Por isso, se compreenderá sempre como Povo de Deus. Daí, também, a conclusão: Então, Moisés e os filhos de Israel cantaram ao Senhor este canto… (Ex 15)

Israel sempre se considerou como nascido, formado no momento, isto é, a partir desta intervenção especial e extraordinária de Deus: a passagem da terra estranha e da escravidão egípcia para a terra da gratuidade, da libertação e, consequentemente, chamado para continuar lutando por ela, sabendo que só assim completará e consumará a obra de Deus. Assim, Israel de “Não-Povo”, passou a ser Povo: Povo de Deus.

Também São Francisco, mais tarde, ao ver-se rodeado de seguidores, ele, que não passava de um humilde e pobre pecador, implorava ao seu Deus compaixão. Arrebatado em êxtase, renovado em espírito, aparecia transformado em um novo homem. Voltou, então alegre, e disse aos irmãos: “Consolai-vos, caríssimos, e alegrai-vos no Senhor. Não vos entristeçais por parecerdes poucos nem vos desanime a minha simplicidade ou a vossa, porque, como o Senhor me mostrou na verdade, Deus nos vai fazer crescer como a maior das multidões e vai propagar-nos até os confins da Terra” [1C 28] 

 

  • Da infidelidade da esposa e da fidelidade do esposo (Is 54,5-14)

Enquanto as três primeiras leituras fazem a memória da fé e da obediência ao chamado de Deus como princípio do antigo Povo de Deus, as quatro que seguem, principalmente esta, de Isaias, recordam a atitude ou melhor,  a resposta do Senhor à inconstância de Israel: Podem os montes recuar e as colinas se abalar, mas a minha misericórdia não se apartará de ti, nada fará mudar a aliança da minha paz , diz o teu misericordioso Senhor (Is 54,10).

  • Da necessidade de voltar-se sempre de novo para o Senhor (Is 55,1-11)

A quinta leitura, tem como pano de fundo a situação de desgaste, de desmoralização dos israelitas devido à sua generalizada degradação. Degradação que, devido ao longo exílio em meio aos pagãos, tem sua origem nas contínuas infidelidades à aliança de Deus. Esta situação, porém em vez de uma vingança ou de um repúdio, encontra um Deus que, a modo de esposo fiel e amado, não cessa de implorar a Israel, sua esposa amada, para que volte o quanto antes para Ele. Exclamações como Vinde! Apressai-vos! Ouvi-me! Buscai o Senhor! Abandonai vossos caminhos! Voltai-vos para o Senhor!  perpassam toda esta leitura.

  • Aprender a viver da sabedoria como fonte da vida (Br 3,9-15.32-4,4)

O pano de fundo da sexta leitura, continua sendo as consequências sofridas por Israel no exílio ou por causa do exílio que, por sua vez, tem origem no seu desprezo e abandono à fidelidade de Deus. A pergunta que então o profeta se faz: “Que se passa contigo, ó Israel?” Ele mesmo dá a resposta: “Abandonaste a fonte da sabedoria!”

A partir de então, o profeta passa a uma série de exortações para que Israel volte a buscar a sabedoria, a fortaleza, a inteligência. No fim, com toda ênfase e quase explicitamente passa a proclamar que a Sabedoria é o próprio Deus, inserido em cada uma de suas criaturas bem como no livro dos mandamentos de Deus, na sua lei dada a Moisés e que permanece para sempre. Isso para os israelitas do exílio. Para nós esta sabedoria será o Espírito Santo que Cristo soprou sobre todas as criaturas no alto da Cruz quando deu seu último suspiro em profunda obediência e reverência à vontade do Pai. 

  • Uma água pura e um coração novo (Ez 36,16-17ª.18-28)

Das leituras do Antigo Testamento, a última é tirada do profeta Ezequiel. Ela vem fechar com chave de ouro o memorial da História da salvação do Antigo Testamento. Ezequiel, como nenhum outro profeta, nos conduz para as entranhas mais profundas de Deus. Israel havia manchado com sua conduta e suas más ações (Ez,36,16) a terra que o Senhor lhe havia dado, profanando seu santo nome.

Vem, então a resposta de Jahvé. Novamente, em vez de arrasar e terminar com aquela raça manda dizer pelo profeta: vou mostrar a santidade do meu grande nome que profanastes no meio das nações para onde fostes. Tudo o que então segue pode ser visto como uma belíssima visão profética da Oração do Pai Nosso, ensinada, mais tarde, por Jesus a seus discípulos.

A profecia se encerra com a promessa de uma purificação feita por uma água pura e de um espírito novo capaz de trocar um coração de pedra por um coração de carne. Ora, esta promessa terá sua realização plena com a vinda do Espírito Santo, doado por Jesus na Cruz e manifestado publicamente no dia de Pentecostes.

A partir de então, o convite à penitencia ou conversão passa a ser a melodia que vai soar no coração de todos os fiéis até o dia de hoje. Foi a partir do vigor desta mensagem que São Francisco e seus companheiros, por exemplo, iam pelo mundo como “peregrinos e forasteiros”, nada levando consigo, a não ser Cristo [Atos 4].

Também hoje, após muitos séculos de esquecimento, se não de todos, mas de uma grande parte dos cristãos, esta mensagem, a mais importante de toda a revelação e de toda a história da salvação, está sendo redescoberta e retomada pela Igreja, a começar pelo Vaticano II: O Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: ‘Toda renovação da Igreja consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação. […] Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem «fidelidade da Igreja à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo (EG 26).

 

Leituras do Novo Testamento

  • Incorporados em Cristo para uma vida nova (Rm 6,3-11)

Tudo o que se anunciou no Antigo Testamento acerca do surgimento de uma nova criação, de um novo Povo de Deus, realiza-se em plenitude e definitivamente em Cristo, mais precisamente pelo seu sacrifício, pela sua fé e obediência ao Pai na Cruz e pela graça da Ressurreição que o Pai lhe concede. Neste mistério o Pai reúne todo o passado, todo o presente e todo o futuro. Ele, o Filho do Homem e o Filho de Deus, o crucificado – é o ontem, o hoje e o sempre. Nele está o segredo, o desígnio do Pai de reunir todas as coisas do céu e da terra [Cf Ef 1,10]. Ele é o Reino da graça de modo que todo aquele que o aceita na fé e nas obras incorpora-se, também ele, neste novo Reino, neste novo Povo de Deus, nesta nova criação. É o que vem anunciado por Paulo na sua Carta aos Romanos proclamada nesta Vigília. Seu Corpo torna-se nosso corpo, sua alma, nossa alma, sua vida nossa vida. Ou ignorais, pergunta ele, que todos nós, batizados em Cristo, é na sua morte que fomos batizados?  (Rm 6,3) E conclui: Assim, também vós considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Jesus Cristo (Rm 6,11).

Assim, quem está incorporado a Cristo torna-se com Ele e como Ele “senhor” e não mais escravo. Senhor, porém com o não-poder humilde e inocente da cruz e não pelo poder soberbo, e orgulhoso do mundo. Aqui, reina o poder da justiça e da lei humana do “dou para que me dês” enquanto que no Reino de Cristo, da Cruz, impera a norma da gratuidade absoluta. Deus, Jesus Cristo e agora o cristão são senhores e por isso não obrigados a mais nada e a mais ninguém. Aqui não há pagamento, muito menos remuneração porque a própria pertença um ao outro é sua recompensa. É a lei do amor: O amor basta-se a si mesmo, em si e por sua causa encontra satisfação. É seu mérito, seu próprio prêmio. (São Bernardo).

  • O Senhor ressuscitou (Mt 28,1-10)

O Evangelho para a celebração da Vigília pascal para o Ano A é tirado de Mateus.

2.9.1. A ressureição princípio da nova criação

Mateus, começa dizendo, significativamente, que, depois do sábado, ao amanhecer do primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro.

A fala é alegórica e teológica. Depois do sábado e ao amanhecer do primeiro dia da semana significa não apenas um dia da semana, mas um contraponto: terminou a primeira criação e está começando a nova. Terminou o tempo em que imperava a lei e a soberba do homem e está começando o tempo da gratuidade do Espírito doado pela cruz e ressurreição de Jesus. Segundo Bonhoeffer, numa carta pascal, a Ressurreição é o “sim” de Deus ao Filho, a nós e a toda a criação. Mas, também e consequentemente, através do Filho do Homem, é o “sim” nosso e de toda a criação.   As leituras desta noite deixam ressoar a exultação desta nova humanidade nascida do novo Adão, do seu lado ferido, do sono de sua morte. O extraordinário se fez evento no ordinário do nosso dia a dia.

Não se trata, porém, de uma revivescência do que era antes de sua morte, semelhante à ressurreição de Lázaro. A ressurreição de Lázaro em nada mudou a estrutura da sua natureza de homem. Continuou sujeito à morte como antes. Pouco tempo depois, morreu de novo e definitivamente. A Ressurreição de Cristo é, acima de tudo, uma nova criação: princípio de um novo céu, uma nova terra, uma nova história, uma nova humanidade. Além do mais: “A Páscoa proclama um começo que já decidiu sobre o futuro mais longínquo. A ressureição diz-nos que a transfiguração gloriosa já começou” (Rahner). O sentido do homem, da história e de toda a criação já foi decidido na Cruz e se revelou na Ressurreição de Cristo. Todas as realidades criadas estão se tornando o corpo glorioso de Deus que, aos poucos, chegará à sua plenitude no fim dos tempos. Então, Ele será tudo em todas as coisas.

Neste sentido a nova criação é muito mais admirável que a primeira porque, se a antiga surgiu do puro nada, do vazio (ex nihilo), a segunda surge do nada negativo (nihil negativum), isto é, do nada destrutivo, aniquilador, do pecado, da Cruz, da morte segunda. E isso tudo é sumamente admirável. Por isso, canta a Igreja:

Ó pecado de Adão indispensável

Pois o Cristo o dissolve em seu amor,

Ó culpa tão feliz que há merecido

a graça de um tão grande Redentor [Exultet]

 

2.9.2. Mais que o testemunho das mulheres o testemunho do anjo

À primeira vista Mateus dá a impressão de que as mulheres foram testemunhas oculares deste evento: do tremor da terra, do anjo descido do céu que removeu a pedra, etc. Em verdade o que Mateus quer dizer é que a ressurreição foi ou é um acontecimento estritamente sobrenatural: não foi visto e nem podia ser visto por ninguém da terra, só do céu. Por isso, mais importante que testemunhos humanos são os que vem do céu, no caso, o anjo que diz às mulheres: “não tenhais medo! sei que procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado. Não está aqui. Ressuscitou com havia predito. Vinde ver o lugar onde ele estava”. Por isso, protagonista da narrativa não são as mulheres e sim o anjo. Quem merece fé não são elas, mas o testemunho do céu. Elas serão apenas (!) as portadoras desta Boa Nova angelical: Ide depressa contar aos discípulos que Ele ressuscitou dos mortos e que vai à vossa frente para a Galiléia…

2.9.3. As apóstolas dos Apóstolos

       Assim, Jesus, o crucificado, é agora também o ressuscitado: ressuscitado-crucificado ou crucificado-ressuscitado e as “Marias”, representantes, de novo, da Igreja do Amor, suas primeiras mensageiras junto aos Apóstolos, representantes da Igreja ministerial.  Eis que, de novo, como na narrativa da paixão, a Igreja do amor, a “Igreja das mulheres”, se mostra essencial para a Igreja ministerial dos Apóstolos. São duas dimensões da única e mesma Igreja. A solicitude delas, em cumprir o obséquio de anunciadoras da alegre Mensagem (euangélion) junto dos Apóstolos, é recompensada com a graça de todas as graças: o encontro com o seu amado: “E eis que Jesus veio ao seu encontro e lhes disse: ‘Eu vos saúdo’. Elas se aproximaram dele e abraçaram-lhe os pés, prosternando-se diante dele” (Mt 28, 9). 

Com tais gestos, elas testemunham a veneração de sua fé e de seu amor para com o Mestre. Jesus, então, as encoraja: “Não temais. Ide anunciar a meus irmãos que eles devem ir à Galileia; lá é que eles me verão” (Mt 28, 10). Note-se que Jesus, aqui, como no Evangelho de João, por ocasião da aparição a Maria Madalena (Jo 20, 17), se refere aos seus discípulos, ou melhor, aos Apóstolos, como “meus irmãos”. Ele, agora, não é mais simplesmente o Mestre e o Amigo, é o Irmão. Ele e os Apóstolos se constituem no fundamento da nova “Fraternidade universal”. São estes “irmãos” do Senhor que receberão a missão de levar o Evangelho por toda a terra e a toda a criatura. Movido por esta mesma razão, 13 séculos mais tarde, também Francisco irá denominar-se a si e a seus companheiros de “Irmãos”: “Quero que esta fraternidade seja chamada de Ordem de Irmãos menores” [1C 38,3].

Conclusão 

A vigília pascal, não é apenas uma noite e a Páscoa um dia, um tempo de sete semanas ou de cinquenta dias, mas o dia de todos os dias, o tempo de todos os tempos, ou quem sabe, o vigor do eterno fortalecendo a fugacidade da nossa temporalidade e a luz celeste iluminando as trevas das infidelidades de nossa caminhada diária. Enfim, é o Cristo peregrino sempre passando pelos caminhos de nossa existência, de nossa história, como muito bem exclama o rito da preparação do Círio: “Jesus Cristo ontem e hoje, Princípio e Fim, Alfa e Ômega”.

Segundo Bento XVI o Filho do Homem compendia em si mesmo a terra e o céu, a criação e o Criador, a carne e o espírito. É o centro do universo e da história, porque nele se unem sem se confundir o Autor e sua obra (VD 13).  

Em tempos em que o niilismo grassa em quase toda a parte, proclamar que no “nada” – no sepulcro vazio – há um Senhor nobre que, em vez de dominar serve, sim, que serve não apenas todos os bens de que o homem necessita, mas acima de tudo, serve-lhe sua própria Pessoa, seu próprio Corpo e Sangue como comida e bebida, é certamente uma grande e Boa Notícia, um auspicioso Evangelho.

São Francisco rejubila com ou por causa deste mistério através deste Salmo do seu Ofício da Paixão, composto para o dia da Ressurreição: 

Cantai ao Senhor um cântico novo * porque fez maravilhas.

A sua mão direita sacrificou * seu dileto Filho e seu braço santo.

O Senhor tornou notável a sua salvação * e diante das nações revelou sua justiça.

Naquele dia, enviou o Senhor a sua misericórdia * e à noite a sua canção.

Este é o dia que o Senhor fez * exultemos e n’Ele nos alegremos.

Bendito o que vem em nome do Senhor * e o Senhor Deus nos iluminou.

Alegrem-se os Céus e exulte a Terra, comova-se o mar e sua vastidão *

Alegrem-se os campos e tudo o que neles existe.

Trazei ao Senhor, ó famílias das nações * trazei ao Senhor glória e honra * trazei ao Senhor glória ao seu nome.

 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm