QUINTA FEIRA SANTA E SEUS MISTÉRIOS – 2020

 QUINTA FEIRA SANTA E SEUS MISTÉRIOS

Ano A 2020

09.04.2020

Tema-mensagem: Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo.

Leituras: Ex 12,1-8.11-14; Sl 115; 1Cor 11,23-25; Jo 13,1-13

Sentimento: gratidão e adoração

Introdução

Jesus, “antes da festa da Páscoa, sabia que tinha chegado a hora de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1), que soara a hora de consumar sua missão: consolidar o início da nova criação, da nova história e da nova humanidade nascida, agora, não mais da lei, das tradições e nem mesmo da decisão dos homens, mas através do desígnio, da Paixão do Pai que Ele deverá testemunhar até a morte e morte de Cruz. Por isso e para isso, desejava ardentemente encontrar e instituir um modo novo através do qual pudesse entregar e confiar aos seus discípulos e até o fim do mundo esse Mistério de salvação.

Este modo Ele o encontrou na véspera da Páscoa, de sua passagem deste mundo para o Pai quando confiou aos seus discípulos os três grandes Atos ou mistérios de sua nova e eterna presença na Igreja e no mundo: o mandamento de amar como Ele os amou, de fazer o memorial de sua Ceia e de pastorear seu rebanho através do sacerdócio ministerial. Por formarem o coração de cada uma das três leituras de hoje nossas reflexões, diferentemente de outras vezes, em vez de se agruparem cada vez em redor de cada uma delas vão se concentrar nestes três grandes mistérios. Além do mais nos serviremos basicamente de algumas passagens de São Francisco, um dos místicos que mais bela, simples e profundamente entendeu e viveu estes mistérios.

  1. DO NOVO E INAUDITO MANDAMENTO DO AMOR

A primeira obra ou mistério de Jesus atualizado e confiado aos Apóstolos, foi o mandamento do amor. Por isso, João começa a narrativa do grande discurso de despedida de Jesus proclamando que “tendo amado os seus que estavam no mundo amou-os até o fim” (Jo13,2). Na verdade, este mandamento já existia e era muito conhecido tanto pelos pagãos como pelos judeus. Os limites deste mandamento, porém, não ia além do próximo, do amigo, compatriota ou prosélito (Cf. Lv 19,18).  Jesus, porém, como já o havia anunciado por diversas vezes durante seus três breves anos de vida pública, ele viera para inaugurar um novo mandamento do amor. Por isso, agora, na despedida, ele o entrega e o confia a modo de testamento, solene e oficial: “Como o Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor… Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 9-13). Esse parece ser o sentido da expressão “até o fim”. Ou seja, um amor que vai até o extremo ultrapassando todos os limites então conhecidos pelo homem.

  1. Na Paixão do Pai o princípio do novo mandamento

Na verdade, duas são as novidades que Jesus introduz no velho mandamento do amor, ambas inauditas. A primeira é a de amar como Ele ama. Isto inclui também e principalmente os inimigos, como Ele o fez claramente na Cruz. A segunda – coisa de pasmar céu e terra – é que não é mais um cordeiro ou bezerro que é sacrificado em favor dos homens, nem mesmo um homem ou anjo, mas o próprio Deus. Sim, Ele é que toma a iniciativa de se dar, de se entregar até a morte e morte de Cruz. Se os pagãos adoravam e serviam a deuses que os exploravam, exigindo-lhes, por vezes, o sacrifício até mesmo de pessoas – virgens e crianças – com o nosso Deus é o oposto: Ele, o Criador, o Pai é quem se sacrifica pelos seus, pelas suas criaturas, pelos seus filhos. “Pelos seus” significa todos, também e principalmente, seus inimigos. É algo nunca visto, inaudito que o Criador deseje e se faça comer pela criatura (Cf LS 236). Eis o sentido da exclamação: “Desejei ardentemente comer convosco esta Ceia da Páscoa antes de sofrer…” (Lc 22,15).

Mas, qual a razão de tão inédito gesto e atitude? Por que tanto desprendimento? A razão é muito simples. É que nós, os humanos,  somos a alma de sua alma, o sangue de seu sangue, a vida de sua vida. Como mãe, distante de seu filhinho, muito mais Deus, distante de nós, seus filhinhos prediletos, tem necessidade de fazer tudo para estar conosco e para que nós tenhamos a possibilidade de estar com Ele. Quem compreendeu muito bem e sentiu de modo muito intenso e profundo a  nobreza humilde desse mistério foi São Francisco, como lemos nesta passagem: “tomado pelo espírito da Paixão do Senhor, logo que ouvia falar do amor do Senhor, ele se empolgava, ficava comovido e inflamado, como se a voz que ressoava exteriormente fosse um arco a fazer vibrar internamente as cordas do seu coração e exclamava: ‘Eis por que é necessário amar muito o amor daquele que muito nos amou’” (1B IX,1)

Esta é, também, a razão pela qual nós devemos nos amar e amar aqueles que julgamos ou costumamos chamar de “inimigos”, mas que, na verdade são nossos melhores amigos, uma vez que nos ajudam a ver e a encontrar neles, muito mais que nos amigos,  o próprio Deus, vivo e verdadeiro, que é Amor, Caridade, Doação. Por isso, dizia o Senhor Jesus: Amai vossos inimigos fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam (Mt 5,44)

Vendo e pensando este dito, dizia São Francisco: “Atendamos todos, Irmãos, ao que diz o Senhor: Amai vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam. Pois Nosso Senhor Jesus Cristo, cujos vestígios devemos seguir, chamou de amigo o seu traidor e livremente se ofereceu aos que o crucificavam. Por isso, são nossos amigos todos os que injustamente nos infligem tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte. A estes devemos amar muito, pois, disso que nos infligem, temos a vida eterna (RNB 22, 1-4).

  1. Para amar o inimigo é preciso odiar a si mesmo

Eis, pois o princípio da nova ordem, do novo ordenamento da Humanidade, o tão falado novo céu, nova terra, de São João (Cf. Ap 21). Há, porém, uma exigência para que ele aconteça: “odiar o pai, a mãe … e a própria vida” (Lc 14,25-27). São Francisco, em vez de “própria vida”, fala assim: “E tenhamos em ódio nosso corpo com seus vícios e pecados; pois, quando o corpo vive carnalmente, o diabo quer nos tirar o amor de Jesus Cristo e a vida eterna e perder-se a si mesmo com todos no inferno. Pois, por nossa culpa, somos fétidos, míseros e contrários ao bem; prontos, porém, e voluntariosos para o mal” (RNB 22,1-6).

Quando Francisco, juntamente com os medievais, fala em corpo não está evidentemente pensando no corpo físico-biológico, mas sim em nosso eu carnal, centrado em si mesmo, girando sempre em torno de seu pequeno “eu”, inimigo do grande Eu. O grande Eu, entendemos aqui, aquela nova pessoa que nasceu em nós e começou a tomar conta de nós com a graça do encontro com Cristo no Batismo e depois, para nós franciscanos, com o vigor, o entusiasmo, a alegria da gratuidade do encontro com Francisco e do chamado à Ordem. Santo Agostinho chama este novo Eu de “Íntimo do meu íntimo” e São Paulo de “Homem espiritual”, “Homem celeste”.

Nós nos denominamos seguidores de Jesus Cristo, mas ignoramos ou não queremos fazer o que Ele ensinou e fez. Esquecemos que Ele nunca deu vez ao seu pequeno eu. Lembremos como, desde o começo de sua vida pública, a partir das famosas tentações do deserto, até seu último suspiro, nunca cedeu ao seu pequeno eu para sempre assumir e fazer tão só e unicamente a vontade do Pai.

Por isso, antes de partir quis pôr à disposição de todos, este caminho, instituindo o novo e inédito mandamento do amor juntamente com o mistério da Eucaristia: “Tomai e comei, isto é o meu corpo … Tomai e bebei, isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança que será derramado em favor de muitos” (Mc 14,23-24). Jesus não diz, este é meu ideal, minha moral, minha doutrina! Ou seja, neste pão e neste vinho santificados pela sua Palavra está Ele mesmo.

  1. O Lava-pés como exemplo e lição

            É digno de nota que, antes do anúncio deste novo mandamento (Jo 13,34), Jesus “sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus estava voltando …. começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13,3-5).

            Jesus não apenas ensina, mas também exemplifica com gestos concretos e atitudes pessoais. O ato de lavar os pés era muito conhecido naquele tempo e indicava primeiramente a condição de submissão, humilhação e escravidão. Mas, por outras vezes apontava, também,  para o espírito de hospitalidade, de acolhida e amizade. Assim, era costume que o chefe da casa lavasse os pés de seus visitantes.

            Mas, talvez Jesus queira dar também a este gesto um novo sentido. Por isso, a Pedro, tomado de espanto e surpreso, Jesus diz: “Agora não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás” (Jo 13,7). E quando Pedro se nega terminantemente a ter os pés lavados pelo seu Mestre e Senhor, este lhe responde categoricamente: “Se eu não te lavar não terás parte comigo” (Jo 13,8).

            A mensagem de Jesus é muito clara, para poder tomar parte da vida, da pessoa Dele e de sua missão, de seu Reino, é necessário antes ser lavado, purificado por Ele. Esta purificação, porém tem um preço, ou melhor uma fonte de água pura: a Cruz. Na verdade, tudo o que Jesus faz na Quinta-feira santa, isto é, o Lava-pés, a purificação, a ceia e a entrega do novo mandato do amor, se constitui numa presencialidade real e verdadeira antecipação do que irá realizar no dia seguinte: o sacrifício da Cruz. É pela força da Cruz que se aniquila toda inimizade, se derrubam todas as barreiras, se removem todos os obstáculos, aproximando estranhos a conhecidos e confraternizando inimigos com amigos numa única refeição cujo pão é o próprio Corpo de Cristo. É assim que “ele estabeleceu a paz, reconciliou ambos os povos com Deus num só corpo pela cruz e matou  em si mesmo a inimizade” (Ef 2,16). É só então que acontece seu grande desejo: ut unum sint, isto é: que todos sejam um.

            Nunca é demais insistir: o novo mandamento do amor não é competência do homem, mas graça que nasce e jorra da Cruz de Cristo como a água viva, fecundante e purificadora jorra da fonte. Amar como  Ele ama é sacrifício, ou seja, uma obra sacra, um fazer sagrado e divino: o mistério operante do próprio Deus de Jesus Cristo. É isso que sempre de novo precisamos compreender para que nosso amor de cristãos não se perca nem se desvie em desejos vãos e projetos inócuos, carregados de nossas subjetividades e de mundanismos espirituais (EG 93). É graça que Cristo nos merece por lavar-nos inteiramente de nosso egoísmo com a pureza de seu amor, capaz de ir até o derramamento de sua última gota de sangue na Cruz.

  1. EUCARISTIA NOSSA VIDA E NOSSA VIDA UMA EUCARISTIA

            Além do mandamento do Amor, Jesus na Última Ceia entrega aos seus discípulos o memorial de sua Paixão. É o que nos assegura São Paulo por duas vezes no trecho da sua Carta aos Coríntios, lido hoje. Depois de anunciar que Cristo na Última Ceia, através de seu Corpo e de seu Sangue dados por nós, inaugura a nova Páscoa, repete por duas vezes a ordem de Jesus: “Fazei isto em minha memória” (1Cor 11,24-25). E conclui o próprio Senhor: “Assim, todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que Ele venha” (1Cor 11,26).

  1. A Eucaristia na origem da Igreja e da Ordem Franciscana

            Assim, pode-se e deve-se dizer da Eucaristia o que a tradição da Igreja diz de toda a Liturgia: “é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte de onde emana toda a sua força” (SC 10).

Quem compreendeu o profundo significado deste memorial foi São Francisco. A Eucaristia está para ele e para os primitivos frades – para a Ordem, enfim – como a fonte está para o rio. De fato, como a Igreja nasceu da Eucaristia, na Última Ceia, também a Ordem nasceu deste mistério. Pois, foi ouvindo a Missa, na igrejinha da Porciúncula, que Francisco e seus dois primeiros companheiros – desejosos de saberem como seguir Jesus Cristo crucificado – ouviram o anúncio que Jesus fez aos Apóstolos: que deviam observar seu Evangelho, indo pelo mundo sem nada de próprio, desprendidos de tudo a fim de anunciar a Paz e o Reino de Deus (LTC ).

Foi então que Francisco exultante de alegria levantando-se, cheio de júbilo, exclamou: “É isso o que eu quero, é isso o que eu procuro, é isso o que eu desejo fazer com todas as fibras do coração” (1C 22). E depois, voltando-se para os dois companheiros, acrescentou: “Irmãos, esta é a vida e a nossa Regra e a de todos que quiserem juntar-se à nossa companhia. Ide, pois, e realizai plenamente como ouvistes” (LTC 8). Portanto, assim como outrora da Última Ceia (Missa) nasceu a Igreja apostólica, agora da mesma Ceia (Missa) nasceu a Ordem seráfica.

Acerca da primeira, temos, por exemplo, este testemunho de Plínio, o jovem governador romano da Bitínia, na Ásia Menor. Em 111 escrevia: “Os cristãos estão habituados a se reunirem em determinado dia, antes do nascer do sol para cantar um cântico a Cristo que eles têm como Deus. De tarde se reúnem de novo em uma ceia em comum em favor dos mais pobres, chamada ágape” (Epístola a Trajano 10,96).

Também, em relação à nossa Ordem, os testemunhos referentes à Missa como a alma, o coração, a regência, o sentimento maior do dia-a-dia daquela primitiva geração de frades, são muito frequentes.  Vejamos apenas este referente a Francisco: “Do mais profundo de todo o seu ser, ardia com fervor para com o sacramento do Corpo do Senhor, pois ficava absolutamente estupefato diante de tão cara condescendência e de tão digna caridade. Achava que era um desprezo muito grande não assistir, pelo menos, a uma Missa cada dia, se pudesse. Comungava com frequência e com tamanha devoção que tornava devotos também os outros. Como tinha toda reverência para com aquilo que se deve reverenciar, oferecia o sacrifício de todos os seus membros e, ao receber o Cordeiro imolado, imolava o espírito com aquele fogo que sempre ardia no altar do coração” (2C 201).

  1. A Eucaristia como Regra e Vida do nosso cotidiano

Por isso, também, na Igreja primitiva a Eucaristia sempre foi colocada como o ato primeiro e mais significativo dos primeiros cristãos. Era ao seu redor que nasciam e floresciam as primeiras comunidades de fiéis. Surpreendentemente o mesmo se dá 13 séculos mais tarde com São Francisco e seus seguidores. A Eucaristia era a Regra, o princípio que animava, orientava e formava aqueles frades no seu dia-a-dia tanto na vida fraterna como na vida apostólica. Conta-se, por exemplo, que Frei Egídio partia para suas lides diárias somente depois de ter ouvindo a Missa. Certo dia, depois de ter levado lenha para uma senhora, esta quis pagar-lhe mais do que o combinado porque descobrira que ele era frade. Ele, então, disse: “Não quero que me vença a avareza”. E assim, não só recusou o que ela queria dar-lhe, mas até deixou–lhe a metade do preço combinado” (VE 11).

E essa é a fé do nosso povo simples, como se pode ver neste canto tão conhecido: “As lições que melhor educam na Eucaristia é que nos dais”. A esse respeito, nos lembramos ainda de um fato marcante de nossa infância. O pai de uma família vizinha fora a pé à missa fazer a primeira sexta-feira do mês na igreja distante três quilômetros. Na volta, próximo de casa foi atacado e agredido violentamente por outro vizinho. O motivo era desavenças por causa de animais que haviam invadido as terras e estragado as plantações. Perguntado pela esposa e filhos porque não reagira, não se defendera, respondeu: “Não podia, pois estou voltando da missa, da comunhão”.

De fato, toda a vida de Francisco, no seu dia-a-dia, foi uma vida vivida no júbilo, no vigor e no espirito da Missa, isto é, da missão evangélica. Lembremos aquela pérola de oração que inventou a fim de com ela recordar sempre de novo seu encontro com o seu Senhor: “Nós vos adoramos…”. Lembremos ainda que, a exemplo   do Senhor, também ele, na véspera de sua partida para o Pai, quis ouvir o Evangelho da Última Ceia (1C 110).

Para Francisco, portanto, a Eucaristia não era uma devoção da piedade particular, onde ele podia estar sozinho diante de Deus desejando e procurando satisfazer-se em consolações pessoais; não era somente um ato litúrgico, onde Cristo se torna presente para ser por nós adorado e honrado. Era, antes a presença real, viva e concreta de Cristo com seu ardente desejo de amar-nos até o extremo. Daí sua comovente exortação aos seus Irmãos:

Pasme o homem todo, estremeça o mundo inteiro e exulte o Céu, quando, sobre o altar, na mão do sacerdote, está o Cristo, o Filho do Deus vivo! Ó admirável grandeza e estupenda dignidade! Ó humildade sublime! Ó sublimidade humilde! O Senhor do universo, o Deus e o Filho de Deus, assim se humilha e se oculta sob a módica fórmula de pão para a nossa salvação! Vede, Irmãos, a humildade de Deus e derramai diante d’Ele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que sejais exaltados e por Ele” (CO 26-28).

 

  1. Eucaristia último degrau do mistério da Cruz

Como e quão longe estamos nós deste sentimento! Diante de um Deus que não apenas se deixa, mas também pede, ordena à sua criatura que o espolie, o coma; que se abaixa a modo de servo e escravo para lavar-lhe os pés, que a ama ao ponto de morrer na cruz por ela, sim, tudo isso não nos espanta, não nos estremece, não nos engasga mais!

Se antes o Filho de Deus não se envergonhara de assumir e viver nossa condição humana, finita, limitada, vil e pecadora – tornando-se um desconhecido e menosprezado nazareno – agora quer ir mais longe. Para levar sua Paixão a todos os homens de todos os tempos bem como a todas as criaturas, também às mais ínfimas, como um grãozinho de areia, transubstancia-se num pedaço de pão e num pouco de vinho; vira “matéria”, a realidade mais baixa ou vil entre todas as criaturas, a menos poderosa e expressiva. Que se transformasse pelo menos numa flor, numa pomba ou quem sabe, num inocente cordeirinho! Mas, não! Se outrora viera como criança, como um nazareno, como Cruz, agora vem como pão e vinho a fim de poder ser tomado e comido sem temor e tremor.

Compreende-se, então a convocação de Francisco: Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que não reconheceis a verdade e não credes no Filho de Deus? Eis que todos os dias, Ele se humilha, assim como quando desceu do trono real para o útero da Virgem; cada dia, vem a nós, sob a aparência humilde; cada dia desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos do sacerdote. E como se mostrou aos Santos Apóstolos em verdadeira carne, assim, de igual modo, se mostra a nós no pão sagrado. E assim, vendo a sua carne, eles viam apenas a carne d’Ele, mas contemplando-O com os olhos espirituais, criam ser Ele o próprio Deus; assim também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos corporais, vejamos e creiamos firmemente ser d’Ele o santíssimo corpo e sangue vivo e verdadeiro. E desse modo, o Senhor está sempre com seus fiéis, como Ele mesmo diz: Eis que estou convosco até a consumação do século. (15).

Conclusão

Devemos reconhecer, hoje, que a Eucaristia não é mais a primeira Regra, a principal forma de Vida do nosso dia-a-dia, capaz de nos libertar da busca ensimesmada do nosso pequeno eu, impedindo que cheguemos ao grande EU. Talvez, ainda não despertamos para essa grande troca ou intercâmbio que nos é oferecido quando vamos comungar. O ministro nos diz: “Eis o Corpo de Cristo” e nós respondemos “Amém!”, isto é, “Sim, Senhor”, eu te recebo, te quero, te acolho, “te comungo” para que o teu Eu, tua história, sejam meu eu, minha história; sim, te comungando estou comungando a nova humanidade, a nova criação; te comungando estou e quero assumir tua missão, tua nova humanidade, tua nova criação em mim, em todos e em tudo.

  • DO MINISTÉRIO SACERDOTAL

Além do mistério do novo mandamento do seu Amor e do seu Corpo e Sangue, na sua despedida, Jesus institui, também, o mistério, o sacramento do sacerdócio ministerial, ordenando seus Apóstolos a serem os pastores, ministros e guardiães do novo Povo de Deus.

  1. Nos sacerdotes a nova Cruz de Cristo

São Francisco, de novo, como sempre, também aqui, é surpreendente. Em seu Testamento, por exemplo em sacerdotes pobrezinhos (T 7).

A quem estaria se referindo? Aos membros do baixo clero, bastante numeroso em seu tempo? Talvez. Mas, provavelmente, esteja vendo muitos sacerdotes que, naquela época, levavam uma vida irregular, amancebados, metidos em negócios desonestos, falcatruas, etc. Mas, então, por que os chama de pobrezinhos e não de hipócritas e mercenários? No contexto da frase encontramos a resposta: O senhor me deu tal fé nos sacerdotes… (idem).

“Tal”, significa “tanta”, enorme, profunda, sem medida, misteriosa, gratuita. E sua reflexão acerca deste mistério continua de modo surpreendente. Basta conferir em seu Testamento (Cf. T 6-11). Mas, aqui, para nosso assunto, é suficiente esta conclusão: E neles não quero considerar pecado, porque neles diviso somente o Filho de Deus” (T 9).

Divisar significa ver em separado, distinguir. Ou seja, o atingimento de Francisco pela presença do mistério do Senhor, na pessoa do sacerdote, é tão diligente, limpa, cristalina e profunda que nele não consegue considerar pecado. Considerar é uma maneira de olhar que vê e enxerga longe, fundo; um ver que vai para além das aparências; um olhar que procura ver, discernir contemplar a essência, o coração, e que, por isso, ignora todo o resto, tudo o que não venha ou não pertença ao caso. É o olhar do bom e experiente garimpeiro, por exemplo, que vai além do olhar dos ignorantes e inábeis consumidores; o olhar do bom educador que procura ver o coração do educando. Não importa, para eles, que a pedra preciosa esteja no meio da sujeira ou do estrume; que o educando cometa erros e falhas. Seu olhar limpo vê a bondade originária. Dessa visão é que surgem para Francisco algumas conclusões e atitudes lógicas e arrojadas como essas:

– “Mesmo se me perseguirem quero recorrer a eles”

– “Não quero jamais pregar para além da vontade deles”;

– “Neles só quero ver o santíssimo Corpo e Sangue do Senhor que só eles recebem e administram”;

– “E esses santíssimos mistérios quero honrar e venerar acima de todas as coisas…”.

 

  1. O sacerdócio de Cristo a cruz dos sacerdotes

Mas, além desse argumento profundamente ligado à pessoa de Cristo pobre e crucificado, que “tem” de viver na pessoa do sacerdote decadente, Francisco talvez esteja também pensando e vendo a vida, a missão dura, difícil e angustiante desses sacerdotes que ou quando, além de carregar o peso dos pecados dos fiéis, de sua igreja, do seu rebanho a eles confiado, tem de carregar a vergonha, a ignomínia de seus próprios pecados. Sim, como, nestes casos, é duro e doloroso para um coração que faz a experiência de ser o querido, o amado, o consagrado de Deus e por Deus, proclamar “Introibo ad altare Dei”, isto é, “Vou entrar no altar, no santuário de Deus”, ou ainda, fazendo a vez Dele, exclamar: “Isto é o meu Corpo! Isto é o meu Sangue! Tomai e comei… Tomai e bebei!”

            Por isso, a expressão “pobrezinhos”, agora, brota de seu coração como sentimento de uma mãe que, cheia de dó e compaixão, diante de um filho, já adulto e doente ou perdido nas drogas, não tem outra coisa a fazer senão exclamar: “pobrezinho!”

Vale a pena ouvir a respeito desse sentimento o relato de Estêvão de Bourbon: Ouvi, ainda, que o Bem-aventurado Francisco, ao entrar em certa vila na Lombardia e ali se espalhasse a fama de sua santidade, um herege, julgando-o um homem simplório e querendo confirmar sua seita e seus adeptos que para aí haviam acorrido, ao ver o sacerdote da vila aproximando-se, gritou bem alto: Olha, bom homem, o que dizes deste sacerdote que cuida desta paróquia e, no entanto, mantém uma concubina, ficando claro a todos que ele está cheio de pecados? Pode, por acaso, ser puro o que ele trata e administra com suas mãos?”

Percebendo a malícia do herege, o Santo perguntou: “É do sacerdote desta vila que dizeis tais coisas?” Como respondesse que sim, Francisco dobrou os joelhos no lodo e beijando as mãos do sacerdote disse: “Estas mãos tocaram o meu Senhor. Seja o que for, nada pode tornar imundo o Senhor ou diminuir-Lhe a virtude. Em honra do meu Senhor eu honro o seu ministro. Para ele pode ser mau, para mim, no entanto é bom”. Diante disso, os hereges ficaram completamente confundidos (TM 14 – 10-14).

O mesmo sentimento, fraterno, mas rigoroso, ele o manifesta em sua Carta à toda a Ordem, dirigindo-se então e explicitamente a todos os sacerdotes:

“Ouvi, Irmãos meus: Se a Bem-aventurada Virgem é honrada, como é digno, por ter trazido no seu santíssimo útero o próprio Filho de Deus; se o Bem-aventurado Batista estremeceu e não ousou tocar a santa cabeça de Deus; se o sepulcro no qual ficou por algum tempo é venerado, como deve ser santo, justo e digno aquele que toma nas mãos, recebe na boca e no coração e dá o Senhor aos outros para tomar, o qual já não mais morrerá, mas viverá glorificado na eternidade e a quem os anjos desejam contemplar” (CO  21-22).

E, seguindo, um pouco além, exorta:

Vede a vossa dignidade, irmãos sacerdotes! Sede santos porque Ele é Santo! E, como o Senhor Deus vos honrou acima de todos, por causa deste ministério, assim também vós, amai-O, reverenciai-O e honrai-O. É uma grande miséria e uma lamentável fraqueza, quando O tendes assim presente, e vós cuidais de outra coisa em todo o mundo. (CO 23-25).

Conclusão

A fé nos “sacerdotes pobrezinhos” levava Francisco a expressar um dos mais nobres e fecundos sentimentos humanos: a compaixão, a dor, vertida, às vezes, em prantos e lágrimas. Sim, diante de um Filho de Deus que se faz e quer ser Filho do homem a fim de comungar da alegria de nossa fragilidade, como outrora Pedro, Francisco chora o amor que não é amado.

Talvez seja esta uma das lições, profundamente evangélica e franciscana, que nós hoje precisamos aprender, de novo.  Não importa (!?) que neguemos nosso Mestre e Senhor, fato quase sempre inevitável, devido nossa fragilidade. Importa sim que o lamentemos com lágrimas e prantos que brotam da experiência de um coração tocado por um mistério tão inaudito.

Assim, os pastores da Igreja são aceitos e reconhecidos como tais não por seus atos heroicos ou por serem santos, mas justamente porque não têm a pretensão de sê-lo; porque estão dispostos a reconhecer sua fraqueza na confissão da própria fé. E se muitas vezes os pastores da Igreja não são aceitos é justamente porque não são capazes de se humilhar para reconhecer que erraram e que continuam pecadores.  

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini