DOMINGO DE RAMOS e DA PAIXÃO – 2020

DOMINGO DE RAMOS e DA PAIXÃO

05.04.2020

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Mt 21,1-11; Is 50,4-7; Sl 21; Fl 2,6-11; Mt 26,14-27,66

Tema-Mensagem: Da Paixão de um Rei que se entrega nas mãos de seus inimigos porque são seus amigos

Sentimento: adoração e gratidão

Introdução

Durante quase quarenta dias estivemos caminhando com Jesus, participando de seus passos que o levariam à cidade santa, Jerusalém, a fim de consumar seu ardente desejo, sua profunda Paixão de entregar inteiramente sua vida ao Pai em favor de seus filhos. Hoje, vamos acompanha-Lo em sua entrada messiânica, em Jerusalém. Como outrora, o povo simples, também nós, de novo, com ramos e cantos, queremos aclamá-lo como o novo Senhor e o novo Rei dos homens e de toda a criação. É o início de sua Paixão. Por isso, esse domingo é chamado “Domingo de Ramos” ou, também, “Domingo da Paixão”.

  1. Procissão dos Ramos (Mt 21,1-1)

Dois aspectos significativos marcam a entrada de Jesus em Jerusalém: O modo como Ele entra e a atitude do povo.

 

  • O novo rei vem montado num jumentinho

Surpreendentemente, é no evangelho de hoje, que trata da solene entrada de Jesus em Jerusalém, que, pela primeira e única vez, o evangelista Mateus chama Jesus de “O Senhor” (ho kyrios) (Mt 11, 3). E assim, como no Natal, também aqui, Jesus quer revelar mais com sinais, bem expressivos, do que com discursos, o seu modo de reinar. Se lá ele nasceu numa estrebaria e foi posto num coxinho no meio dos animais, aqui pede que lhe arrumem uma jumenta e um jumentinho para entrar na sua cidade. É assim que ele se fará o Rei, “o Senhor” dos homens e dos animais e de toda as criaturas. Mais uma vez ele se apequena, se abrevia!

Acerca deste modo do futuro Messias reinar já o haviam predito e anunciado os antigos profetas (Cf. por exemplo, Zc 9, 9). Em vez de montado a cavalo ou num corcel, como os imperadores daquele tempo, Ele vem montado num jumentinho bem novo, num filhote de jumenta. Para ser a salvação de seu povo e de toda a humanidade vem humilde e não prepotente, manso e não oponente. Vem para ser amado e não temido. Não usa um carro dourado e nem se veste de púrpura, ostentando a vanglória dos poderosos deste mundo. Nem vem montado em cavalo brioso para deflagrar guerras contra os inimigos. Vem montado em animal de carga, em humildade e pobreza. Eis uma imagem singela e ao mesmo tempo eloquente de sua alma e de sua conduta. Na leitura dos Padres da Igreja, os dois animais representam judeus e gentios, chamados, para, agora, juntos formar uma só humanidade.

Além disso, na ordem de Jesus, dada aos apóstolos para que fossem desamarrar os dois animais pode-se ver a missão da Igreja para que vá pelo mundo afora para desvencilhar os homens, a humanidade das amarras das “burradas” de seus pecados e trazê-los a Ele a fim de poderem participar do seu reinado que está para inaugurar.

Além do mais, como não ver nesta escolha – o jumento, animal de carga – o Cordeiro que veio para carregar o pecado do mundo!? Aliás, Ele mesmo já havia convidado seus seguidores a depor os pesados fardos, e a tomar o seu jugo suave e a se fazerem mansos e humildes como ele.

 

1.2.Hosana ao Filho de Davi

Vem, então a expressiva cena da procissão. Nela pode-se ver tanto a humanidade toda, representada pelos apóstolos e pelas multidões como a criação toda representada pelos animais e pelas árvores. Assim, todos e tudo vêm participar da investidura do seu novo Rei: o rei do Universo. Multidões o acompanhavam: umas para segui-Lo e outras indo à sua frente, abrindo caminho.

Os Padres da Igreja veem nas primeiras o povo do Novo Testamento que começa a segui-Lo e nas outras multidões o povo do Antigo que, durante séculos, na fé, na esperança e na paciência o aguardara e preparara sua Vinda. Nas aclamações dos que o precederam pode-se ver os vaticínios dos profetas e nas dos que o seguiram o louvor dos que acolheram e acolhem a vinda de seu novo Regente. Todos, porém, unânimes clamavam: “Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor, o vindouro! Hosana no mais alto dos céus!” (Mt 21, 9). Nele, com Ele e por Ele, os dois povos se fundem num só, as duas alianças se consolidam através de um único e eterno sacrifício: o da Cruz.

A palavra “Hosana”, empregada pelas multidões, pode significar tanto um apelo de salvação quanto uma glorificação do Salvador que vem dos altos céus para a terra, a fim de salvar não só o homem, mas todo o universo (São Jerônimo). Nesta aclamação, Jesus é chamado tanto de “filho de Davi”, e assim é reconhecido em sua humanidade, como de “o Vindouro”, isto é, aquele que, em nome do Senhor, virá para nos trazer a salvação, e assim é reconhecido em sua divindade (Cf. Rm 1, 3-4).

A cidade de Jerusalém nunca vira espetáculo semelhante, tão admirável e assombroso que despertava em todos a pergunta: “Quem é este homem?” E as multidões mesmas respondiam: “É o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21, 11). Na verdade, este galileu, este nazareno, não era um profeta, mas o Profeta, prometido por Moisés aos hebreus (cfr. Dt 18, 15; At 3, 22-23; Jo 6, 14; Jo 7, 40). Chamam-no não pelo lugar de seu nascimento, mas de seu florescimento na terra dos homens: Jesus, de Nazaré da Galileia, o Filho do Homem. Tão grande é a dignidade deste homem humilde, que nem mesmo o título de o Profeta lhe basta. Por isso, no evangelho de João, ao ser perguntado se seria o Profeta, ele responde: “Não!” (Jo 1, 21). É que Ele era o próprio Verbo, a Palavra viva do Pai, “a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem!” (Jo 1, 9). Eis o Homem, o novo Rei que está entrando na cidade santa a fim de tomar posse do Reino que, desde toda a eternidade, o Pai reservara para Ele e para seus seguidores.

 

  1. Celebração eucarística

Terminada a Procissão, a Palavra de Deus proclamada na Missa, começa a nos conduzir para paisagens ainda mais profundas acerca deste mistério insondável da Paixão e morte de Cristo na Cruz, o novo Rei do universo.

2.1. Uma obediência que será o fundamento de um novo povo de Deus (Is 50,4-7)

Na primeira leitura, o profeta Isaias, num dos seus quatro poemas, acerca do futuro Messias (Is 40-55) – chamado de “o vindouro” – chama-o de “Servo do Senhor” (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) cujo distintivo é sua obediência de discípulo. Importa, então compreender bem esta obediência para sermos bons seguidores de Cristo.

Obediência de discípulo é difernte da obediência de empregado ou de funcionário. Enquanto estes agem movidos pela força de um contrato ou de uma decisão pessoal, o primeiro se move no e pelo vigor da graça do encontro com o Mestre. A causa da obediênia do discípulo é sempre a experiência de ter sido acolhido, amado. Por isso, diz o profeta: “Todas as manhãs é Ele quem desperta os meus ouvidos,
para eu escutar, como escutam os discípulos. O Senhor Deus abriu-me os ouvidos…”.  Assim, na dinâmica do encontro, escutar é seguir e realizar o que foi ouvido, num sentido de pertencimento ao Mestre. Exemplo desta obediência, embora ainda um tanto apagada,  pode ser visto no modo de se relacionar dos esposos, dos amantes.   Por isso, ele também diz: “e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam, e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam”. Para quem está na dinâmica do encontro, obedecer, escutar, significa tomar a firme decisão de imitar o seu Senhor, de, no caso, fazer da Paixão Dele a sua paixão, o seu pão de cada dia, não recusando as tribulações e os sofrimentos decorrentes do seu chamado; significa, como diz São Francisco “segui-lo na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e em tudo o mais” (Ad 6).  E isto tudo porque nestas tribulações está o próprio Senhor, bênção e graça de todo o discípulo.

2.2. Salmo responsorial (Sl 21 ou 22)

A obediência discipular de Cristo, é meditada na missa de hoje através do salmo que o próprio Senhor rezou no auge da Cruz, realçando a agudeza de seu grito: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” (Sl 22,2). A cruz é o cume da revelação da vida íntima de Deus. Ela penetra, como uma espada, na íntima relação entre Filho e Pai, bem no cerne desta intimidade, que é amor, e, portanto, entrega, doação limpa, pura, sem nenhum por que nem para quê. Este grito no alto da Cruz revela, na dor do amor, a íntima vida de Deus em Deus: a relação entre Pai e Filho no Espírito Santo – o Sopro Santo do Amor. Além do mais, o grito de Cristo na Cruz não é apenas o grito de um homem abandonado por Deus, mas também o grito silencioso do próprio Deus abandonado pelo homem.

Meditando este mistério assim se expressou frei Harada:

Portanto, a experiência do afastamento de Deus, o tormento e o desespero dos condenados pelos pecados, o inferno dos que foram abandonados por Deus, tudo isso e mais, Jesus, o Filho de Deus, enviado pelo Pai, ele, o Inocente, sem pecado, o predileto do Pai, carrega sobre si a culpa, o castigo, o abandono pelo Pai, em expiação pelos pecados do mundo. Por sua paixão e morte, todos nós fomos e estamos salvos. E depois dessa inaudita obra da salvação todas as dores, sofrimentos, humilhações e opróbrios da humanidade recebem um sentido: o de ser participação no sofrimento de Jesus Cristo Crucificado, e assim colaborar para a realização escatológica do reino de Deus.

 

2.3. O amor para amar se abaixa (Fl 2,6-11)

Na segunda leitura da missa de hoje, São Paulo começa nos conduzindo para dentro da verdade mais radical ou fontal do mistério que estamos celebrando: “Jesus Cristo, existindo na condição de Deus…”.  Nunca é demais insistir: Este Homem que está indo para a Cruz é Deus, o próprio Filho de Deus. Mas, continua o Apóstolo, este Deus “esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tornando-se igual aos homens”. É a conhecida doutrina da teologia cristã chamada “kénosis” que aponta para o empenho comprometido e gracioso que Deus faz em esvaziar-se, rebaixar-se a fim de poder ser recebido, acolhido e amado pelo homem. Empenho que O leva a fazer-se o “servo dos servos”, o último dos homens, seguindo o seu destino em pobreza, obediência, humildade: a Cruz. Ora, se este é o caminho do Mestre e Senhor outro não poderá ser o caminho do seu discípulo. Falando deste caminho cristão, assim se expressa São Francisco: “Esta Palavra do Pai, tão digna, tão santa e tão gloriosa o Altíssimo Pai anunciou do Céu, por meio do seu santo anjo Gabriel, no útero da santa e gloriosa Virgem Maria, de cujo útero recebeu a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade. Sendo rico, acima de todas as coisas, Ele mesmo, juntamente com a Virgem Maria, sua Mãe quis escolher a pobreza” (2CF 4-5).

2.4. Evangelho – Paixão de N. S. Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 26,14 – 27,66).

Vamos, agora, acompanhar com Mateus alguns passos da via crucis de Jesus: O caminho sagrado da sua Paixão

2.4.1.Um Deus que se entrega voluntariamente aos traidores e inimigos

Mateus começa a Paixão de Jesus narrando a trama de Judas com os sumos sacerdotes: “O que me dareis se vos entregar Jesus? Combinaram então trinta moedas de prata”. Desde então, Judas procurava uma oportunidade para entregar-lhes Jesus. A oportunidade! O momento oportuno (kairós) para Jesus dar início à consumação de sua paixão. Ele, o sumo sacerdote eminente (Sl 109, 4) é entregado aos sumos sacerdotes do antigo culto, sombra e figura do verdadeiro e novo culto, que irá se instituir a partir de seu sacrifício na cruz, para redimir o mundo inteiro.

Assim, como outrora José do Egito se fez o salvador de seus irmãos que o haviam traído, vendendo-o para os estrangeiros, agora também Jesus, traído e vendido por um de seus amigos mais próximos, transforma esta traição num momento de graça, de ensejo para amar, beijar não só seu traidor, mas todos os traidores de todos os tempos, conduzindo-os assim à liberdade da reconciliação com o Pai e com os irmãos. Judas entrega Jesus espontaneamente. Vende o mestre por um preço irrisório, nem sequer se digna a estipular um preço, como se se tratasse de mercadoria barata, vil.

Como sempre, o amor ao dinheiro, sua paixão, a avareza! Isso vale, acima de tudo, num mundo movido pelo princípio da mercantilização de tudo. É um veneno que intoxica todos os relacionamentos humanos, seja com o outro (de si e dos outros), seja com o céu e a terra e as demais criaturas. Lembremos as chagas da escravidão, da simonia, da compra e venda de crianças, de órgãos humanos, da prostituição, das grandes e vergonhosas propinas de ontem e de hoje, do mercado estabelecido como único critério de julgamento sobre as ações de governo e do Estado, etc.

Por isso, São Francisco detestava o dinheiro chegando a ordenar numa de suas Regras de vida que nenhum dos irmãos em nenhuma hipótese recebesse dinheiro, nem mesmo como pagamento de algum trabalho, mas que, ao contrário, se empenhassem em seguir a pobreza e a humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo que quis viver pobre, hóspede e de esmolas (Cf RNB 8 e 9).

Os passos do amor são sagrados, eternos. Por isso a tradição cristã sempre guardou com muito amor, reverência e devoção os passos da Paixão de Jesus. No decorrer destes passos, porém, algo vai se repetindo e se firmando cada vez mais clara e fortemente como uma espécie de refrão: a entrega. Na verdade, a história da paixão de Jesus é uma sucessão de entregas dentro de uma grande entrega. Jesus é entregue por Judas Iscariotes aos sumos sacerdotes e anciãos do povo, que o entregam a Pilatos, que, por sua vez, o entrega de volta ao povo para ser crucificado. Mas, em contra-partida, através de tudo isso, é o próprio Jesus quem se antecipa para entregar-se nas mãos dos homens e nas mãos do Pai, e o próprio Pai que, por amor aos homens, entrega o seu Filho muito amado ao sacrifício da cruz. Por isso, a Igreja fiel e devotamente, todos os dias, na prece eucarística, faz a memória desta abnegação: “Estando para ser entregue e abraçando livremente a paixão, ele tomou o pão, deu graças e o partiu e o deu a seus discípulos dizendo:  Tomai e comei…”. Deus que se entrega para ser comido e tomado, eis o princípio inaudito que dá origem à nova humanidade, à nova criação.

Estabelecido o diabólico trato entre Judas e os sacerdotes, soa o momento azado (kairós) de Jesus dar início ao seu sacrifício, à sua entrega: a festa da Páscoa judaica na qual, desde a saída do Egito, era costume sacrificar um cordeiro. O cordeiro era sacrificado no anoitecer. Agora, ao anoitecer daquela tarde e de todo o antigo Testamento, Jesus o verdadeiro cordeiro, é detido e atado para, no amanhecer do novo Testamento, ser conduzido para o altar da cruz a fim de oferecer o sacrifício da própria vida em favor da verdadeira e definitiva libertação dos judeus e de todos os homens.

Estranhamente, as palavras de Jesus que anunciam a traição de Judas, em vez de ásperas, como sói acontecer nestes casos, são brandas, um discreto convite para que desista de seus propósitos. Para agravar ainda mais a situação, quem está traindo Jesus não é um estranho, mas um companheiro. Companheiro é aquele com quem se compartilha do mesmo pão, se come no mesmo prato. A dor de Jesus, porém não era por sentir-se traído e sim por ver seu amigo e companheiro enveredar-se no caminho da perdição.

  • Na Última Ceia a instituição da Eucaristia

Dentro da história da Paixão dois momentos, intimamente unidos, merecem destaque: a Última Ceia e a crucificação. Vamos nos ater ao primeiro, deixando o segundo para Sexta Feira Santa.

O contexto deste evento é a celebração da Páscoa judaica, sombra e figura da Páscoa verdadeira e definitiva: a Páscoa de Jesus Cristo que está para acontecer e que vem assim descrita por Mateus: “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e distribui-o aos discípulos, e disse: ‘Tomai e comei, isto é o meu corpo’. Em seguida tomou um cálice, deu graças e entregou-lhes dizendo: ‘Bebei dele todos’…”.

Não é difícil perceber atrás desta iniciativa a lei fundamental de todo apaixonado: inventar jeitos para entrar e continuar em profunda comunhão com a pessoa amada. Como estava próxima a hora de voltar para o Pai, de se ausentar dos seus amados, Jesus precisava descobrir, inventar uma nova forma de continuar com os seus, diferente da figura humana que recebera de sua mãe, a virgem Maria. E essa apareceu na celebração da ceia pascal.

Assim, o pão e o vinho santificados pela sua palavra terão, para além de sua substância de trigo e uva, a substância de sua Paixão, de sua entrega total e irrestrita ao Pai e aos homens até a morte e morte de Cruz. Quem garante o mistério dessa “transubstanciação” é Ele mesmo ao proclamar que Isto é o meu corpo e o meu sangue do Novo Testamento que será derramado por muitos. Além do mais, para que essa Paixão jamais seja desvirtuada Ele mesmo ordena que tudo isso se faça sempre em sua memória (1Cor 11,25), jamais na memória do que ou de quem quer que seja. Antes de uma imagem, figura ou re-presentação, estamos diante de uma nova presença de Jesus. Por isso, diz: Isto é o meu corpo. Ou seja: “Este pão sou eu mesmo. Não pensem que seja apenas uma lembrança de alguém que já passou. Nele deveis ver a mim mesmo, como me vistes todos os dias me doando aos pecadores, aos enfermos e marginalizados e, acima de tudo, como me vereis amanhã na Cruz entregando-me todo e inteiramente ao Pai e a vós”.

À cena do pão partilhado – o próprio Cristo que se parte e reparte para os seus – segue outra ainda mais estranha e emblemática: a do vinho que deixa de ser vinho para transubstanciar-se em seu sangue que será derramado por todos. Certamente, perplexos, os discípulos não têm palavras para expressar o espanto diante de tamanho mistério. Se antes o Filho de Deus não se envergonhara de assumir e viver nossa condição humana, finita, limitada, vil e pecadora – num insignificante nazareno, filho de carpinteiros – agora quer ir mais longe. Para levar sua Paixão a todos os homens de todos os tempos bem como a todas as criaturas, também às mais ínfimas como um grãozinho de areia, transubstancia-se num pedaço de pão e num pouco de vinho; vira “matéria”, a realidade mais baixa ou vil dentre todas as criaturas, a menos poderosa e expressiva.

Compreende-se, então, a convocação de Francisco: “Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que não credes neste Filho de Deus? Eis que todos os dias, ele se humilha, assim como quando desceu do trono real para o útero da Virgem; cada dia vem a nós sob a aparência humilde; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar nas mãos do sacerdote” (Ad I). Sim, é difícil crer numa tão grande loucura – Paixão – através da qual Deus leva a tamanho rebaixamento sua identidade de Deus-poderoso, Senhor do Céu e da Terra, a ponto de não ter mais nenhum poder! Pois que poder tem um pedacinho de pão e um pouquinho de vinho? Nenhum a não ser o de ficar ansiando pela nossa acolhida, pela nossa aceitação e amor, esperando que o comamos e o bebamos.

É preciso, pois ter vista boa para ver nas espécies do pão e do vinho o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Vista boa é aquela que no visível vê o invisível. É aquela que vê segundo o espírito e a divindade, isto é, que vê a partir de Deus e não do homem, da carne, como ensina São Francisco na mesma Admoestação.

Assim, com a palavra “corpo”, na Última Ceia, o Senhor quis dizer que Ele está aí, em “carne e osso”, em pessoa, realmente, sem fantasias, de modo que comendo desse pão e bebendo desse cálice, comungamos de seu ser, de sua obra, de seu espírito. E assim o Corpo, ou a Pessoa, que é Ele, passam a ser nosso corpo, nossa pessoa; e, por sua vez, nosso corpo, nossa pessoa passam a ser o Corpo, a Pessoa Dele. O amor, pois cria a igualdade dos desiguais, a unidade dos diversos, a identidade dos diferentes. É o maior dos milagres. Agora podemos entender o sentimento de Francisco quando disse: Choro a Paixão do meu Senhor e por isso não deveria envergonhar-me de andar pelo mundo inteiro chorando em alta voz (LTC 14).

Mas, porque Deus quer ser e entregar-se assim, tão sem poder, tão sem saber, tão sem fazer, tão sem querer, num simples e puro “Nada”? Num abaixamento muito maior e mais vil que o de um escravo? A resposta é uma só: Porque essa é a dinâmica do amor, da Paixão: nada poder, nada querer, nada saber, nada fazer senão querer o que o amado quer, saber o que o amado sabe, pode e faz. Cruz total, absoluta, Eucaristia: a bela, pura e inocente gratuidade. Só assim, fazendo-se “Nada”, poderá ser recebido por aqueles que são, de fato, nada.

Diante de tudo isso, não é muito sadia a espiritualidade que vê a Eucaristia como uma “realidade” um tanto “física”, “material”, uma presença, sim, de Jesus Cristo, mas de modo um tanto estático, fixo, parado, imóvel, semelhante a um monumento histórico, embora sagrado, santo; uma espiritualidade que não vê, não admira, não contempla nela – a Eucaristia – o último esforço, o auge, o resumo, o máximo, a última tentativa “doida” de Deus Pai, através de seu Filho muito amado, vir ao encontro dos homens a fim de entregar-se a eles de modo total, absoluto e irrestrito, não condiz com toda a História Sagrada, muito menos com o mistério da sua Paixão, expressa na Última Ceia. Foi para expressar este espírito ou modo de ser, esta alma (“Alma de Cristo!”), que a Igreja também chamava a Eucaristia, levada aos enfermos ou guardada no sacrário, de “Viático”, isto é, aquele que está “em viagem”, “em visita”, “em saída”, “em busca” para fazer-se companheiro dos seus amados que também estão em viagem, “em saída” para o Pai.

Podemos, assim, dizer que da parte Dele, isto é, que Ele, Jesus Cristo, não se faz presente na Eucaristia para ser adorado, venerado, mas para ser comido, bebido, tomado, aniquilado. Nós, da nossa parte, porém, seríamos dentre todas as criaturas, as mais grosseiras, vis, infelizes e “danadas”, isto é, danificadas (São Francisco, Ad I), se, diante de tamanha entrega e abnegação, não formos capazes de cair de joelhos para exclamar, jubilosos: “Nós te adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo, aqui …”

Neste sentido a imagem do corpo escolhida por Jesus para expressar este mistério não podia ser melhor. Pois o que é o nosso corpo senão uma grande comunidade de servos, uma grande “comungação” de inúmeros órgãos, todos trabalhando, lutando, se empenhando doidamente para que tenhamos vida e uma vida salutar. Vejamos, por exemplo, o que e o quanto não faz o coração a fim de que possamos viver e viver bem!!! E tudo de graça, na alegria de apenas poder gerar vida. Assim é a Eucaristia, o Corpo de Cristo. Ela é a presença, a Comunidade de todas as criaturas do Céu e da Terra, reunidas em Cristo e por Cristo, para servir, entregar a verdadeira vida, a vida eterna aos homens, que não é outra coisa senão a experiência da presença do próprio Pai, a experiência de estar na casa Dele como nossa casa (filho pródigo). E isto é tudo, nosso céu já aqui na terra. Eucaristia: a bela ação, obra de graça. 

Por tudo isso, diz o Papa Francisco, a maior elevação da criação se dá na Eucaristia quando ou onde “o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de fazer-se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontra-Lo no nosso próprio mundo… Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é por si mesma, um ato de amor cósmico” (LS 236).

Conclusão

O tema-mensagem de nossas Pistas de hoje pretende evocar a realidade de todas as realidades, isto, é, a fonte que dá origem e sustento a todas as criaturas: O Rei que se entrega nas mãos de seus inimigos é “Uma Pessoa da Santíssima Trindade que se inseriu no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até a Cruz” (LS 99). Uma entrega que salva e redime. Eis a vocação-missão de Francisco e de seus companheiros, “vistos e tidos, todos, como de fato eram, homens do crucificado” (Atos, 4).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm.