Fonte: Brasil de Fato: https://www.brasildefato.com.br
Incorporadora Tenda iniciou corte de árvores em terreno a oito metros de terra indígena; prefeitura suspendeu licença
Dispostos em formato de meia lua, os indígenas do Pico do Jaraguá, em São Paulo (SP), se reuniram diante das câmeras da imprensa para realizar uma cerimônia fúnebre. Cantavam em guarani crianças, mulheres, homens, idosos e mães carregando nos braços os de colo e no semblante a tristeza e a revolta. O canto era um pedido de desculpas a Nhanderu, o deus criador em guarani, pela agressão aos espíritos protetores da floresta.
Dias antes, 30 de janeiro, a Construtora Tenda S.A. havia derrubado árvores nas imediações da comunidade Terra Indígena do Jaraguá. O objetivo era começar a abrir espaço para construir o condomínio Jaraguá-Carinás, com cinco torres e 396 apartamentos, para cerca de 800 moradores, a oito metros da aldeia Tekoa Ytu. Esta é única das seis aldeias da região que está na fase final do processo de demarcação da terra indígena – as outras têm a originalidade indígena reconhecida por uma portaria interministerial.
No dia em que se iniciou o corte da árvores, os indígenas da região ocuparam a área vizinha para impedir que a Tenda avançasse sobre o terreno. “Primeiro, a gente se reuniu na casa de reza e pedimos orientações a Nhanderu sobre como agir. Foi aí que nós ocupamos”, afirma Thiago Karai Jekupe, liderança guarani de 23 anos.
O Pico do Jaraguá é um patrimônio da humanidade. Ele é o pouco de Mata Atlântica que sobrou na cidade de São Paulo.
Por estar a menos de oito quilômetros de uma terra indígena, os responsáveis pelo empreendimento deveriam levar em conta o componente indígena no processo de licenciamento, como garante a Portaria Interministerial 60, de 2015.
A consulta prévia aos povos também é assegurada por normas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
A área também é protegida por ser considerada parte da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), desde 1994, abrigando um dos últimos pontos de Mata Atlântica da região.
De acordo com a própria Prefeitura Municipal de São Paulo, que se manifestou em nota, existe um “Termo de Compromisso Ambiental firmado junto à Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) que prevê ao todo a supressão de 528 exemplares arbóreos e a compensação ambiental com o plantio de 549 mudas no local. Ainda segundo a prefeitura, o termo determina a doação de 1.099 mudas para viveiros municipais.
Um ofício denunciando o empreendimento foi entregue à SVMA. A própria secretária foi até o local, constatou irregularidades e suspendeu a licença, na última sexta-feira (31).
André Dallagnol, um dos advogados que atua na defesa da comunidade indígena, afirmou que não foram encontradas informações sobre o empreendimento na Fundação Nacional do Índio (Funai), no que diz respeito ao âmbito federal, nem na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), na esfera estadual. “As informações dão conta que a própria Funai também não tomou conhecimento formal a respeito desse empreendimento”, afirma Dallagnol.
Em nota, o órgão afirmou que a Coordenação Regional Litoral Sudeste esteve no local. Segundo a Funai, “os indígenas aguardam de forma pacífica uma resposta da Prefeitura de São Paulo sobre a suspensão do corte de árvores nas imediações. O corte de árvores na área está provisoriamente suspenso por 20 dias, conforme acordo verbal entre lideranças indígenas e representantes da Construtora Tenda”.
Salvar aquele pedaço de mata atlântica é um compromisso espiritual do povo guarani.
Até a publicação desta reportagem, de acordo com Dallagonl, somente a Prefeitura de São Paulo realizou alguma ação, suspendendo a obra. “Oficialmente, a gente ainda não teve nenhuma manifestação do Ministério Público Federal (MPF). A Defensoria Pública da União também está alerta colhendo provas e elementos para caso seja preciso procurar a via judiciária.”
Ao Brasil de Fato, o MPF, que recebeu uma representação dos indígenas contra o empreendimento, afirmou que irá esperar todas as partes envolvidas se apresentarem para seguir com a ação.
Patrimônio da humanidade
O indígena Thiago Karai Jekupe relata que a construtora tentou subornar as comunidades indígenas para realizar o desmatamento. “Eles tentaram de várias formas subornar a comunidade para que aceitasse algum tipo de troca. Nas vezes que eles vieram, tanto no final de dezembro quanto no começo de janeiro, nós dissemos que não era viável esse tipo de diálogo”, explica.
“O Pico do Jaraguá é um patrimônio da humanidade. Ele é o pouco de Mata Atlântica que sobrou na cidade de São Paulo. Hoje, a população no mundo luta em defesa do meio ambiente, porque sabe que sem as florestas, a gente não tem vida. Sem a água, a gente não tem vida. Sem as abelhas nativas, a gente não tem vida, não tem alimento. Então está todo mundo preocupado com o meio ambiente. Aí a Prefeitura de São Paulo se preocupou com o lucro. E quando a gente tiver muito lucro e não tiver mais mata?”
Thiago afirma que o desmatamento não é negociável. Com o empreendimento, ele imagina que pode haver uma criminalização da comunidade indígena, tratando-a como a “favela perto do condomínio”.
E quando a gente tiver muito lucro e não tiver mais mata?
Geni Vidal, tia de Thiago, de 42 anos, afirmou que a cada dia que passa a dificuldade para manter a segurança da mata aumenta. “Tem muitas árvores que foram derrubadas que nossos antepassados usavam para fazer ritual, para fazer remédio para as mulheres grávidas e crianças. Rituais para cerimônias de árvores que davam vida. Como nós seremos humanos, as árvores têm vida. Nosso calendário, em agosto começam a reviver, no nosso ano novo, florescem, dão frutas.”
Construtora
Em nota ao Brasil de Fato, a construtora Tenda afirmou que “todos os procedimentos necessários para a legalização do empreendimento foram adotados, cumpridos e aprovados por órgãos competentes”.
Aleandro Silva, do Conselho Indigenista Missionário, defende que a incorporadora “age como muitas outras empresas e empreendimentos ligados ao garimpo, mineração, agronegócio, desrespeitando a presença dos povos originários dos territórios”.
Para ele, a construtora não esperava essa atitude do povo Guarani. “O empreendimento está a oito metros da aldeia. Então os animais que circulam na aldeia, circulam lá também, assim como as abelhas, que são sagradas para o povo Guarani. Árvores, como o cedro, utilizado em rituais. Salvar aquele pedaço de mata atlântica é um compromisso espiritual do povo Guarani, por isso eles ocuparam e evitaram que mais árvores fossem derrubadas”, assevera Silva.
Edição: Rodrigo Chagas