Carta de Clara e Francisco

Carta de Clara e Francisco

Direto do Brasil para o Encontro Mundial em Assis

Um ponto de partida.

Uma ponte, como as pontes que Santa Clara de Assis desejava construir.

Direto do Brasil, em Encontro Nacional, escrevemos nossa Carta iniciando pelo significado do Sagrado Feminino para a mudança de paradigma na economia global. A Economia, substantivo feminino. Todas as mulheres que nos habitam, “a menina que há em mim, a mulher que há em mim, a mulher que é minha mãe, a mulher que é minha avó”; a menina que é minha irmã e minha filha, a mulher que é minha companheira, a mulher que é minha mãe, a mulher que é minha avó, a todas essas reconhecemos e pedimos perdão. Agradecemos, amamos e honramos os saberes ancestrais transmitidos por elas, pelo feminino que traz a vida em seu ventre.

Nossa proposta, de uma economia baseada no feminino, na acolhida, no cuidado e no afeto, pressupõe uma transição radical nos modos e nas formas de produção. Também expressa um profundo compromisso ético com as gerações que estão por vir. Escutando a silenciosa linguagem de Clara de Assis, nos fazemos ponte a ligar “os que tem de sobre com aqueles que sentem falta de tanta coisa”. Para as novas economias no século XXI, masculino e feminino terão que caminhar lado a lado, ombreados, nem à frente nem à trás, mas de mãos dadas, como o “Irmão Sol” e a Irmã Lua”. Economia de Francisco e Clara é o que pretendemos praticar e honrar.  

Inspirados em Clara e Francisco, manifestamos nosso desejo por uma profunda mudança no enfoque até então estabelecido para as relações econômicas. A começar pela divisão sexual do trabalho, valorizando os saberes tradicionais das mulheres e suas formas de cuidado com a Casa Comum. O patriarcado reduziu a economia unicamente à dimensão material e produtivista, isso distorceu o sentido do bem-estar social, produzindo iniquidade e infelicidade. No caminhar junto entre masculino e feminino, estamos buscando de novos paradigmas: da competição para a colaboração; do egoísmo para a generosidade; da exploração para a sustentabilidade; da acumulação para a distribuição; do desequilíbrio nas relações entre pessoas e países para o equilíbrio com comércio justo e solidário; do consumo desenfreado ao consumo responsável; da ganância ao altruísmo.

A caminho de Assis nos comprometemos com o chamado do papa Francisco para “realmar a economia”. Uma “economia com alma”, comunga as pessoas com todos os seres viventes na Terra, nossos irmãos, filhos da mesma Mãe. Medo, frustração e sofrimento, tem sido as imposições de uma economia sem alma tal qual praticada sob o capitalismo, sobretudo em sua fase neoliberal. Individualismo, consumismo, desprezo ao próximo, egoísmo, vulgaridade, superficialidade e descarte, levarão o mundo à ruína e destruição. Timóteo, entre os primitivos cristãos, já apontava: “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”. Por isso pensamos e pretendemos a economia desde o Comum, desde a escala da vida. Não mais a vida servindo ao sistema econômico, mas a economia à serviço da vida.

Uma Economia a serviço da vida precisa levar em conta a espiritualidade como uma dimensão do Ser. Distinta de religiosidade, a espiritualidade não é algo circunscrito às religiões e vem sendo gradativamente estudada nas ciências médicas, já reconhecida como categoria clínica há três décadas pela Organização Mundial de Saúde, e também nas ciências sociais. Tanto sob a perspectiva religiosa como científica, a espiritualidade deve ser contemplada na Economia de Francisco a partir do exemplo iniciado pelo jovem de Assis, que se despojou de bens materiais para se enriquecer espiritualmente. A Economia com alma não subestima a importância dos bens materiais, mas rejeita o culto à materialidade sob a ideologia do consumismo. Tal é a loucura do capitalismo e sua apologia ao consumismo que fazemos utensílios até que eles nos façam. Edificamos a casa e a casa nos edifica, assim proliferam grandes edifícios urbanos pelas grandes cidades do mundo, como aqueles voltados à guarda de coisas não usadas, a despeito dos limites ambientais do planeta, verdadeiros monumentos ao descarte e à acumulação. Um novo paradigma socioeconômico para o mundo, que leva em conta a espiritualidade e a cultura tem que ser perpassado, sobremaneira, pela inter-religiosidade e pelos valores do afeto e da solidariedade.

Afeto e solidariedade por um mundo humano. Rejeitamos a “natureza não natural”, a “cultura não cultural”, o “humano não humano”. Não queremos ser comandados por algoritmos a maximizarem lucro transformando subjetividades em mercadoria. Rejeitamos a vida pós-biológica e a realidade virtual embaralhando a realidade real. Rechaçamos a imposição de um mundo da pós-verdade e do transumanismo. Não somos Coisa! Nem permitiremos que nos transforem em máquina para produzir e consumir, meras máquinas desprovidas de sentido, sob o controle de gananciosos sem limites. Queremos viver a vida tal qual nos foi ofertada como dádiva e milagre. Esse é o sentido da Economia de Francisco e Clara.   

Conforme alerta Francisco, o papa: “As gerações futuras vão herdar um mundo grandemente deteriorado. Nossos filhos e netos não tem de pagar o preço da irresponsabilidade de nossa geração”. Vivemos em uma época de profundas transformações. A começar pelas mudanças climáticas. E o tempo para reverter essas mudanças está se esgotando.

Não há mais tempo a perder!

Se a economia mundial continuar baseada no uso intensivo do carbono, caminharemos para o suicídio ecológico. “Há que mudar essa atitude perversa” de negacionismo sobre os efeitos das mudanças climáticas na vida do planeta, como bem aponta papa Francisco. Pelos jovens, pelas crianças, pelo futuro dos animais e todos os seres que habitam o planeta, a Economia de Francisco só terá sentido se incorporar firmemente a decisão de manter os combustíveis fósseis no subsolo, reduzindo sua extração, até serem plenamente substituídos. A natureza levou milhões de anos para transformar formas vivas em petróleo, capturando carbono e colocando-o no fundo da terra. É ilógico, e criminoso com o planeta, expelir esse carbono em um período de menos de duzentos anos, quase que de uma só vez em termos de tempo geológico. Essa desfaçatez está afetando irremediavelmente o equilíbrio do planeta.

Resta apenas uma década para contermos o aquecimento global, aponta relatório da ONU, avalizado por toda a comunidade científica. Se ultrapassarmos o limite de 1,5 grau centígrado no aquecimento global, os efeitos serão catastróficos.

Já estão sendo!

As secas, as enchentes, as tormentas e os tornados.

A tenebrosa tarde que se fez noite na cidade de São Paulo, encoberta pela fuligem dos incêndios na floresta amazônica.

O óleo betuminoso a tomar conta de nossas praias; da costa do Maranhão à foz do rio Doce, no norte do Espírito Santo. Óleo que encarde praias, que mata peixes, tartarugas e mariscos. Óleo que impregna arrecifes e manguezais.

Rio Doce, o rio assassinado com a lama da ganância das mineradoras.

Será que não basta para darmos um basta?

Que tormentas mais estamos a esperar?

Quantos rios mais precisaremos matar?

Quantas novas barragens a interromper o fluxo da vida?

Água encardida não traz vida.

Quanto mais água fétida, mais cólera e febre amarela.

Quanto mais fuligem a adentrar em nossas narinas, mais asma e bronquite.

E quando os rios secarem e os matas virarem deserto?

E quando o ar que entrar por nossas narinas começar a arder?

O que diremos aos nossos netos?

O que os nossos netos dirão sobre nós?

Nossa feminista Economia de Clara e Francisco aponta para um novo padrão energético, com produção distribuída de energias limpas e renováveis. A energia do sol, a energia dos ventos, e todas as energias boas que se descobre a partir da ciência de boa ética. Energias produzidas de nova forma, descentralizada, distribuindo conhecimento e permitindo que todos acessem aos avanços tecnológicos. Placas solares ou cataventos desenvolvidos nas comunidades, pelas comunidades, unindo saber local com conhecimento científico. Iluminando e aquecendo casas, ruas, escolas e parques. E indústrias. Novas indústrias, ecológicas e sustentáveis, sob os princípios da economia circular, com produção descentralizada, sem resíduos, em cadeias produtivas curtas, aproximando produção de consumo. Uma economia integrada, a perpassar todas as dimensões do cuidado com a casa. Oikos, casa, lar, ambiente; Nomein, gerenciar, administrar, cuidar; do grego antigo Oikos/Nomein, economia. A produção na escala da vida, com justiça e equilíbrio, democratizando os ganhos de produtividade, que não podem se concentrar apenas aos donos do capital, mas também ao trabalho humano.

Produzir na escala da vida também significa preservar a vida dos demais seres, reconhecendo-os como Sujeitos de Direitos. Os animais tem direitos, as florestas, as plantas, as águas, as flores, as montanhas, todos tem direito à dignidade que preserve o sentido de suas vidas. Essa é a lógica do Teko Porã, o “modo bom de viver na Casa” dos povos Guarani. Os povos originários deste continente que veio a ser chamado América nos ensinam que é preciso que cuidar de nossa morada e de nossa mãe, a Mãe Terra, nossa dádiva, nossa Casa Comum, cabendo a cada geração legar um mundo melhor para os que virão. Essa sabedoria se traduz por Bem Viver, Sumak Kawsay em quéchua, Suma Qamaña em aimará, Küme Mongen, em Mapuche. Promover o encontro entre Economia de Francisco e Clara e o Bem Viver significa o reencontro entre sabedorias ancestrais, reestabelecendo o fluxo para uma vida em abundância e harmonia, pondo em questão a própria ideia de Des-Envolvimento. Para se “desenvolver” não é preciso separar, essa compreensão gera uma falsa ideia de progresso, baseada no individualismo e no interesse privado. É chegado o momento para a Declaração dos Direitos da Natureza.

Para nós, o contraponto é pensar em uma Economia do Suficiente, do justo e do bom, que atenda a todas e todos com equidade, gerando o Bem Viver. Uma economia que fortaleça laços comunitários a construírem o desenvolvimento coletivo, tendo por foco as comunidades como autogestoras de seus processos de vida. O urbanismo colaborativo, as ecovilas, a agroecologia. A produção de alimentos saudáveis, sem veneno, colhidos pela agricultura familiar ou em hortas urbanas. Moradia digna, trabalho como direito, a livre circulação nas cidades, e entre cidades, e entre países. O convívio com o diverso, a cultura, o lazer. A educação e a saúde como bens comuns, jamais mercadoria. Que as pessoas vivam bem, e que a boa vida de cada um não resulte em opressão e exploração sobre os demais.

Essa forma generosa de economia remete a formas colaborativas de produção, em que a tecnologia deve ser um vetor de inclusão, jamais de exclusão. Uma tecnologia a favor do humano, em que trabalho autônomo não pode ser sinônimo de precarização do trabalho. A aparente objetividade proporcionada pela técnica leva o mundo a horrores, porque desprovida de sentimento, esfriando e debilitando o próprio sentido da vida. Forma generosa de economia remete à generosidade intelectual, com o fomento a conhecimentos livres e transferência de conhecimentos e tecnologias para as comunidades, como no caso do software livre, energias renováveis ou agricultura sintrópica, integrando, organizando, equilibrando e preservando sistemas energéticos e de produção.

Economias no plural. Economias solidárias e populares, criativas, colaborativas. A economia circular e ecológica. As economias da dádiva, a festa comunitária, a comunhão. A economia feminista, das mulheres. As economias camponesas e tradicionais. A economia do cuidado, a economia doméstica. As economias digitais e do software livre. A economia da cultura. O mundo do trabalho, enfim. As economias vivas.   

Do coletivo, do comum. Daquilo que é de todos e que tem que ser repartido entre todos. Na Economia de Francisco não há lugar para a ganância, nem para acumulação infinita. Nem para bilionários. Sim, um mundo sem bilionários e mega-fortunas. A concentração de riqueza, tal qual se apresenta nos tempos atuais, é infame. Não se pode tolerar uma economia em que, para acumular bilhões (de dinheiros) é necessário deixar outros bilhões (de vidas) sem nada. Por isso conclamamos àqueles que, por diversas circunstâncias, estiverem na condição de bilionários, que comecem a repartir, por iniciativa própria, por consciência, assim como fizeram São Francisco, Santa Clara e tantos jovens de Assis.

O mundo não pode esperar mais, é preciso instituir uma taxação internacional sobre fluxo de capitais e movimentações financeiras em Paraísos Fiscais. A era do capital improdutivo precisa chegar ao fim. Grandes Fortunas, artigos de luxo, supérfluos ou que fazem mal à saúde, precisam de taxação específica. Não é possível que aqueles que tem tanto sigam com tantos privilégios, recebendo isenções e subsídios enquanto bens e artigos essenciais são taxados em razão inversa. Onera-se o trabalho e libera-se o capital. Esse é um mundo ao revés, que cobra tanto daqueles que tem tão pouco e cobra tão pouco daqueles que tem tanto. A acumulação capitalista se fez a partir da superexploração dos recursos naturais e humanos. O subsídio a tanta ganância foi pago com a vida de gerações inteiras, também as montanhas pagaram seu tributo, os bosques, os cursos d’água, os oceanos. Sistemas de vida foram alterados, quando não destruídos, por completo. Chegou o momento para uma tributação social e ecológica que resgate as dívidas social e ambiental, bem como a rediscussão do Sistema de Dívida, que escraviza países e pessoas.  

Pensar um mundo menos desigual é função primeira para a Economia de Francisco e Clara. O modelo econômico capitalista e produtivista, tal qual se apresenta em nossos tempos, se contrapõe ao cuidado da Casa Comum. As dimensões de nossa Casa são conhecidas e os recursos esgotáveis. É ilógico a prevalência de um modelo econômico que prega a acumulação sem limites e a exploração infinita. É inaceitável um modelo econômico que pretende transformar a última gota de água limpa em líquido pútrido, transfazendo o humano em coisa. A ideologia de mercado, agravada pelo neoliberalismo, está levando a humanidade ao suicídio.

Para que a Economia de Francisco e Clara floresça é preciso assumir essa visão com clareza, sem meias palavras. Nosso método de ação é fraterno, é de paz, mas sabemos de que lado estar. Nossa opção preferencial é pelos pobres, pelos excluídos, pelos desvalidos. Pelo pão, pelo trabalho, pelo teto e pela terra, pelo planeta. Pelo que é justo. Não nos restringiremos a ações paliativas ou pontuais. Queremos discutir a macroeconomia e o poder que a impõe, seja no universo micro ou macro. Para tanto não há como prescindir do Estado como estrutura para promoção do equilíbrio entre igualdade e liberdade. A desigualdade se agravou a níveis nunca vistos na história da humanidade na exata proporção em que os Estados eram enfraquecidos, até serem plenamente capturados pelo poder absoluto do dinheiro, degradando o próprio sentido da democracia. É preciso reverter esse quadro.

Políticas públicas de qualidade, inventivas e universais, justas e bem executadas, também dizem respeito à Economia de Francisco e Clara. Assim como a ética na execução dessas políticas. Nós vamos disputar a formulação e implantação das políticas públicas. Sempre com amplitude, em diálogo respeitoso e sem sectarismo, mas assertivo, com estudos aprofundados, experiências concretas. E traduzido em linguagem acessível, popular, que desmistifique o conhecimento, permitindo que todas as pessoas possam compreender, ao menos um pouco, sobre o intrincado mundo da gestão de Estado e das finanças. É preciso mudar a legislação tributária do Brasil e do mundo. Reforma da arquitetura financeira, com fomento a Bancos Públicos e Comunitários; regulação de fluxos de capital; reforma tributária, com desoneração do consumo popular e cobrança de impostos sobre propriedades, heranças e renda de capital; redução de subsídios a combustíveis fósseis e incentivo às energias renováveis.

Desde o Brasil, reafirmamos a importância e necessidade de consolidação de propostas e experiências iniciadas em nosso país. Propostas que precisam ser reapropriadas pelo povo brasileiro, bem como ofertadas para o mundo, como já acontece com algumas políticas idealizadas e experimentadas por aqui. A Renda Básica da Cidadania, experimentada como Bolsa Família, que permitiu retirar mais de 30 milhões de pessoas da condição de pobreza ou miséria; uma Renda Cidadã, caminhando para uma Renda Universal a assegurar dignidade e meios de sobrevivência para todas as pessoas. Orçamento Participativo, em que os cidadãos possam decidir sobre a aplicação de recursos públicos em suas comunidades; essa experiência se espalhou por cidades brasileiras e de muitos países, cabe aprofunda-la, contemplando a origem das receitas públicas, não atendo-se apenas às despesas, e ampliar para a efetividade em outras esferas de poder, não somente o local. Rede de Economia Solidária e Finanças Solidárias, estimulando a criação de moedas virtuais locais, com controle social e arranjos produtivos locais. Segurança alimentar com o Plano de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, com incentivo à produção de alimentos saudáveis, livres de veneno, em transição agroecológica, sobretudo na merenda escolar, estimulando a educação alimentar e nutricional, a exemplo do Guia Alimentar para a População Brasileira.

 Saberes e experiências, nascidos nas franjas, nas bordas do sistema hegemônico, não podem mais ser considerados ações periféricas. É preciso que passem para o centro do debate sobre economia e desenvolvimento. A economia de mercado tem colocado os povos à serviço da lógica dos mercados, exacerbando comportamentos individualistas, consumistas e irresponsáveis. Cabe jogar luz para as outras formas de ser, pensar e agir. As linguagens do coração, da cabeça e das mãos, que brotam do Brasil escondido e até sufocado.  Partimos das ações simples, do real, de experiências bem-sucedidas, idealizadas e construídas no seio das comunidades brasileiras, de norte a sul do país, de leste a oeste, das favelas aos pequenos municípios, do litoral ao sertão, das grandes metrópoles aos povos das florestas. Em meio à escassez brotam as saídas. E voltará a esperança.

As moedas sociais, locais, que incentivam as comunidades a aplicarem seus recursos em negócios gerados na própria comunidade, com bancos comunitários amparando a fiança solidária. As relações econômicas surgidas na base da confiança nas relações interpessoais, as compras coletivas, os pequenos empreendimentos. A exitosa política com a instalação de um milhão de cisternas no semiárido, melhorando a qualidade de vida das famílias em convívio com a seca, fruto de uma ampla articulação de organizações comunitárias no semiárido brasileiro. A agricultura familiar e camponesa, em que o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra é o maior produtor de alimentos orgânicos na América Latina, com 14.000 toneladas de arroz orgânico, entre outros alimentos. A rede de Agroecologia e Agroflorestas, com mais de mil entidades. As cooperativas de produção, o cotrabalho, a revalorização dos ofícios e saberes tradicionais, atualizados nas formas contemporâneas possibilitadas pela cultura digital. Os Pontos de Cultura fomentando a identidade e diversidade cultural, em 1.100 municípios, com mais de 3.500 Pontos, nos rincões mais afastados. Os coletivos de artistas, de jovens, de mulheres, de negras e negros, dos lgbt. As redes dos povos quilombolas, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais. Esse quadro sistematiza o que já está sendo feito, bem como apresenta propostas novas, como a educação dos jovens para a ação solidária e cidadã, com os Agentes Jovens da Comunidade. Uma política pública que ainda não teve escala necessária, mas que já foi experimentada com bons resultados, em uma primeira edição com 5.500 jovens na cidade de São Paulo e outra com 11.000 em todo o país. Um aprendizado-serviço junto a organizações comunitárias. O oposto do serviço militar, um serviço civil que valoriza organizações comunitárias a serem transformadas em potentes espaços de acolhida, aprendizado e experimentação, para os jovens da Economia de Francisco e Clara. 

Toda essa vitalidade, presente no solo brasileiro, ensaia novos modelos de política e autogestão. É esse caldo de cultura colaborativa, mesmo em meio a um ambiente de regressão econômica, social, política e até mesmo civilizatória, que nos faz ter esperança no Brasil. O autoritarismo, caminhando para o fascismo, impondo o horror econômico, exacerbando preconceitos e violências, colocando pessoas contra as outras, em meio a manipulações e fakenews, passará. A Economia de Francisco e Clara chega para ficar e começa fazendo o necessário; depois, o que é possível; até que estaremos fazendo o impossível. Como São Francisco de Assis, pretendemos fazer o impossível a partir das coisas simples.

Há que falar de democracia. De democracia real, substantiva, para além das aparências, do simples votar, em que a democracia econômica é condição para a democracia social e política. Uma democracia para um mundo diverso, plural, poliédrico e não esférico e uniforme. Nossa beleza reside no fato de que somos iguais e diferentes ao mesmo tempo, por isso defendemos uma democracia que permita aos povos se apropriarem dos meios de governança. Com Estados democráticos, que coloquem seus meios à serviço da vida, não dos mercados. Mesmo assim é preciso ir além dos Estados, fortalecendo a sociedade civil e processos democráticos pela base, autogestionários, comunitários, com juntas locais de bom governo e confederalismo democrático. Conselhos, ouvidorias, ações civis públicas, mandados de segurança e participação comunitária em processos judiciais de interesse coletivo, via amicus curiae. A democratização das cidades e a ocupação de espaços públicos. Tudo isso demanda legislação, regulação, o repensar modelos de financiamento de campanhas eleitoras, de governança democrática, de controle social sobre o judiciário, ministério público e polícia, modos e formas de decisão, não somente na democracia representativa, mas participativa, direta, mediada via conselhos. Do local e comunitário à governança planetária, com a reformulação e democratização dos Organismos Internacionais. Vivemos todos em uma mesma Casa, é chegado o momento para se abrir espaço para uma Cidadania Planetária.

Tratar de democracia é também falar sobre os Bens Comuns, os bens que são de todos e que não podem ser apropriados pela ganância. A água, o ar, a saúde, a educação, a cultura e o lazer, o ir e vir. O Teto e o direito à moradia digna. O trabalho como direito. Não é ético um país subutilizar dezenas de milhões em sua força de trabalho, no Brasil são sessenta milhões de pessoas entre desempregados, subempregados e precarizados. É muita energia humana descartada, ainda mais em um país em que há tanto por fazer. Democracia real é debater o mundo do trabalho, a democratização dos ganhos de produtividade e as transformações em curso, a redução da jornada de trabalho. Terra, trabalho, teto e liberdade para que todos possam viver melhor. 

No caminho a Assis nos somamos pelo Pacto Educativo Global, também lançado pelo Papa Francisco. Concordamos que é “fundamental trabalhar a partir da educação em sistemas alternativos que não tenham como premissa a ideia de idolatrar o dinheiro. Temos que buscar desenvolver programas e estudos em torno do conceito da economia circular, que contribuam para uma educação consciente da sustentabilidade ambiental, que requer devolver ao meio ambiente o que lhe é retirado”, conforme pronunciamento do Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, no lançamento do chamado para Assis.

Unidos ao Pacto Educativo Global, propugnamos por mudanças nos currículos dos cursos de economia. Também pela mudança nos currículos de todos os cursos. Da educação infantil ao ensino superior, passando pela educação do trabalho, buscando alcançar uma educação integral para uma ecologia integral. Queremos a valorização dos professores e a formação desses para orientarem seus alunos na redescoberta do sentido do Bem Comum. Também valorizando os saberes tradicionais e comunitários como parte integrante dos currículos. Uma educação sobre nossos direitos e deveres, sobre a ética da responsabilidade e da reciprocidade, em que a educação econômica aconteça desde a educação básica

Nessa caminhada afirmamos nosso compromisso por uma Transformação Global, em uma Ecologia Integral, tendo por base cinco palavras, que, em português, são iniciadas pela letra E:

Ética;

Economia;

Ecologia;

Educação;

Estética.

Com essa base lutaremos para o surgimento de um novo modelo civilizatório. Nesse modelo, não mais será “um ou outro” e sim “um E outro”. Um mundo em que caibam outros mundos. Em que a beleza e a partilha do sensível seja uma constante em nossas ações, harmonizando forma e conteúdo. Em que a educação seja transformadora, ecológica, emancipadora. E que nos reencontremos com a ecologia, nos reconhecendo como uma espécie que não pode viver “à parte” do planeta, mas sim como “parte” do planeta, como filhos de uma mesma mãe. Nossa ação econômica será orientada para novos modos de obtenção e utilização dos recursos necessários ao bem comum. E que a ética jamais se afaste de nós.

Beleza e alegria, arte e cultura, justiça e felicidade, são os nossos votos para Realmar a Economia, para tanto propomos trocar os números frios para medição do Produto Interno Bruto dos países, pelos indicadores quentes da Felicidade Interna Bruta. “A alegria é a prova dos nove!”, disse o poeta modernista Oswald de Andrade. A Economia de Francisco e Clara, para dar certo, precisa ter como principal indicador a alegria que ela irá proporcionar aos viventes desta abençoada província do universo. Quando isso acontecer, saberemos que Clara e Francisco também estarão alegres.

A Economia de Francisco e Clara, inspirada no Cântico das Criaturas, está chegando e nos unimos a ela!

Bela e radiante,

Louvada sejas, com todas as suas criaturas.

A Economia do irmão Sol e da irmã Lua com as estrelas

Louvada sejas, pelo irmão vento, pelo ar ou nublado.

Serena, às tuas criaturas dará sustento.

Útil e humilde, saciará nossa sede.

Os frutos diversos, as coloridas flores e ervas,

Todos somos filhos de nossa mãe Terra.

Louvai e bendizei a meu Senhor,

E dai-lhe graças!

 

 

ARTICULAÇÃO BRASILEIRA PELA ECONOMIA DE FRANCISCO

São Paulo, 19 de novembro de 2019

(I Encontro Nacional, realizado no Teatro de Arena (Tucarena) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUCSP. Carta revista e ampliada a partir do encontro de planejamento rumo a Assis, em 18 de janeiro de 2020, na Escola de Formação do DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)