SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – 2020

SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS

Ano A

Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da palavra: Nn 6,22-27; Sl 66; Gl 4,4-7; Lc 2,16-21

Tema-mensagem: Maria, a santa Mãe de Deus, gera e oferece ao mundo o Príncipe da paz

Sentimento: júbilo

 Introdução

“Solenidade de Maria, Mãe de Deus!” É assim que a Igreja, hoje, dentro da oitava do Natal, expressa e celebra jubilosa a identidade mais profunda, misteriosa e encantadora, mas, também dramática de Maria. Com Maria, a Mãe de Jesus, a Mãe de Deus e, por extensão, nossa Mãe, a Mãe do Príncipe da Paz universal, temos também a graça de podermos, hoje, começar mais um novo ano civil.

 

  1. A grande bênção patriarcal (Nn 6,22-27)

A primeira leitura de hoje traz a bênção aarônica, benção sacerdotal da Antiga Aliança, cuja invocação foram incumbidos Aarão e seus filhos: «Invocarão o meu nome sobre os filhos de Israel e Eu os abençoarei» (Nm 6, 27). Como dádiva divina graciosa, dispensada pelo Senhor, em sua liberdade soberana, a bênção nasce sempre de seu bem-querer pessoal. Por isso, sempre se expressa num relacionamento de intimidade de um “Tu” para outro “tu”: “O Senhor te abençoe e te guarde…” (Nm 6, 24).

A invocação do nome do Senhor sobre o povo é como a garantia de uma assinatura, de um selo de pertença e ao repeti-lo por três vezes como o penhor, cada vez, de uma nova dádiva:

– “Que o Senhor te abençoe e te guarde!” (Nm 6, 24) – doa proteção. No homem, Deus vê o seu Filho muito amado, a menina dos seus olhos – o seu alumnus, o seu pupilo. Por isso, o Senhor o protege como à menina dos seus olhos;

– “O Senhor faça resplandecer sobre ti o seu olhar e te conceda sua graça!” (Nm 6, 25) – doa perdão, misericórdia. Deus quer que além dos anjos, também nós comunguemos de sua identidade mais profunda, de sua benevolência, do seu amor através de um rosto sorridente, alegre e misericordioso como o rosto do pai do Filho pródigo. Jamais de ira, recusa ou condenação;

 – “O Senhor volte para ti o seu olhar e te dê a paz!” (Nm 6, 26) – doa paz. Literalmente é: “Que o Senhor levante o seu rosto para ti e te dê a paz!” Levantar o rosto significa acolher. Que o Senhor te acolha! Que ele não desvie o rosto de ti! Esta é a vontade paterna de Deus: acolher o homem que se volta para Ele.

A primeira leitura termina com esta orientação “Assim, invocarão o seu nome”. O Nome do Senhor é secreto, maravilhoso (Gn 32,30; Jz 13, 18). É um nome inominável, inefável porque acena, guarda e comunica tudo aquilo – o mistério – que Deus quer ser para o seu povo: “Iahweh”, o Deus que quer marcar presença, caminhar com eles e ser, enfim, um deles.

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  1. Filhos no Filho (Gl 4,4-7)

A segunda leitura, tirada da Carta aos Gálatas, começa com o anúncio do cumprimento do tempo messiânico: “Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou seu Filho…”

A vinda de Cristo na história humana, porém antes de uma chegada repentina, a modo de um meteorito, vem de dentro, num processo de nascimento: “nascido de uma mulher, nascido sujeito à lei”. Neste processo Jesus vai assumindo todas as consequências e vicissitudes da condição humana decadente desde a queda de Adão. Para a mensagem de Paulo é de suma importância insistir que o Filho de Deus é um homem como todo e qualquer homem, um homem inteiramente humano e por isso plenamente inserido naquele “estado da maldição da lei”, no qual e pelo qual se tornou  “maldito a ponto de ser suspenso no madeiro” (Cf. Gl 3,13).

A importância desta insistência de Paulo é para mostrar que só assim o homem é libertado de modo radical e inteiramente de sua condição de escravo da lei; só assim ele – o homem – passa, como Ele, a ser filho do Pai. Esta identificação libertadora segue o caminho da kénosis, isto é, do abaixamento, através da qual Ele imerge inteiramente na miséria humana até a morte mais vergonhosa que é a morte de cruz, atraindo assim, a si todos os que comungam daquela miséria.

Estamos diante de um novo princípio de salvação para todas as relações humanas, sociais, políticas, econômicas e religiosas. Por isso, todos aqueles que realmente proclamam esta fé de filhos do único Pai, devem considerar a si e a todos como verdadeiros irmãos, não podendo admitir nenhuma discriminação de qualquer tipo e em qualquer nível social ou religioso. Bem dizia São Francisco: “Todos vós sois irmãos! Por isso, não vos chameis de pai sobre a Terra, pois, um só é vosso Pai que está nos Céus. Nem vos chameis de mestre. Pois um é o vosso mestre que está nos Céus. Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes e vos será dado. Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles (RNB 22,33-36).

 

  1. Maria fazendo-se Mãe de Deus faz-se também Mãe da nova humanidade e nos dá o Príncipe da Paz (Lc 2,16-21)

Entre os diversos aspectos (mistérios) que envolvem o nascimento de Jesus está o de Maria sua Mãe e dos pastores.

 

3.1. Os pastores sua louvação e anúncio

O evangelho de hoje começa com a visita dos pastores. Na origem desta evento está uma bela notícia, um verdadeiro evangelho vindo do anjo do Senhor: “Hoje nasceu para vós um Salvador” (Lc 2,10-11). O anúncio exige uma dupla resposta: que o sinal seja verificado e que seu sentido aceito. Por isso, vêm pressurosos e de fato, encontram tudo como fora anunciado pelo anjo: Maria e José e o Menino deitado no coxo (Lc 2, 20). Ato contínuo, entoando glória e louvores a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, à semelhança dos apóstolos, mais tarde, diante da ressurreição, saíram a anunciar a Boa Nova deste nascimento cheio de mistério a todos quantos encontrassem, fazendo-se, assim, os primeiros evangelizadores.

Usualmente a tradição cristã vê nestes pastores a figura dos pobres da terra que vivem á margem da segurança e dos benesses do estado e da religião. Mas não podemos esquecer que estes pastores estão ligados a Belém, a cidade de origem  do menino Davi, pequeno pastor escolhido para ser o grande rei, um segundo fundador do Povo eleito, imagem do futuro Messias; devemos também recordar Abrão e demais patriarcas, humildes e simples pastores que, também souberam dar sua resposta de fé à visita e ao chamado do Senhor.

Mas, acima de tudo, o evento dos pastores nos coloca, já de saída, diante do paradoxo fundamental de todo o cristianismo: o Salvador vem em forma de um menino, indefeso, deitado numa manjedoura, envolto em faixas pobres, em meio aos animais. E eles creram – botaram fé – neste sinal – a Senhora Pobreza, dirá mais tarde São Francisco –  e o divulgaram. Assim, neles, os mais humildes, pequenos e marginalizados entre os humildes, pequenos e marginalizados de Israel começou a brilhar, como outrora em Abrão, a nova luz acerca da verdade de Deus e que brilhará em plenitude, mais tarde, no Gólgota: o Crucificado que dá sua vida pelos homens, morrendo entre ladrões. 

  

3.2. Maria a Mãe de Deus 

Em seguida, Lucas nos mostra Maria recolhida e recolhendo (symbállousa) em seu coração todas as coisas que via e ouvia, buscando nos acontecimentos-palavras (tà rhémata)  um sentido divino. Este era o seu empenho maior (Cf. Lc 2,19). Ser mãe, mais que gerar é buscar, colher e recolher o sentido deste milagre da vida – o filho – a fim de poder ser-lhe, cada vez mais, o mais fiel possível. Nele está o seu tudo. Um mistério que a acompanhará por todos os dias de sua vida: um menino que tem sangue de seu sangue, osso de seus ossos, mas que é de origem misteriosa, divina. Como entender esta união divina e humana?

Estamos diante do outrora (século IV) tão discutido e famoso mistério, dogma, da “união hipostática”. Este mistério significa que Jesus é uma única pessoa, portadora de duas naturezas, a divina e a humana, que, sem se confundirem, encontram-se unidas intimamente. Consequentemente, Maria não é simplesmente a mãe do homem Jesus, mas sim do Deus-homem, do Verbo encarnado, ou, como a saudou Isabel “Mãe do Senhor” (Lc 1, 43), verdadeira “Theotokos”, isto é, verdadeira genitora de Deus. Eis o título com o qual nós a saudamos hoje e em todas as “Ave Marias”: “Mãe de Deus”. É o título mais nobre que uma mulher mortal poderia receber. Todos os seus outros títulos emanam dessa sua dignidade de mãe de Deus, “mãe do Senhor”.

Segundo Santo Efrém, o Sírio (+ 373), com esse título,  “Theotokos” (Mãe de Deus), a Igreja antiga quis manifestar para com ela toda a sua devoção, reverência e amor: “Mas, ó Virgem Senhora, imaculada Mãe de Deus, minha Senhora gloriosíssima, minha Senhora beneficentíssima, mais sublime do que o céu, muito mais pura do que os esplendores, os raios, os fulgores solares, … Vara germinante daquele Aarão, vara que verdadeiramente apareceste, e mostraste a flor, o teu Filho, nosso Cristo verdadeiro, meu Deus e meu autor. Tu, segundo a carne, geraste o Deus e Verbo, antes do parto, servindo na virgindade, virgem permaneceste após o parto, e nós fomos reconciliados com Deus, o Cristo, teu filho!”.

 

3.3.  Maria Mãe da Igreja

Por ser a Mãe de Jesus ela se torna também a mãe de todos os seus seguidores, a Mãe da Igreja. Costumamos argumentar que Maria se torna Mãe da Igreja quando no auge da Cruz Cristo dirigindo-se a ela e indicando o discípulo que ele amava, diz: “Mulher eis aí teu filho”, e depois dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” (Jo 19,26-27). Mas, talvez, Jesus esteja dizendo que, agora sim, pela participação dela na paixão da Cruz, Maria consumara sua Maternidade, iniciada com a anunciação do anjo: que agora sim Maria acabava de se tornar a verdadeira mãe Dele – Jesus, dele João e de todos quantos O seguirem.

Quem compreendeu bem esta exclamação foi São Francisco quando redigiu a seguinte saudação: “Salve, Senhora, santa Rainha, santa genitora de Deus, que és virgem feita Igreja” (SVM).

Segundo esta saudação, Maria e a Igreja fundem-se na mesma alma, vocação e missão: a maternidade divina. Assim, quem vê Maria vê a Igreja e quem vê a Igreja vê Maria. Na maternidade de Maria a Igreja contempla e vive a sua maternidade. Na maternidade da Igreja Maria vê prolongar-se sua Maternidade divina.

Assim, o mistério da maternidade divina de Maria em vez de restringir-se apenas a ela, estende-se à toda a Igreja e a toda a humanidade, a toda a Terra. Sim a “nossa irmã mãe terra” também participa deste mistério da maternidade divina gemendo em dores de parto (Cf. Rm 8,22). Sim, todos e todas as criaturas, somos chamados a ser, em Jesus, filhos de Maria e filhos de Deus, como também chamados a ser em Maria mães de Jesus.

Maria torna-se assim a Nova Eva (Mãe da vida e dos viventes) assim como Cristo, seu Filho, se tornou o Novo Adão. Deles devém a Nova Criação: o Natal do Novo Céu e da Nova Terra, a Paz e a Fraternidade universal.

 

3.4.   Deram-lhe o nome de Jesus

O Evangelho de hoje termina dizendo: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo próprio anjo antes de ser concebido”.

Estamos diante do sumo da bênção de Deus, atestado na primeira e segunda leitura de hoje. Ele nos vem em seu Filho Jesus porque Ele é o próprio Deus-conosco, o “Emanuel”, assim decantado por São Paulo: “Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a bênção espiritual nos céus, em Cristo Jesus” (Ef 1,3).

Por isso, para nós o nome “Jesus” é tudo.  É nosso caminho, nossa verdade, nossa vida. Disso souberam e provaram os cristãos do ocidente e do oriente. Os que escreveram sobre São Francisco, por exemplo, falavam de como o nome de Jesus era doce ao paladar espiritual desse Santo. Tomás de Celano, ao mostrar a devoção de Francisco para com a “Natividade do Menino Jesus”, faz questão de anotar como ele pronunciava este nome com singular afeto, “balbuciando doces palavras como uma criancinha”, e como, “para ele, esse nome (Jesus) era como um favo de mel na boca” dele (1C 86). Santa Joana D’Arc, por sua vez, quando ia se encaminhando para a fogueira não cessava de balbuciar “Jesus!”, “Jesus!”,”Jesus!”.

 

 Conclusão

A alegria da Solenidade de Maria, Mãe de Deus, coincide com a alegria da chegada do Ano Novo. Por mais secularizada que esteja esta festa, ainda traz, no ocidente, as marcas do mistério da encarnação. Nosso calendário, dizendo “depois de Cristo”, sempre proclama que estamos reiniciando o tempo de Cristo, que todo o ano é “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Neste sentido o novo ano pode significar a graça de começar, de nascer de novo, como recomendava São Francisco, no fim de sua vida: “Meus irmãos, comecemos a servir de novo e com humildade ao Senhor, porque até agora bem pouco fizemos” (1C 103).

Por tudo isso, vem muito a propósito a Igreja iniciar o novo ano, o dia da paz e da Fraternidade universal, e celebrar a solenidade de Maria Mãe de Deus com a proclamação da primitiva bênção de Aarão, o dia em que “Deus fez Maria sorrir porque ela deu à luz o sorriso de Deus, Jesus Cristo” (Tesouros da Literatura e da História, Santo Antônio de Padua, volume II, 1987; pág. 625 – III Sermão in nativitate domini).

Contemplando este mistério, assim se expressa Santo Anselmo:

Toda a criação é obra de Deus, e Deus nasceu de Maria. Deus criou todas as coisas, e Maria deu a luz Deus! Deus que tudo fez, formou-se a si próprio no seio de Maria. E deste modo refez tudo o que tinha feito. Ele que tudo pode fazer do nada, não quis refazer em Maria o que fora profanado. Por conseguinte, Deus é o Pai das coisas criadas, e Maria a Mãe das coisas recriadas. Deus é o Pai da criação universal, e Maria a Mãe da redenção universal… (Ofício das Leituras, 8 de Dezembro).

 

Como os pastores, nós também, terminada a oitava do Natal, voltemos jubilosos para as casas do nosso cotidiano, glorificando e louvando a Deus por ter-nos concedido a graça de ver, celebrar e testemunhar, mais uma vez, o Mistério divino-humano de Jesus e de Maria, a Mãe de Deus. 

Por intercessão de Maria a Mãe de Deus, que durante todo este novo Ano:

“O Senhor te abençoe e te guarde!

O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face, e se compadeça de ti!

O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz” (Nm 6, 23-26).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini