4º DOMINGO DO ADVENTO – 2019

4º DOMINGO DO ADVENTO

22 de Dezembro de 2019

Pistas homilético-franciscanas

 

Liturgia da Palavra: Is 7,10-14; Sl 23 (24); Rm 1,1-7; Mt 1,18-24. 

Mensagem-Tema: Maria ficou grávida pela ação do Espírito Santo.

Sentimento: expectativa

Introdução 

Estamos às portas da solenidade do Natal do Senhor. Já não é João Batista, o precursor, mas Maria, a Virgem e Mãe, quem vai nos introduzir no Mistério que vai dar um novo sentido, um novo rumo à história de cada um de nós e de toda a humanidade. 

 

  1. Emanuel o grande anúncio de Isaias (Is 7,10-14)

A primeira leitura de hoje, do profeta Isaias, começa situando os leitores com estas duas simples e enigmáticas palavras: “Naqueles dias”. Aqueles dias eram dias de muita angústia e medo para a dinastia do grande Rei Davi e para todo Israel: era iminente tanto a perda da soberania frente ao império assírio como a ameaça de usurpação do trono, por parte dos sírios e efraimitas. É então que Isaías foi enviado com o seu filho, Shear-Iashub, para pedir calma ao rei. O menino, que acompanhava Isaías, seu filho, era um sinal: que o rei devia ter confiança. Por isso, Isaias profetizava: “Se não crerdes (se não tiverdes confiança), não sereis firmados” (Is 7, 9)[1]. 

É neste contexto, então, que nos é apresentado o oráculo do Emanuel: “O Senhor falou a Acaz nestes termos: ‘Pede um sinal para ti ao Senhor, teu Deus; pede-o nas profundezas ou eleva teu pedido às alturas’”. A alusão ao mundo de cima e ao mundo de baixo, mostra que o sinal – o seu acontecimento – tem uma significância universal, cósmica, que abrange não só a terra, mas também o céu e o mundo inferior, concebido, então, como o domínio dos mortos. O desejo e o poder de Deus é por uma salvação universal, que chega a abranger vivos, mortos e imortais. Por isso, o rei pode crer, e se firmar. Mas, Acaz, sob o pretexto de não poder pôr à prova o Senhor, se recusa a pedir o sinal. Ele prefere confiar mais no cálculo, nas estratégias e nos poderes humanos do que no Senhor e em seu poder incondicional e universal. Não obstante esta falta de fé de Acaz é dado o oráculo, precedido, porém por uma severa reprimenda à “casa de Davi”, isto é, à dinastia, que leva o seu nome, à família real e à sua coorte: “É pouco para vós cansardes os homens, quereis cansar também o meu Deus?”. Com efeito, o povo estava com o coração agitado (7,2) como as árvores das florestas ficam agitadas pelo vento. Poderia, por acaso, este povo preferir no trono do reino de Judá um usurpador do que um filho de Davi?

Por isso, o Senhor reafirma suas promessas a Davi e à sua descendência: “Pois bem, o Senhor mesmo vos dará um sinal. Eis que a jovem está grávida e dá à luz um filho e lhe dará o nome de Emanuel”. O sinal é, pois, um menino nascido de uma jovem ou virgem[2]. Desde o século II a. C., o judaísmo viu nesta passagem do oráculo, a indicação de um nascimento excepcional do Messias, um nascimento virginal. Seria, pois, um sinal verdadeiramente extraordinário. Mateus aplicaria à Maria o título da “Virgem”, mãe do Emanuel e, com ele, toda a tradição cristã. O nome que será dado ao filho da Virgem, “Emanuel”, traz uma promessa de salvação: “Deus conosco”; um nome, um penhor, uma garantia, de que Deus não abandonará o seu povo, isto é, aqueles que o invocam com fé e nele se firmam.

 

  1. Chamados a ser discípulos do filho da promessa (Rm 1,1-7)

Paulo, na epístola de hoje (Rm 1, 1-7), se apresenta como “servo (do grego “doulos”) de Cristo Jesus”, “apóstolo por chamado”, “posto à parte para anunciar o Evangelho de Deus”. Ele escreve aos “santos pelo chamado de Deus”, que estão em Roma. Isto significa que é o chamado de Deus, a vocação que santifica, consagra o homem, à medida que ele acolhe o anúncio do Evangelho (Boa Nova), e segue a Jesus Cristo pela “obediência da fé”. A obediência da fé é a abertura da escuta, a capacidade de abandonar o mundo e deixar-se aviar na via do seguimento de Cristo, pondo em obra o que ele ensina e como ele ensina. 

Ao falar do “Evangelho de Deus”, Paulo faz questão de realçar que este Evangelho é uma Pessoa, um homem “autenticado como Filho de Deus”, oriundo segundo a carne da estirpe de Davi, estabelecido, segundo o Espírito Santo, Filho de Deus com poder, por sua ressurreição de entre os mortos: Jesus Cristo, nosso Senhor”. Uma pessoa, portanto, com duas naturezas: humana e divina. 

Paulo, porém, não apresenta esta dupla natureza da pessoa de Jesus em forma dogmática, doutrinária ou informativa, mas sim em forma de querigma, isto é, no vigor do anúncio primeiro, fundamental, originário do mistério salvador, pascal de Cristo: sua paixão-morte-ressurreição. Primeiro significa, portanto e aqui, princípio. Jesus torna-se, assim, o princípio do pleno cumprimento da lei e da plena realização das promessas, das profecias das Escrituras. “Segundo a carne” ele é o “filho de Davi” e “segundo o Espírito Santo” “Filho de Deus com poder”. “Carne” significa, aqui, um israelita, da tribo de Judá, da estirpe de Davi, o humano todo em sua finitude e fragilidade. Em contraste com isso, Jesus é também apresentado como “Filho de Deus com poder” “segundo o Espírito de santidade”.

Falando deste mistério, assim se expressa São Francisco: “Esta Palavra do Pai, tão digna, tão santa e gloriosa, o altíssimo Pai anunciou do Céu, por meio do seu santo anjo Gabriel, no útero da Santa e gloriosa Virgem Maria, de cujo útero recebeu a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade. Sendo rico, acima de todas as coisas, Ele mesmo, juntamente com a beatíssima Virgem Maria, sua Mãe, quis no mundo escolher a pobreza” (2CF 4-5).

 

  1. A misteriosa origem de Jesus (Mt 1,18-24)

Com este plano de fundo – o oráculo do Emanuel, de Isaías, o “evangelista do Antigo Testamento”, e o querigma de Paulo – podemos ler e acompanhar, agora, o evangelho de hoje. Devemos levar em conta, porém, que São Mateus, o evangelista que escreve o Evangelho a partir do horizonte da história do povo de Israel, começa-o provando, principalmente para o povo judaico, que “Jesus Cristo é filho de Davi, filho de Abraão” (Cf Mt 1,1-17). Com isso, quer dizer que, através do Povo e da história de Israel, a humanidade toda foi se preparando, até chegar a plenitude dos tempos, para poder “produzir” o seu fruto mais precioso e decisivo, tanto do passado como do futuro: Jesus Cristo. 

 

  1. Um “porém” que muda tudo

No entanto, logo, de saída entra um contraste! Assim que o evangelista começa a narrar a gênese (origem) de Jesus Cristo faz questão de assinalar um “ora”, ou “porém”.  Literalmente, ele diz: “Ora, a gênese de Jesus Cristo foi assim…” (Mt 1,18). O que significa este “ora” ou “porém” (em grego assinalado pela partícula “dé”)? Os padres da Igreja o leem assim: a geração de Jesus Cristo, que será narrada em seguida, não é como as demais, que foram evocadas antes. Com efeito, a genealogia anterior fala de quarenta e duas gerações entre Abraão e Cristo (6 x 7), isto é, de uma era que é algo como seis semanas de gerações, aguardando o surgimento do homem novo. O “porém”, em questão, quer dizer: o que se vai narrar agora é uma coisa nova, totalmente inusitada, inaudita, que não acontece segundo a ordem da natureza; algo que atesta a ação direta de Deus na história; algo que vem cumprir sua antiga promessa: a Virgem – Maria – ficou grávida e deu à luz o Emanuel. Mas, recebendo o nome por meio de José, da casa de Davi, torna-se legalmente o seu filho. Assim, o filho da Virgem concebido pelo poder do Espírito Santo, o Filho de Deus, torna-se, também, “filho de Davi”, “filho do homem”.

 

  1. Maria ficou grávida do Espírito Santo

Como foi, pois, a gênese de Jesus Cristo? “Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José. Ora, antes de terem coabitado, achou-se ela grávida por obra do Espírito Santo”. Naquele tempo, no mundo judaico, antes mesmo de coabitarem, os jovens que se tinham comprometido ao casamento já eram considerados casados e só o repúdio legal poderia desfazer este vínculo. Maria achou-se grávida, pois, antes de qualquer conúbio carnal com José. Mateus é claro em salientar a concepção virginal de Maria. Este fato inusitado provocou em José um estado de perplexidade: “José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la publicamente, resolveu repudiá-la secretamente” (Mt 1,19). José era justo. O que significa, aqui, “justo”? Que tipo de justiça é esta a de José? Certamente, não é a justiça segundo a Lei, pois esta mandava denunciar a mulher adúltera, para que fosse apedrejada até a morte, e, se o marido não o fizesse, estaria sendo cúmplice do crime. No entanto, mesmo sendo o adultério a única explicação “natural” para aquela situação, José resolve se calar, isto é, não denunciar Maria como adúltera. Ao mesmo tempo, prefere não se comportar como cúmplice, e, por isso, resolve repudiar Maria em segredo. Certamente, “em segredo” significa viver com ela assumindo o filho dela como se fosse seu, mas rejeitando-a intimamente. Como, de que tipo é, então, esta justiça de José? 

Certamente, aqui, em vez da justiça dos homens se trata da justiça de Deus que se assenta mais nas medidas sem medida da benignidade piedosa do que no rigor da lei sem piedade e misericórdia.  Na verdade, José estava em um estado de perplexidade, de aporia, num beco sem saída, num intransitado. Aquela que antes ele conhecera como uma mulher casta, íntegra, agora a encontra grávida. Não podia compreender! Havia algo de mistério naquela situação. Todavia, à suspeita, se seguia, também, o assombro e a maravilha ante um mistério que parecia ultrapassar o curso ordinário das coisas da vida. O extra-ordinário o visitava na gravidez de Maria!?

Foi então que “o anjo do Senhor lhe apareceu em sonho e disse: ‘José, filho de Davi, não temas receber em tua casa Maria, tua esposa: o que foi gerado nela provém do Espírito Santo, e ela dará à luz um filho a quem porás o nome de Jesus, pois é ele que salvará o seu povo dos seus pecados’” (Mt 1,20-21). 

No Antigo Testamento, o título “Anjo do Senhor” é usado para evocar a intervenção do próprio Deus. Neste caso significa que o próprio Deus, é a origem de Jesus. Além do mais, chamando a José pelo nome e com a dignidade de “Filho de Davi” fica clara não apenas certa familiaridade mas, também, que aquele filho misterioso de Maria, ao ser assumido legalmente por José como seu filho, receberia também ele o título: “filho de Davi”, e este título receberia um sentido messiânico. José, portanto, não precisava mais temer que estivesse ofendendo a Deus, recebendo Maria como sua esposa em sua casa. Não era digna de morte aquela que trazia em seu ventre o mistério, o “Príncipe da Vida” (At 3, 15). Podia tranquilizar e serenar seu coração, pois “o que foi gerado nela provém do Espírito Santo”. Note-se que o texto evangélico diz: “o que foi gerado nela” e não simplesmente “o que foi gerado dela”. É que “ser gerado em” quer dizer a concepção e “ser gerado de” quer dizer o nascimento. Assim a concepção desta criança em vez de obra de homem é obra de Deus como proclamamos em nosso “Credo”: “foi concebido do Espírito Santo”.

 

  1. Obra da Trindade divina

Os Padres da Igreja, como também São Francisco (Cf. EPN 1), lembram que toda a obra divina é indivisível, isto é, é obra da Trindade. Assim, o que é nomeado aqui como obra do Espírito Santo é também obra do Pai e do Filho. No entanto, o nome do Espírito Santo é evocado de modo especial porque há um nexo muito íntimo entre a maternidade de Maria e o Espírito Santo. Por isso, em algumas imagens da coroação de Maria, ela aparece no meio da Trindade, entre o Pai e o Filho, sendo que o Espírito Santo pousa, como uma pomba, sobre ela. Lembremos que, no relato bíblico da criação, o Espírito Santo paira sobre o abismo das águas primordiais, como que as incubando, para que, do vazio, da escuridão, do abismo, surgisse a obra da criação. “E Deus disse: que a luz seja! E a luz veio a ser” (cfr. Gn 1, 2-3). Agora, no evento da Encarnação do Verbo, a Palavra criadora de Deus, o Espírito Santo cobre Maria como uma sombra (cfr. Lc 1, 35), isto é, dando-lhe, por sua presença eficaz, a fecundidade, para poder gerar como seu filho, o Filho do Altíssimo. Por isso, bem a saúda São Francisco: “Eleita pelo santíssimo Pai do Céu, a quem consagrou com seu santíssimo dileto Filho e com o Espírito Santo Paráclito!” (SVM 2).

 

  1. Maria a  virgem que reconduz toda a criação à castidade originária

Maria, pela sua concepção virginal, testemunha uma pureza, uma limpidez, uma castidade ontológica, isto é, uma castidade que se dá no seu ser mesmo (P. Evdokimov). Nela, é repristinada toda a criação, toda a humanidade. Tudo é reconduzido à pureza, à limpidez, ao vigor, ao frescor, originário.  Ela é o mar no qual toda a humanidade e todo o cosmos se purificam. Toda a iniquidade que perverte o ser do homem e o ser das coisas em geral nela é superada. Nela a humanidade recobre a integridade arquetípica, a saúde da mente, encontrando a medida apropriada do relacionamento com cada coisa, com a criatura e com o Criador (sophrosyne). Por isso, não só as religiosas e os religiosos, mas também os casais, que, através de seu mistério de união, recordam sacramentalmente o “mistério grande” da encarnação, isto é, da união do Filho de Deus com nossa humanidade, são chamados a se deixar banhar neste mar de Maria, a Senhora do Amor Divino, para participar desta nova criação, repristinada e reconduzida à limpidez originária, e ao frescor do primeiro “fiat” (faça-se)[3].  

 

  1. Lhe darás o nome de Jesus

O evangelho, significativamente, não diz que José dará ao filho de Maria o nome de Jesus. É que dar o nome, no sentido de pôr, de impor o nome, era uma prerrogativa de Deus, desde a eternidade. Portanto, José chama o filho de Maria pelo nome que o Pai deu desde a eternidade: Jesus, isto é, “Deus salva”, “Deus salvador”. Este nome é um tesouro de bens infinitos. Ele será o salvador daqueles que o chamam por este nome, isto é, que, com este Nome, evocam e invocam a benignidade que vem de Deus, ou melhor, que é o próprio Deus.

 Salvará de que? Não de um perigo visível, mas de um perigo invisível, que mina as forças da vida do homem desde o seu interior: o pecado que, essencialmente não é outra coisa senão o afastamento, o esquecimento de Deus e de seus princípios de misericórdia, de perdão e de caridade; é não permitir que Ele tome sobre si os pecados dos homens, sofrendo a rejeição divina na cruz por causa deles. Por isso, dizia São Francisco: “Devemos amar muito Aquele que muito nos amou”. 

 

 Conclusão

Graças ao seu sim, ou melhor, ao seu “Faça-se!”, nenhum ser humano participou mais intimamente do que Maria deste mistério inaudito; graças a este seu “eis-me aqui! Sou vossa serva!” o Filho do Altíssimo tornou-se o “Deus conosco” (Emanuel), tornou-se um de nós, e, assim, também, nosso Salvador. A partir de então Deus não é mais só Deus, mas Deus-humanado, como também o homem não é mais só homem, mas homem-divinizado.

“Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais em casa de Jesus, com uns pobres paninhos numa montanha de ternura” (EG 286). “A mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido” (LS 241). Com ela e como ela, mais uma vez, aguardemos pressurosos o nascimento de seu Filho amado em nossos corações. 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

 

[1] Outra versão diz: “não compreendereis”. Daqui vem o lema de Santo Agostinho: “Credo ut intellegam”: “creio para compreender”. Compreender é, aqui, o mesmo que poder-ser, no sentido de firmar-se, de conseguir ficar de pé, frente aos embates da vida, da história. Na versão latina que Santo Agostinho usava se dizia: “nisi credideritis, non intelligetis” (Não compreendereis, a não ser crendo).

[2] [1] São Jerônimo diz que a palavra hebraica usada por Isaías era “almah”, que quer dizer jovenzinha, mas também ocultada. E remete ao Fenício, em que uma palavra semelhante quer dizer “virgem”. Assim a tradução para o grego como “partenós” (virgem) não seria despropositada. Tratar-se-ia de uma virgem na idade da adolescência, quando ela ainda está ocultada na casa dos pais. Não se usaria, dizia ele, esta palavra nem para uma mulher casada nem para uma mulher virgem de mais idade. 

[3] As etimologias do nome “Maria” (Myriam) são divergentes, isto é, aponta em várias direções: mar amargo (purificador), senhora, amor. Na Idade Média, nos sermões sobre a purificação de Maria, São Boaventura evocará a significação do mar relacionado ao nome de Maria. Daí vem também a conexão de “Stella Maris” (Estrela do Mar).