PRIMEIRO DOMINGO DO ADEVENTO – Ano A – 2019

PRIMEIRO DOMINGO DO ADEVENTO – Ano A

01/12/2019

Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da PalavraIs 2,1-5; Sl 121 (122); Rm 13,11-14; Mt 24,37-44.

Tema-Mensagem: Vigiai, ficai atentos e preparados porque o Filho do Homem virá.

Sentimento: vigilância alegre e pressurosa

Introdução

Começamos, neste Domingo, o Tempo do Advento e com ele mais um ano litúrgico. Neste tempo, olhamos e celebramos as duas Vindas de Cristo. Na primeira, quando Ele veio na fragilidade e na humildade de nossa carne mortal. Na segunda, que acontecerá no fim dos tempos, Ele virá “na plenitude do poder e da glória” (Lc 21, 27). E entre essas duas celebramos também sua vinda misteriosa, espiritual, no dia a dia de nossa vida, através do encontro com as pessoas, os acontecimentos, a história e, principalmente, com os sacramentos da Igreja.

  1. Tempo para ver e acolher a universalidade do Reino de Deus (Is 2,1-5)

Para introduzir-nos na riqueza deste Tempo, a Liturgia da Palavra começa nos recordando a famosa e admirável “visão de Isaías, filho de Amós”. Num primeiro momento, Isaías via o que estava acontecendo, aquilo que todo o mundo via: a procissão dos judeus que subiam a Jerusalém, cantando os seus “cânticos de ascensão”, com os quais os peregrinos, em suas caravanas, saudavam o Senhor e pediam paz para Jerusalém.

Como profeta, porém, neste visível ele via e proclamava o invisível, no patente o latente, no aquém o transcendente, no presente o porvir: o monte do Templo do Senhor se erguendo no cimo de todas as montanhas do mundo inteiro, se elevando acima de todas as colinas, e as nações, muitos povos de toda a terra, subindo para o Templo do Deus de Jacó. Era gente e mais gente de todo o universo, tornando-se todos discípulos do Senhor, ouvindo a sua palavra e seguindo a sua lei. Este povo universal iria participar do Reinado de Deus. O Senhor seria o seu juiz e seu governo, e sobre este povo faria reinar a sua paz. As armas de guerra seriam trocadas por instrumentos de trabalho e as guerras acabariam. Assim, no verdadeiro Israel de Deus, na “Casa de Jacó”, no futuro e num dia se manifestaria a amplitude universal do Reino de Deus; um Reino onde “as espadas serão transformadas em arados e as lanças em foices”. Enfim, um reinado universal de júbilo, paz e confraternização entre todos os povos. 

Daí a conclamação alegre e solene, que Isaias põe na boca dos que se decidem partir em romaria, de todos os cantos da terra: “«Vinde, subamos ao monte do Senhor, ao templo do Deus de Jacob. Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas. De Sião há de vir a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor».

  1. Convidados a subir (Sl 121 (122)

O Salmo 121 (122) faz parte dos “cantos das subidas” para Jerusalém (Sl 120-134). Estes cantos nos conduzem para dentro da mística da peregrinação experimentada como subida, isto é, como elevação ou ascensão do homem para o Monte de Sião, para a Jerusalém celeste, o Templo do Senhor. No centro desta mística está a alegria e a paz que o peregrino suplica ao Senhor para si e para os seus – paz como plenitude de todos os bens. Esta mística da subida é fortemente vivida, celebrada e pensada pelos cristãos medievais. Assim, por exemplo, o “Itinerário da Mente para Deus”, do franciscano São Boaventura, é marcado por essa mística. No seu prólogo, o Doutor Seráfico, por meio de Jesus Cristo, com a intercessão da Virgem Maria e do Bem-aventurado Francisco, começa invocando o Pai das Luzes (Tg 1,17) para que seus passos sejam dirigidos no caminho da paz; daquela paz “que ultrapassa todo o sentido” humano; a paz com a qual Jesus Cristo evangelizou e depois a deu aos seus discípulos; a paz da qual e para a qual Francisco se fez um novo Apóstolo e que colocava sempre como o princípio e o fim de todas as suas pregações (Cf. TC 26); uma paz desejada nas suas saudações e suspirada na sua contemplação. E Boaventura anota: “é dessa mesma paz que fala o pacífico salmista – o rei Davi – quando diz que ele ‘se conservava em paz até mesmo com aqueles que odiavam a paz’. E acrescentou: ‘Pedi tudo aquilo que possa contribuir à paz de Jerusalém (Sl 121, 6)’”. Mas, segundo Mestre Eckhart, para subir à altura da Paz, é preciso descer à profundeza da humildade. Quanto mais nós descemos às profundezas da humildade, tanto mais Deus se abaixa até nós e tanto mais nos elevará. Ele torna nossa alma uma nova Jerusalém: uma cidade de Paz. 

  1. Tempo de revestir-se de Jesus Cristo (Rm13, 11-14)

Na Epístola de hoje, Paulo nos exorta para a riqueza do momento atual de nossa vida cristã: a hora de “despertar”. É hora não apenas de despertar do sono, mas também de se levantar, de acordar, de mexer-se, ficar de pé, subir, e, ainda mais, de vigiar, velar; de ver, olhar, observar, estar atento, como faz o guarda, a sentinela, que, do alto, custodia, guarda, a cidade. Enfim, a hora é de vigília, da vigilância e não da displicência, da indolência, da negligência. Por que? “Porque a salvação (“sotería”) está agora mais perto de nós do que quando cremos”, isto é, do que quando demos o passo, ou melhor, o salto da fé. Assim, o cristão vive o tempo, isto é, a temporalidade e a historicidade da sua existência sempre atento e desperto porque “a noite vai adiantada e o dia está próximo”. Este dia, evidentemente, é o dia “D”, o “Dia do Senhor”, de sua vinda e de nossa salvação definitiva. 

 Ao dia do Senhor, dia da luz, opõe-se a noite, isto é, a escuridão da iniquidade, que põe o homem a perder. Por isso, ele exorta: “abandonemos as obras das trevas, revistamo-nos das armas da luz”. As obras das trevas são os frutos das cobiças (epithymías), isto é, dos desejos imoderados – na comida, na bebida, na sensualidade (Cf. Rm 13,13) – bem como da ira e das paixões desordenadas, acompanhadas de pensamentos vãos e maliciosos, que levam os homens às discórdias e aos ciúmes. É o caminho dos vícios, que leva o homem à perdição.

O cristão, ao contrário, se reveste das armas da luz e faz as obras da luz, que são as virtudes. Melhor ainda: ele se reveste de Cristo Jesus. Paulo gosta deste modo de dizer a pertença do cristão a Cristo: revestir-se de Cristo. Revestir-se é mais do que vestir-se. No revestir-se a veste se torna um hábito, isto é, ela se torna uma disposição estável, um modo constante, permanente de ser, de se relacionar, de habitar, que vai se tornando como que uma segunda natureza em nós, uma nova identidade. O “revestir-se” é, aqui, equivalente a “tomar para dentro” de si, internalizar-se, interiorizar-se. Revestir-me de Cristo significa, pois, que Ele vai se tornando tão próximo e íntimo a mim que, por fim, ele se manifesta como aquilo que ele é: uma identidade que passa a ser o “intimius intimo meo”: o “mais íntimo de mim mesmo do que meu próprio íntimo” – segundo as palavras de Santo Agostinho.

  1. Vigilantes e preparados (Mt24, 37-44)

Também o Evangelho fala da importância e da necessidade de vivermos sempre preparados para o “Dia de Cristo”. Pois, do contrário, poderemos também nós perder-nos todos, como se perderam aqueles homens no tempo de Noé que, distraídos com suas malícias, veladas sob a aparência de uma vida cotidiana “normal”, “nada perceberam” e por isso foram tragados pelas águas do dilúvio. Cristo deixa em silêncio e no oculto o quando deste Dia, porque isto é da competência e da soberania do Pai e não nossa. Mas, sabemos, como disse Paulo, que este é o momento e a hora de estarmos despertos, em vigília, vigilantes. Ao discípulo de Jesus, porém, mais que o quando será o Dia da Parusia – o Dia do seu advento definitivo – importa o como se comportar, isto é, o como caminhar na história, enquanto este Dia não chega. De sua competência é o como e não o quando. Neste sentido, o quando se transforma em tarefa, incumbência, responsabilidade. Uma vez que este Dia virá repentina e inopinadamente ele deve viver cada dia, todos os dias, como se a cada dia se decidisse como há de acontecer o seu último encontro com Cristo. Na verdade, em certo sentido, é assim: a cada dia decidimos como haveremos de nos encontrar com Cristo no último dia.

O maior perigo, neste caso, é a “paz da segurança, da tranquilidade”. É a vida de todos os dias, vivida numa atitude natural, amorfa, isto é, normal, habitual, visualizada e fechada no horizonte do mundo e de seus interesses particulares, egocêntricos. Uma paz e segurança que vela o desespero, a angústia mais profunda da alma do homem em sua desarmonia consigo próprio e em sua separação com Deus. Cristo não condena esta vida natural do homem no mundo. Seu alerta é contra o sono, a letargia, a acomodação, a indiferença, a insensibilidade e a irreflexão, que pode acometer ao homem nesta vida de todos os dias. Assim, o homem é tomado pelo mundo, e seu desespero permanece inconsciente, ignorado, velado para si próprio, e, assim, ele é subtraído de sua pertença a Cristo e ao seu Reino.

O Dia da chegada do Filho do Homem vem repentino e deve pegar a muitos de surpresa, como o cataclismo dos primórdios, o dilúvio do tempo de Noé. Os que estão inquietos, devotados e solícitos com o encontro definitivo com o Filho do Homem são arrebatados ao céu com Ele. Os que estão em “paz e segurança” a partir do mundo, porém, são deixados para serem devorados pelo cataclismo das águas do dilúvio de suas paixões desordenadas e das instabilidades do mundo. 

Esta separação entre os que estavam preparados e os demais que não estavam é o juízo. Por isso, este dia é chamado “Dia do Juízo”. Assim, só os que, numa inquietação salutar, no meio das tribulações da vida permanecerem fiéis na esperança do seu Senhor é que se tornam aptos para participar da consumação da história da salvação e da glória do Filho do Homem, da vida eterna e do novo céu e da nova terra. Os demais, por terem se “satisfeito” apenas com sua “autoreferencialidade” (EG), com aquilo que a vida, vivida no horizonte do mundo ou do mundanismo lhe ofereceu (EG 93-97), tornaram-se inaptos, não dignos desse Reino. Por isso, a insistência de Jesus: “Compreendei bem isto!… Ficai preparados… Vigiai, pois, porque não sabeis o dia em que vosso Senhor (ho Kyrios hymon) virá”[1]. 

Vigiar é estar em vigília: acordado, desperto, de pé, mexendo-se, a caminho, em subida rumo ao Monte, à Jerusalém Celeste. Vigiar é também estar atento, de olhos abertos, como faz a coruja no lusco-fusco do entardecer, como o guarda, a sentinela, do alto da torre, na alta noite, quando os homens dormem. Vigiar é cuidar. Melhor: é cuidar do próprio cuidado. É cuidar para que o próprio cuidado seja lúcido e solícito. É cuidar para que a letargia, o sono, o cansaço, não tomem conta de si próprio. São Gregório Magno escreveu: vela o que tem os olhos abertos na presença da verdadeira luz; vela quem observa em suas obras aquilo que ele crê; vela aquele que afugenta de si as trevas da indolência e da ignorância. Portanto, dorme aquele que descuida do seu cuidado. Vigia, aquele que cuida do seu cuidado, de modo a estar preparado face ao encontro definitivo com Cristo, quando quer que ele aconteça.

Neste ano o evangelista que vai orientar esta caminhada será Mateus. Mateus nos apresenta o Emanuel, o Deus conosco, que permanece conosco até o fim dos tempos. Ele, quando veio do Pai a nós, não O deixou; também, quando voltou ao Pai não nos deixou. Por isso, Ele é o “Emanuel”, o “Deus conosco”, o nosso didata (mestre, docente) de todos os dias, até a consumação dos tempos. Ao mesmo tempo, Mateus salienta o aspecto prático dos ensinamentos de Jesus. Com efeito, em Mateus lemos de modo mais claro a ética do Evangelho, aprendendo, assim a reconhecer a vigência do Reino de Deus e suas consequências, isto é, a soberania do Senhor sobre o seu povo, a sua vontade salvífica regendo, erguendo, elevando a vida dos discípulos, a vida da Igreja e da humanidade. 

Conclusão

Iniciando um novo ano litúrgico nos é oferecida a graça de podermos participar mais uma vez da caminhada de Jesus e de sua salvação. Precisamos, porém, estar vigilantes, a fim de podermos ver para além de nossos interesses mesquinhos e preocupações vãs. Só assim poderemos vê-Lo e acompanhá-Lo tanto nas celebrações litúrgicas como nos refugiados sem pátria, nos desamparados sem casa, sem vez e sem voz, nos doentes, feridos e pecadores. Pois, desde que Ele se encarnou não há como encontrá-Lo e recebê-Lo senão no irmão, no próximo, na criatura, e em cada acontecimento que fazem parte de nossa vida.

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

[1] Há uma conexão entre o verbo “egeíro”, que é despertar, acordar, ficar de pé, etc. e o verbo “gregoréo”, que é vigiar, tanto no sentido de estar em vigília (acordado e sóbrio) quanto no sentido de estar em vigilância, de espreita, atento contra o inimigo que pode vir de assalto.