SOLENIDADE DE CRISTO REI – Ano C – 2019

                          SOLENIDADE DE CRISTO REI – Ano C

            24/11/2019

Pistas homilético-franciscanas

 Liturgia da Palavra2Sm 5,1-3; Sl 121; Cl 1,12-20; Lc 23,35-43.

Tema-Mensagem: Jesus Cristo crucificado Rei do Universo

Sentimento: adoração

Introdução:

Durante todo este ano, mais uma vez, procuramos caminhar com Jesus Cristo participando de seu nascimento, de sua admirável vida pública com os profundos ensinamentos de suas encantadoras parábolas e misteriosos milagres e, principalmente, de sua Paixão-Morte, Ressurreição e Ascensão. Hoje, com a solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo, celebramos a consumação desta caminhada. 

  1. Do anúncio, das promessas e das tentativas da Aliança (2Sm 5,1-3)

O reino de Deus é o centro do anúncio de salvação na Sagrada Escritura. Os mais antigos textos do Antigo Testamento testemunham o que e o quanto o Senhor (Iahweh) fizera para estabelecer uma aliança com Israel, a fim de que ele se tornasse seu povo, seu Reino. Por se tratar de uma realidade originária, única, singular esta aliança ultrapassa toda e qualquer comparação ou exemplificação. Por isso, podemos exclamar com Paulo: grande é este mistério (Ef 5, 32).

Esta aliança fora primordialmente celebrada com Abraão, o patriarca de Israel e selada com uma bênção que deveria alcançar, também, todos os povos da terra. Posteriormente, foi reconstituída mediante Moisés, no deserto, e, depois, já na posse da terra prometida, mediante o rei Davi, como lemos na primeira leitura de hoje. A investidura de Davi é fruto da escolha de Deus e do acolhimento desta escolha por parte do povo. Os sucessivos rompimentos, porém, da aliança, pela infidelidade do povo, e dos próprios reis descendentes de Davi, levaram os profetas a predizerem o estabelecimento de uma nova e eterna aliança (Jr 31, 30-33), de um novo reinado, de um novo Rei, um novo ungido (“messias”, “cristo”). Isaías fala deste Rei como o “Servo sofredor”, que seria uma aliança para o povo e uma luz para as nações (cfr. Is 42, 6).

  1. Do cumprimento da promessa (Lc23,35-43)

Enquanto o Antigo Testamento foi o tempo da promessa e das tentativas, o Novo é o tempo de seu cumprimento. Para esta missão o Pai envia ao mundo seu Filho unigênito, o Cristo, o Messias, o Ungido de Deus por excelência e em sentido pleno e próprio, incomparável, único. 

Jesus Cristo, porém, ao contrário dos reis e senhores deste mundo, que imperam dominando e se impondo pela força de seus mandos e desmandos, reina pela Cruz, pelo derramamento do seu sangue, servindo, estabelecendo e selando, assim, uma nova e eterna aliança, que envolve não só Israel, mas todos os povos, nações e religiões da terra. Mais ainda. Para além de um reinado ecumênico o reinado de Cristo é cósmico. Abrange tudo: céu e terra (Cf. LS 63).

2.1. Um rei que salva se deixando pregar na Cruz 

Entretanto, o que significa, propriamente, reino, na expressão “reino de Deus” e mais precisamente, Jesus Cristo, Rei do Universo? Como é que Ele reina? A resposta aparece límpida e comovedora, ao mesmo tempo, na afirmação dos chefes judeus que zombavam Dele junto a Cruz: “A outros se salvou. Salve-se a si mesmo. Se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido”. É impressionante como Lucas acentua esta insistência: “a outros ele salvou, mas a si mesmo não pode se salvar”. Mais adiante ele a repete na fala do mau ladrão que “o insultava dizendo: ‘Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!’”

Aí está, pois, a resposta: Jesus reina carregando o pecado, os insultos, a maldade do mundo, dos outros, como se proclama em todas as eucaristias: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Na verdade, o original latino é ainda mais forte. Pois, o verbo “tollit” significa, antes, e acima de tudo, “carrega”, “suporta”, “segura”, “guarda para si”. Só então e por extensão: “tira”. Eis, pois, a grande novidade, a Boa Notícia: Deus reina pela Cruz de seu Filho que carrega com misericórdia o pecado do mundo!

A cruz, antes de um fato, portanto, se constitui num ato, numa atitude, numa postura, num modo de ser ou conduzir-se. O modo de ser do inocente. Inocente significa aquele que não prejudica, que não põe a perder os outros (no latim “nocere”: fazer mal, causar dano). Jesus é aquele que, pela sua fragilidade e ternura, pelo seu não-poder, não faz mal aos outros, mas, antes os salva. Jesus, o inocente, salva a todos, assumindo o mal de todos sobre si e para si, como sendo seu, e, isso, por amor, um amor terno e, ao mesmo tempo, apaixonado. Por isso, Cruz e Paixão em Cristo, sempre andam juntas. É também, o modo de ser da criança. Ela é incapaz de causar danos como os adultos. É a fragilidade e a ternura, exposta, muitas vezes, ao poder de dominação, de exploração, enfim, à maldade dos adultos. Este não-poder é acompanhado de um não-saber (no latim “noscere”: não saber). O que a torna ainda mais frágil frente à malícia dos adultos. Assim é o nosso Deus que faz questão de ser rei a modo de criança, nascido através do seio de uma mulher e posto num coxinho de estrebaria, de um simples nazareno que prefere a glória da cruz à glória do mundo, e continuar se oferecendo inocentemente no pão e no vinho eucarísticos a fim de poder ser inofensivamente comido e bebido por todos.

Reino de Deus significa, pois, a valência da vontade de Deus sobre toda a criação, mas, de um modo especial, sobre os corações dos homens. Vontade, porém, não como imposição ou dominância sobre o outro, mas como bem-querer que no fundo significa desprendimento no acolher o outro e no doar-se a ele sem “por que”, nem “para quê”. Este modo de ser rei vem muito bem expresso nesta antiga legenda de Mestre Eckhart. Certa vez, Mestre Eckhart se deu com um lindo garoto nu. E conversou com ele, num estranho diálogo. Perguntou-lhe donde vinha. Ele respondeu: “Venho de Deus”. “E onde o deixaste?”, perguntou o mestre. “Nos corações virtuosos”, disse a criança. E o diálogo se seguiu:

“Para onde vais?”

“Para Deus!”.

“Onde o encontras?”

“Onde larguei todas as criaturas”.

“Quem és tu?”

“Sou um rei!”

“Onde está o teu reino?”

“No meu coração”.

“Toma cuidado que ninguém o compartilhe contigo!”

 “É o que faço”.

 Depois disso, Mestre Eckhart o conduziu à sua cela e disse-lhe:  “Toma a veste que queiras!”. E o menino recusou: “Deixaria de ser rei!”. E desapareceu. Diz-se que fora o próprio Cristo que viera se divertir com ele. 

Neste sentido, O Reinado de Cristo como ato de “reger” tem um significado bem original: Erigir significa colocar alguém ereto, de pé. Não no sentido meramente físico, passando da posição horizontal para a vertical, mas como o ressurgir da vida. Exemplos admiráveis deste sentido de reger ou reinar os Evangelhos estão repletos. Zaqueu, após a visita de Jesus e de seu encontro com Ele pôs-se de pé; Maria permanecia de pé, junto à Cruz. E não esqueçamos que é assim que o próprio Cristo, o Rei dos reis, morre na Cruz: de pé (Cf. principalmente a Cruz de São Damião). Jesus Cristo, portanto, é Rei porque põe de novo toda a humanidade e toda a criação de pé, isto é, na regência originária e plena do amor misericordioso do Pai. Seu poder, sua regência é a vigência da cordialidade da vida (HH).

 2.2. Um Rei que em vez de ser servido serve

Assim, o que normalmente conhecemos como o poder de dominação, não é a essência do poder. É sua “inessência”, sua oposição ou contradição. Pois, a essência do poder, aparece como fraqueza e ternura, como minoridade e serviço, como não-poder, compaixão e misericórdia. No entanto, é nessa essência inocente do poder que está a verdadeira autoridade, isto é, a capacidade de deixar ser, fazer ser, de deixar e fazer aumentar o vigor da vida, da sua cordialidade, do seu viço, da sua alegria, da sua jovialidade como a mãe, por exemplo, deixa ser e crescer em seu seio a vida, o nenê. É o que Jesus Cristo nos revela e ensina magistralmente na noite do Lava-Pés: “Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem porque o sou. Se, pois, eu, Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13,13-14).

Este modo de ser enquanto servo ele é frágil, vulnerável, não tem outro poder a não ser essa regência da benignidade, o rigor, a lim­pidez e o pudor da bondade; enfim, o “não-poder” da gratuidade ela mesma e na­da mais: a rosa é sem porquê, floresce por florescer (Angelus Silesius). Na sua cor­dialidade, o servo colhe e recolhe o mais baixo, o mínimo, com tanta graça e gratidão, de tal sorte que nada há que não seja de graça e graça do Mistério. Por isso, São Francisco de­fine os ministros como servos e o poder do Deus de Jesus Cristo como a minoridade de Deus e Deus de minoridade: Jesus Cristo crucificado (HH).

2.3. Como ser rei no Reinado de Cristo

Depois de marcar com muita precisão e beleza o modo de reinar de Cristo, o evangelho de hoje nos mostra como alguns acolhem a graça da participação no reino de Cristo Crucificado e outros a rejeitam. Os personagens que rodeiam Cristo no Calvário, principalmente os dois malfeitores que foram crucificados com Ele, representam a todos os homens. Todos, considerados a partir de si mesmos, são indignos de participar do Reino de Cristo, da jovialidade que jorra da gratuidade da oferenda do amor. Um deles, porém, reconhece a sua indignidade, o seu ser-culpado, e a dignidade daquele que, inocente, morria por todos, para que todos pudessem participar do Reino do amor misericordioso de Deus. O outro não. O primeiro, porém, que, humildemente, reconhece a sua indignidade e a sua culpa, ouve de Jesus: “Em verdade, eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso”. E assim, naquele momento, naquele “hoje”, aquele que, imerecidamente, acolhia a graça, era posto de pé, era acolhido no Reino de Cristo, tornando-se participante de sua vocação e missão.

2.4. Participar do Reino de Cristo é comungar de sua Paixão 

O Messias, o Cristo (ungido) de Deus, deveria ser o Servo (Cf. Isaías), o Traspassado (Cf. Zacarias), o Crucificado. Eis o sinal de contradição, anunciado por Simeão a Maria no Templo, quando da circuncisão do menino, o paradoxo frente ao qual uns se escandalizam e caem, outros se comovem e se erguem. Eis o “sinal de contradição”, sintetizado nas palavras – involuntariamente proféticas – que Pilatos manda escrever sobre a cruz de Jesus: “Jesus Nazareno o Rei dos Judeus”.

Ser cristão, assumir o reinado de Cristo, significa, portanto, tornar-se participante de sua paixão e da sua Cruz, como aconteceu com São Francisco. “Perguntado brutalmente por ladrões quem ele era, respondeu-lhes: ‘Sou um arauto do grande Rei’. Bateram, então nele e o jogaram numa fossa cheia de neve, dizendo: ‘Fica aí, pobre arauto de Deus’” (1C 16,3).

Como deve ser nossa resposta ao chamado de tão grande dignidade pode ser vista nesta passagem de nosso Doutor evangélico.

Cristo, que é a tua vida, está suspenso diante de ti para que tu te contemples na cruz como num espelho. Aí poderás conhecer quão mortais são tuas feridas, que nenhuma medicina tem poder de sarar, senão aquela que brota do sangue do Filho de Deus. Se olhares bem, poderás dar-te conta de quão grande são tua dignidade e teu valor… Em nenhum outro lugar o homem pode melhor dar-se conta do quanto ele vale do que olhando-se no espelho da Cruz.

  1. Com alegria cantar e dar graças ao Pai (Cl1,12-20)

Paulo canta, hoje, um hino ao Cristo Rei. Um hino de grande beleza e de uma explicitação claríssima acerca de nossa participação e de todas as criaturas no reinado de Cristo. Vale à pena meditá-lo. Entre os pontos mais preciosos desta meditação está a ação de graças ao Pai, que nos tornou capazes de tomar parte na herança dos santos na luz e, acima de tudo, por Ele nos ter “libertado do poder das trevas e nos ter recebido no reino de seu Filho amado…”.

 

Conclusão

Dois pontos para pensar e assimila.

– Com Cristo, em Cristo e por Cristo todos somos convocados a ser “reis”, “consagrados”, “cristos” isto é, servos e cuidadores de toda a humanidade e de toda a criação. Como seria, então, um cristão que, a exemplo de seus mestres, principalmente de São Francisco, se dispusesse a ser a lixeira do mundo; um lixeiro mais ocupado em carregar o pecado do que a comentá-lo e muito menos ainda a condenar seus feitores?

– “As criaturas deste mundo não podem ser consideradas um bem sem dono: ‘todas são tuas, ó Senhor, que amas a vida´ (Sab 11,26). Isto gera a convicção de que nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LS 89).

– “Viva Cristo!”

– “Rei!”

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini