Solenidade de todos os Santos

SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS

03/11/2019

Pistas homilético-franciscanas

 

Leituras: Ap 7,2-4.9-14; Sl 23 (24); 1Jo 3,1-3; Mt 5,1-12

Tema-mensagem: Jubilosos e agradecidos celebremos a santidade de Deus no testemunho dos seus santos e bem-aventurados.

Introdução

Em cada página da Sagrada Escritura, Deus revela o quanto deseja e faz para tornar-nos todos felizes, santos e bem-aventurados como Ele é feliz, santo e bem-aventurado. Além de todos quantos foram declarados oficialmente pela Igreja como tais, hoje fazemos a memória também daqueles seguidores de Cristo que, com seus feitos, virtudes e martírio, testemunharam Cristo e seu Evangelho através de uma vida humilde e escondida e que por isso jamais foram vistos e reconhecidos como tais. Eis a maravilha, a graça deste Domingo, Solenidade de Todos os Santos.

Nestas pistas, vamos nos reportar a algumas reflexões da exortação apostólica do Papa Francisco, Gaudete et Exultate, sobre “o chamado à santidade no mundo atual” (19/03/2018).

 

 

  1. Uma profecia que se faz realidade (Ap 7,2-4.9-14)

Quem nos introduz nesta solenidade é o apóstolo São João: “Vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas… todos traziam a marca do Deus vivo e estavam de pé diante do trono do Cordeiro com suas vestes brancas e palmas na mão” (Ap 7,9).  

Todos estes “servos de Deus” – assim são chamados os membros dessa multidão – são obras consumadas do Espírito Santo de Deus, e da sua graça justificante e santificante, uma vez que levam a assinatura reconhecida, sancionada de Cristo. São homens e mulheres que, como Paulo, Francisco, Dulce dos Pobres e muitos outros, foram marcados com as chagas do Cristo da fé. Nas vicissitudes da história, eles combateram o bom combate, passaram pela “grande tribulação”. E, nesta passagem, tiveram o espírito purificado. Pela graça da comunhão na pureza do ser de Deus foi-lhes dada, também, a graça do desprendimento que os tornou como crianças; alcançaram a limpidez do ser no seu sentido ontológico. E isso se chama santidade.

A vocação à santidade, portanto, mais que resposta a uma simples tarefa é uma convocação ao ser do nosso ser.  A partir de sua comunhão e participação no mistério da encarnação do Filho de Deus, que se uniu à nossa humanidade, cada homem deve tornar-se o lugar da revelação do amor, isto é, da jovialidade e da gratuidade da caridade que é Deus. O homem que perfaz a via excelente desta caridade (Cf. 1Cor 13), comunga da pureza do ser de Deus. “Ser santo é deixar-se possuir por Deus sem o mínimo direito de posse” (Marina, uma franciscana secular).

 

  1. O presente de sermos filhos de Deus (1Jo 3,1-3)

Na segunda leitura da missa de hoje, o mesmo apóstolo João explicita assim esta beatitude: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados de filhos de Deus! […] E nós já somos filhos de Deus, mas ainda nem sequer se manifestou tudo o que seremos…” (1Jo 1,1-2).

A esperança de vermos a Deus e de sermos transformados Nele, sim, de sermos “cristificados”, “deificados”, é o que nos torna santos, isto é, pacientes ou padecentes de sua Paixão em meio à “grande tribulação”. Pois, “todo aquele que Nele põe toda a sua esperança purifica-se a si mesmo, como também Ele é puro” (1Jo,1,3). Orígenes explicava etimologicamente a palavra “santo”, através da palavra grega “hágios” que significa ser “distanciado da terra”, do mundo. Assim, através deste processo de paciência ou padecimento, vamos nos tornando espírito (limpidez da liberdade) e em espírito poderemos ver a Deus.

São Francisco de Assis, na primeira de suas 28 “Admoestações”, que a tradição franciscana chama também de “Bem-aventuranças franciscanas”, diz que o “Espírito é Deus, e a Deus ninguém jamais viu. Por isso, Ele não pode ser visto senão no espírito” (Ad 1,5-6). Isto significa que Deus é inacessível; que não há como a criatura, a partir de si, achegar-se ao seu criador, o amado conhecer o amor. Só há, pois, uma única possibilidade: Ele tomar a iniciativa para vir e dar-se a conhecer a nós. E é o que fez e vem fazendo desde a criação do mundo. A última destas inciativas, o sumo de todas, se dá em sua encarnação que culmina na Cruz.

Só assim, a partir de Deus, na acolhida da graça, é que o homem passa da possibilidade impossível para a impossibilidade possível da beatitude da filiação divina. Enfim, o homem só pode conhecer Deus à medida que se torna Deus. Neste caso, conhecer, aqui, significa bem recebê-Lo para assemelhar-se a Ele. E isto é, sem mais e nem menos, “co-nascer” com Ele, entrar na vida eterna, ser tomado por ela, a bem-aventurança eterna do homem como diz João: “Ora, a vida eterna é que eles te conheçam a Ti, o único verdadeiro Deus, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3).

A santidade é “o tesouro em vazo de barro” (2Cor 4,7).  Por isso, o seu perfazer-se em nós não exclui, antes inclui a nossa fragilidade. Mais que de heróis ela é coisa de pecadores. Por isso, diz nosso Papa: “Não desanimes, porque tens a força do Espírito Santo para tornar possível a santidade e, no fundo, esta é o fruto do Espírito Santo na tua vida (cf. Gal 5, 22-23). Quando sentires a tentação de te enredares na tua fragilidade, levanta os olhos para o Crucificado e diz-Lhe: «Senhor, sou um miserável… A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça” (GE. 15; 34).

Enfim, é na fraqueza que a graça consuma em nós a sua força (2Cor 12).

 

  1. O Caminho da Beatitude celeste (Mt 5,1-12)

À semelhança da abertura de uma grande ópera, a perícope do evangelho de hoje marca o início do primeiro e grande discurso de Jesus: o famoso “Sermão da Montanha” ou das Bem-aventuranças. Como novo Moisés, Jesus sobe a montanha, isto é, para junto de Deus. E assim, a partir Dele faz o anúncio e o lançamento dos princípios básicos, pétreos da constituição do novo Povo de Deus; o anúncio do caminho que o levará à verdadeira felicidade.

Seu ensinamento não vem de baixo, da lei, do homem, mas do Alto, do Amor. É revelação divina! Por isso, diante das multidões e dos discípulos, vendo chegada a hora de dar início a obra que o Pai lhe confiara, exclama: “Alegrai-vos e exultai…” (Mt 5,12). É deste tríptico – Jesus, multidões e discípulos – que surgirá o novo Povo de Deus, “um Povo que o conheça na verdade e o sirva santamente” (LG 9) – a Igreja: sacramento do Reino dos Céus no mundo e para o mundo.

Segundo o Papa Francisco, as bem-aventuranças “são o bilhete de identidade do cristão” no qual encontramos o que e o “como fazer para chegar a ser um bom cristão” (GE 63). Mas, faz questão de acentuar, também, que “estas palavras de Jesus, não obstante possam parecer até poéticas, estão decididamente na contracorrente ao que é habitual, àquilo que se faz na sociedade; e embora esta mensagem de Jesus nos fascine, na realidade o mundo conduz-nos para outro estilo de vida” (idem, 65). 

 

  • Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos Céus (v.3)

A primeira palavra que sai da boca de Jesus arrebata os corações daquelas pessoas sofridas, maltratadas, injustiçadas e, por vezes, desesperadas: “bem-aventurados…”. Sim, felizes, felicidade! Quem dela não precisa, quem não a quer, não a deseja e por ela não lute, não brigue e até, por vezes, não faça guerras?

Mas, logo vem um grande questionamento, pois Jesus continua … “os pobres no espírito porque deles é o Reino dos Céus”. Como crer numa felicidade que se assenta na pobreza? Ora, não é ela, precisamente, a inimiga figadal de toda a felicidade?! Felizes não são justamente os ricos e infelizes, desventurados os pobres, os mal dotados?!

Jesus, porém, permanece firme e sereno, pois sem esta pobreza evangélica não haverá nenhuma outra bem-aventurança e muito menos Reino dos Céus, diz Ele. “Bem-aventurado” significa: o que se aventura bem. Trata-se de um aviar-se todo próprio, no qual o andar se faz caminho, na medida em que se caminha a modo do perfazer-se cheio de riscos e acertos, recuos e avanços, de quedas e retomadas[1].

Quem compreendeu muito bem esta proposta de Jesus foi São Francisco. Também ele coloca a Pobreza como princípio de sua vida e de toda a sua Ordem. Mas, porque a pobreza e não a caridade? Porque para eles a pobreza é a alma da caridade, o coração de Deus. Por isso, diz ele: “Entre as demais preclaras e precípuas virtudes que preparam no homem um lugar e uma morada para Deus e mostram o caminho mais excelente e mais rápido para se ir e chegar até Ele, destaca-se a santa Pobreza. Ela sobressai a todas por uma certa prerrogativa e supera os títulos das demais por uma graça singular. Pois, ela própria é o fundamento e a guardiã de todas as virtudes” (SC 1).

Como vemos, também Francisco, fiel ao discurso do Mestre, vê a pobreza não como uma virtude a mais ou à parte, mas a virtude das virtudes, a virtude da qual nascem e florescem todas as demais. Por isso, ele a chamava de “senhora” ou “dama”.

O “santo” é alguém “bem-aventurado” – feliz, felizardo – pelos múltiplos avios da graça santificadora em sua vida. O Papa Francisco comenta: “A palavra «feliz» ou «bem-aventurado» torna-se sinônimo de «santo», porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade” (GE, n. 64).

Notemos ainda que, enquanto em todas as demais virtudes, o Reino dos Céus virá no futuro, para a pobreza ele é sempre atual. Por isso, enquanto nas primeiras se diz “serão” ou “verão”, na pobreza se diz “é”. Enfim, pobre em espírito é aquele no qual “o Senhor pode entrar com sua incessante novidade” (Idem, 68), a alegria do Evangelho.

“Ser pobre no coração: isto é santidade” (idem, 70).

 

  • “Bem-aventurados os aflitos porque serão consolados” (v.4).

Posta a pedra fundamental do Reino da Santidade – a pobreza – Jesus começa a elencar suas diversas florações. A primeira se dá nos ou com os aflitos, isto é, com aqueles que se afligem, se angustiam com seu seguimento de Cristo. Por isso, a segunda bem-aventurança poderia também ser redigida assim: “Bem-aventurados os que carregam a paixão de sua existência, pelo Reino de Deus e no seguimento de Cristo, porque serão consolados”.

Neste sentido, aflitos, aqui, são os que não esperam outra consolação para a desolação humana do que a consolação divina. São os crucificados para o mundo, aqueles que preferem chorar, cantar o “De profundis” da miséria da atual condição humana… e esperar pela consolação divina do pôr sua confiança e consola nas vãs alegrias do mundo. Estes, a exemplo de São Francisco, suportam a dor e a paixão dos homens da terra em comunhão com a dor e a paixão do Crucificado e o fazem na serenidade e na jovialidade da “perfeita alegria”.

Comentando esta bem-aventurança diz nosso Papa que hoje “o mundo não quer chorar: prefere ignorar as situações dolorosas, cobri-las, escondê-las. Gastam-se muitas energias para escapar das situações onde está presente o sofrimento, julgando que é possível dissimular a realidade, onde nunca, nunca, pode faltar a cruz”. Por isso, só pode ser consolada e feliz a pessoa que está “com a consolação de Jesus e não com a do mundo… Esta pessoa sente que o outro é carne da sua carne, não teme aproximar-se até tocar a sua ferida, compadece-se até sentir que as distâncias são superadas. Assim, é possível acolher aquela exortação de São Paulo: «Chorai com os que choram» (Rm 12, 15)” (idem 76).

“Saber chorar com os outros: isto é santidade” (Idem 76).

 

  • “Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra” (v.5)[2]

Na terceira bem-aventurança, a “senhora pobreza” se encarna e floresce nos mansos. Diz nosso Papa: “A mansidão é outra expressão da pobreza interior, de quem deposita a sua confiança apenas em Deus. De fato, na Bíblia, usa-se muitas vezes a mesma palavra anawin para se referir aos pobres e aos mansos” (idem 74). Por isso, Jesus ousa proclamar que a mansidão é a boa aventura, o caminho para possuir a terra.  Mas, como? Não são justamente estes os insensatos, os estúpidos e frágeis que, ao longo de toda a história, são os banidos e expropriados de suas terras, formando assim as grandes massas de infelizes, marginalizados, excluídos e miseráveis?

Os mansos são os não-violentos. Hoje, mais do que atos intermitentes a violência é um habitus, isto é, um estado permanente, uma estruturação que nos tem, nos detém, nos contém. O mundo de hoje pensa encontrar a sua segurança ou na abundância de bens materiais (de patrimônios, recursos e investimentos financeiros, etc.) ou na força das armas.

A violência torna-se o modo para solucionar todos os problemas. Pensa-se livrar-se de um mundo violento respondendo com mais violência, numa escalada de ódio e de intolerância. Já dizia Heráclito, observando o comportamento dos cidadãos de Éfeso: querem se limpar da lama com um banho de lama. Numa atmosfera como essa, o fascismo torna-se uma proposta tentadora. Mas não deixa de ser um suicídio coletivo. Neste contexto, a bem-aventurança de Jesus deve soar de modo renovado em nossos ouvidos: “É uma frase forte, neste mundo que, desde o início, é um lugar de inimizade, onde se litiga por todo o lado, onde há ódio em toda a parte, onde constantemente classificamos os outros pelas suas ideias, os seus costumes e até a sua forma de falar ou vestir. Em suma, é o reino do orgulho e da vaidade, onde cada um se julga no direito de elevar-se acima dos outros. Embora pareça impossível, Jesus propõe outro estilo: a mansidão. É o que praticava com os seus discípulos, e contemplamos na sua entrada em Jerusalém: «aí vem o teu Rei, ao teu encontro, manso e montado num jumentinho» (Mt 21, 5; cf. Zc 9, 9). (GE, n. 71).

Bonhoeffer escreve que este mistério já começou no Gólgota, na Cruz. “A partir do Gólgota, onde morreu o mais manso dos mansos, deve renovar-se a terra. Quando virá o reino de Deus, então os mansos possuirão a terra” (Bonhoeffer, D. Sequela, p. 102).

“Reagir com humildade e mansidão: isto é santidade” (GE 74).

 

3.4. “Bem-aventurados os que têm fome e sede da justiça: eles serão saciados” (v.5, 6).

Na quarta floração da pobreza evangélica se dá naqueles que tem fome e sede de justiça, naqueles que renunciam à justiça própria. “Fome e sede são experiências muito intensas, porque correspondem a necessidades primárias e têm a ver com o instinto de sobrevivência” (GE 77).

Mas, a justiça, que Jesus propõe para saciar a fome e a sede, não é como a que o mundo procura, uma justiça muitas vezes manchada por interesses mesquinhos, manipulada para um lado ou para outro. A realidade mostra-nos como é fácil entrar nas súcias da corrupção, fazer parte dessa pseudo-política diária do «dou para que me deem», onde tudo é negócio” (idem, 78).

Ter a fome e a sede da justiça – sentir a necessidade premente dela – é, já, uma felicidade. Aquele que não conhece esta fome e esta sede é um miserável. A justiça a que estes famintos e sedentos aspiram não é a pseudo-justiça, que não é outra coisa do que a imposição da vontade arbitrária do mais poderoso (pela posse de bens) ou do mais forte (pela violência). É, antes, a justiça que se conforma às leis do céu e da terra (Antígona).

Por isso, justiça, aqui, em vez de uma virtude a ser alcançada com os próprios méritos, é recebida do Alto através da graça justificante e santificante que vem de Deus. Os famintos e sedentos de justiça não se gloriam de outra coisa do que da Cruz de Cristo. Trata-se, pois da fome e sede da justiça de Deus, da justiça melhor, a justiça do amor superabundante, que ultrapassa todas as medidas, ou melhor, que é sem medidas porque tem sua expressão máxima em Jesus Cristo crucificado.

“Buscar a justiça com fome e sede: isto é santidade” (idem).

 

3.5. “Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia” (v. 7).

Agora, na quinta bem-aventurança a pobreza vai gerar a misericórdia, os misericordiosos. Para os fariseus a justiça vinha de baixo, deles mesmos porque ou quando praticavam boas obras. Neste caso Deus devia ser misericordioso para com eles por causa deles e não por causa Dele.

Ora, Jesus veio pôr as coisas no seu devido lugar. Diante de Deus ninguém tem consistência em si ou por si próprio. Por isso, os pobres no espírito são misericordiosos. Misericordiosos e felizes porque se conduzem sobre o mesmo caminho no/ou pelo qual caminha o próprio Pai: a compaixão, o perdão.

Os misericordiosos, a exemplo de Cristo, renunciam ao próprio prestígio e se dispõem a se misturar alegremente com os miseráveis, com os vis e pecadores, com os míseros. Enquanto tais, eles “têm um amor irresistível pelos humildes, os doentes, os míseros, por quem foi humilhado ou sofreu violência, por quem sofre injustiça e é expulso, por quem se atormenta e se aflige; estes procuram o que caiu no pecado e na culpa. Nenhuma miséria é por demais profunda, nenhum pecado é por demais terrível, para que não se aplique a misericórdia” (Bonhoeffer). Estes têm um coração que é como o coração de Deus Pai: um coração “mole”, isto é, terno, frente à fraqueza e à miséria humana. Um coração paterno, ou melhor, um coração materno, matricial.

“A misericórdia”, diz o Papa, “tem dois aspetos: é dar, ajudar, servir os outros, mas também  perdoar, compreender… Dar e perdoar é tentar reproduzir na nossa vida um pequeno reflexo da perfeição de Deus, que dá e perdoa superabundantemente” (idem, 80).

“Olhar e agir com misericórdia: isto é santidade” (idem, 82).

 

3.6. “Bem-aventurados os puros quanto ao coração: eles verão a Deus” (v. 8).

Nesta bem-aventurança, os pobres de espírito aparecem com um coração puro. Segundo o salmista, para poder achegar-se ao templo e poder ver a Deus é preciso “ter as mãos inocentes e o coração puro, não se entregar à falsidade nem jurar com perfídia” (Sl 24,4). Por isso, insiste o apóstolo: “limpai as mãos, pecadores e purificai os corações vacilantes” (Tg 4,8).

O homem de coração puro renuncia ao próprio saber acerca do bem e do mal e deixa-se conduzir à inocência do espírito-criança, à simplicidade originária. Simples quer dizer: não dividido, não duplo nem dúplice; não composto ou com um elemento estranho. Significa ser só um, quer dizer, homogêneo, uno, inteiro, inteiriço. “O coração puro é puro do bem e do mal, pertence todo e indiviso a Cristo, tem em mira somente a Ele, que vai à sua frente” (Bonhoeffer).

“Na Bíblia, o coração significa as nossas verdadeiras intenções, o que realmente buscamos e desejamos, para além do que aparentamos” (GE 83). Por isso:

“Manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor: isto é santidade” (idem, 86).

 

3.7.  “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus” (v. 9).

A sétima floração proclama: “Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. Os pobres de espírito são pacíficos porque recebem de Cristo a paz que ele dá aos seus, que não é a paz que o mundo dá. Ao tomar a iniciativa de vir ao mundo pela encarnação que culmina na cruz-ressurreição, Cristo se tornou o “príncipe”, isto é o princípio, a fonte da paz entre céu e terra, Deus e os homens (Cfr. Ef 2, 14-16).

Os anos voam, os séculos passam e a paz, porém, não chega. Os homens, no entanto, continuam pensando ou querendo estabelece-la, “comprá-la”, através da força dos discursos, do poder, do dinheiro, dos contratos quando não pela violênia das armas. Outras vezes, para senti-la e desfrutá-la em seus corações a buscam numa pseudo-espiritualidade de consumo, etc., etc.  A paz, porém, não vem porque sua origem é de outra natureza: a pobreza em espírito.

Segundo Santa Clara, a verdadeira paz não é a que nasce do empenho e desempenho dos homens, mas aquela que é “inaugurada em nosso coração pelo ardente desejo do Pobre Crucificado” (1CCL 13). Na Cruz, aos discípulos que O abandonam e O traem Ele continua amando-os e chamando-os de amigos; aos que o condenam à morte pede-lhes o perdão do céu; ao Pai que o entrega à própria sorte confia-se inteiramente.

Deus é pacífico não porque seria um Deus superpoderoso, capaz de superar todos os conflitos, mas porque seu princípio originário e constitutivo, sua identidade, à semelhança de uma fonte, se move, se faz e refaz, continuamente pela dinâmica da doação, da entrega, do amor-caridade que se expressa de mil e uma forma, principalmente pela misericórdia, compaixão, humildade e paciência.

A paz de Jesus Cristo não é indiferentismo, inércia, do espírito. Não vem sem rompimento com aquilo que é contrário ao Reino do Pai. Por isso, Jesus proclama que ele não veio “trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34). A palavra latina “pacificus” compõe-se de “pax”, paz e “facere”, fazer: aquele que faz paz. Por isso, ao comentar esta bem-aventurança, dizia São Francisco: “São verdadeiramente pacíficos os que, de tudo quanto padecem neste mundo, conservam a paz na alma e no corpo, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Ad XV).

Frei Harada, explicando a saudação franciscana de “Paz e Bem”, assim escreveu: “primeiro faz bem o necessário; depois, o possível, em paz. Logo te será dado o impossível per-feito na paz: Paz e Bem!”.

 “Semear a paz ao nosso redor: isto é santidade” (idem, 89).

 

3.8. “Bem-aventurados os perseguidos por causa de justiça: deles é o Reino dos Céus” (v.10).

A oitava e última bem-aventurança retorna à primeira e recolhe em si todas as outras sete. Por isso, de novo a expressão: “deles é o Reino dos Céus”. Aqui “justiça” não tem o mesmo sentido que encontramos na quarta bem-aventurança. Naquela, tratava-se de renunciar a justiça própria (a “justiça dos fariseus” de que fala o evangelho de Mateus) para receber a justiça do Alto (a “justiça melhor” do Reino dos Céus). Trata-se, agora, da bem-aventurança dos que são perseguidos por causa de justiça. Notemos que no original falta o artigo. Por isso, nós escrevemos “de” em vez “da” justiça. “Aqui não se fala da justiça de Deus e, portanto, não se fala da perseguição por causa de Jesus Cristo, mas são ditos bem-aventurados os perseguidos por uma causa justa – e nós poderíamos agora acrescentar: por uma causa verdadeira, boa, humana (cf. 1 Pd 3,14 e 2,20) (…). Jesus cuida de quantos sofrem por uma causa justa, mesmo se não se trata propriamente da confissão de seu nome, os toma sob a sua proteção, na sua responsabilidade, lhes reivindica como seus” (Bonhoeffer, D. Etica, p. 305).

            O Papa Francisco nos alerta que “para viver o Evangelho, não podemos esperar que tudo à nossa volta seja favorável, porque muitas vezes as ambições de poder e os interesses mundanos jogam contra nós. Numa tal sociedade alienada, enredada numa trama política, mediática, econômica, cultural e mesmo religiosa, que estorva o autêntico desenvolvimento humano e social, torna-se difícil viver as bem-aventuranças, podendo até a sua vivência ser mal vista, suspeita, ridicularizada” (idem, 91).

“Abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas:

isto é santidade” (idem, 94).

 

3.9. A renúncia que é recompensa

Em todas as bem-aventuranças há uma renúncia. A renúncia não tira: ela dá a força da identidade do discípulo de Cristo, tornando-o filho no Filho, um com o Pai, que vive do e no Espírito Santo. É, na verdade, uma recompensa. É que a renúncia não é mera negação, mas “re-anúncio” do si-mesmo. Ela é a recondução do homem à dimensão do divino, no caso, do Deus de Cristo Crucificado.

Agora fica claro o que são os “pobres no espírito”: são os humildes, os mansos, os que suportam a paixão, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacíficos, os que sofrem por causa da justiça; os que, por serem assim, como Cristo, são odiados pelo mundo. Assim, nesta oitava bem-aventurança se consuma e se atesta a perfeição de todas as demais. As sete bem-aventuranças anteriores, dizia Agostinho, realizam o perfazer do seguimento de Cristo; a oitava, clarifica e atesta esta perfeição alcançada.

Além do mais, ele relaciona as bem-aventuranças com os dons do Espírito Santo. O temor corresponde à humildade ou pobreza de espírito; a piedade à mansidão; a ciência ao pranto; a fortaleza à fome e sede de justiça; o conselho à misericórdia; a inteligência à pureza de coração; e, enfim, a sapiência à paz.

 

3.10. O Reino dos Céus

Agora, também, está claro o que significa o “Reino dos Céus”. É a riqueza essencial, a terra dos vivos, dos eleitos e amados do Pai. Por isso, a consolação divina, o pão da vida e a água da vida, a misericórdia, a visão de Deus, a filiação divina e o repouso no abismo do coração paterno de Deus. Tudo isso pertence àquele que segue Cristo, que diz: “na vossa paciência possuireis as vossas almas”. Desta mesma paciência falam os dois outros versículos finais, que tratam da alegria nas perseguições. Os que sofrem com ânimo sereno e em paz: estes têm a perfeita alegria. Perfeita, porque levada até o sumo, bem-aventurada, consumada.

Da importância da pobreza para que aconteça esta receptividade diz Mestre Eckhart:

“Em suma, tudo o que deve acolher e ser receptivo deve necessariamente estar vazio. Dizem os mestres: Se o olho, no ato de perceber, tivesse em si alguma cor, ele não perceberia a cor que tem, nem a que não tem; é por carecer de todas as cores que ele conhece todas as cores (…). O olho não tem cor, e não obstante a tem, no sentido mais verdadeiro, pois conhece-a com prazer e deleite e alegria”.

 

Conclusão

Depois de séculos de esquecimento, o Vaticano II começou a recordar-nos que todos os fiéis e não apenas os clérigos e religiosos, somos chamados à santidade. Bem no coração de seu documento mais importante, a Lumen Gentium, encontramos o famoso capítulo V com o título “Vocação universal à santidade” e esta significativa exortação: “Na Igreja, todos … são chamados à santidade… Pois esta é a vontade de Deus: a vossa santificação (1Ts 4,3; Ef 1,4)” (LG 39).

Fazendo eco a esta exortação, proclamava São João Paulo II, em Florianópolis, em 1991: “O Brasil precisa de santos; o Brasil precisa de muitos santos!” E, bem mais recentemente, escreveu nosso Papa Francisco: “O Senhor quer-nos santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa” (GE 1).

Mas, também, importa que acentuemos que vocação à santidade não é qualquer vocação, ou uma entre outras vocações. É, antes, a primeira, a fundamental, a vocação de todas as vocações sem a qual nenhuma outra vocação poderá realizar-se plenamente. Esta primazia vem assinalada ao longo de toda a História sagrada do Antigo e do Novo Testamento, como, por exemplo, na famosa Oração do Pai Nosso, quando o Senhor pede não apenas que digamos que Deus é nosso pai, mas também que seu “nome seja santificado” em cada um de nós e no universo inteiro.

Ora, o que é isso, que seu nome seja santificado em nós, senão, que Ele se torne cada vez mais nosso Pai e nós seus filhos, propriedade dele. Por isso, segundo nosso Papa atual “A santidade é o rosto mais belo da Igreja” (GE 9) e não nossa sabedoria, nossos atos heroicos, nossas obras e muito menos nossas pastorais.

Diferentemente da perfeição humana, na qual vem em primeiro lugar a pessoa, na santidade, na perfeição evangélica, sempre vem primeiro o Senhor e depois o sofrimento, o martírio, o testemunho do santo. Ao canonizar um santo a Igreja não o faz para que olhemos para ele, mas para as maravilhas que o Senhor operou nele. Se no primeiro caso amamos a Deus para sermos santos ou perfeitos, aqui buscamos a santidade para melhor amar a Deus. Ele é o centro, a raiz, a causa de tudo o que buscamos e amamos bem como de tudo o que deixamos de buscar e de amar. Por isso, também, sendo obra do Senhor “o testemunho dado por Cristo até o derramamento do sangue, tornou-se patrimônio comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes” (GE 9). Como não recordar, aqui, por exemplo, Dietrich Bonhoeffer, pastor e mártir protestante, condenado à morte pelos nazistas!?    

Além do mais, sendo obra de Deus, a santidade está presente em toda a parte. Por isso, diz nosso atual papa: “Não pensemos apenas nos que já estão beatificados e canonizados. O Espírito Santo derrama a santidade por toda a parte no santo povo fiel de Deus… Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam seus filhos com tanto amor, nos homens e nas mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar, dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante. Esta é, muitas vezes a santidade “ao pé da porta”, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou – por outras palavras – da “classe média da santidade” (GE 6-8).

No entanto, este povo não é massa. Há grande diferença entre povo e massa. Povo é uma multidão e uma pluralidade, onde os indivíduos, tornados pessoas, e os grupos, tornados comunidades, não perdem suas identidades. Povo é uma identidade de diferenças. Massa é uma fusão e uma confusão, que tornam disformes e mesmo amorfas as diferenças. Na Igreja, cada um tem o seu modo, único de realizar a sua vocação à santidade. Com efeito, esta realização se dá “cada um por seu caminho” (GE, n. 11). Cada um precisa encontrar o seu modo, o seu jeito, único, de seguir Jesus Cristo.

Finalmente, este testemunho: “Deus escreveu em minha testa: ‘Marina propriedade exclusiva do Senhor!’” (Marina, uma franciscana secular). “Quando Tu és o centro de uma vida, não há necessidade de férias, viagens, distrações. Tu és as férias, as viagens. Tu distrais, sacias, alivias, consolas.  Tu és tudo, melhor que tudo. Sim, eu desejo ser santa por quê? Desejo ser santa para te amar mais e melhor, Te amar pelo que Tu és” (idem).

 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini, ofm

[1] Harada, Hermógenes. Fragmentos de pensamento humano-franciscano. Org. Enio Paulo Giachini. Curitiba: Bom Jesus, 2016, p. 24.

[2] Alguns manuscritos invertem a ordem entre os versículos 4 e 5.