Fonte: capuchinhos.org.br
Francisco, já gravemente enfermo, sabendo do sério conflito entre o bispo e o prefeito de Assis, enviou-lhes alguns freis para que cantassem o recente Cântico do Frei Sol, acrescentando uma estrofe: “Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor”. Bispo e prefeito se reconciliaram. Contam os Fioretti 21 que Francisco exerceu o papel de “mediador” – uma figura que ganhou importância em nossos dias – também entre a cidade de Gúbio e o lobo feroz que rondava a cidade, estabelecendo uma aliança de paz. Mas desde os primeiros tempos de sua conversão, tendo escutado o evangelho de Mateus 10, entendeu que sua missão seria andar pelo mundo como “arauto” do que manda o Evangelho: anunciando a paz, mediando a paz, irradiando a paz. Inclusive para o lobo, e para toda criatura. Dá para imaginar Francisco sem pássaros, sem as flores do campo? Essa “atração” percebida unanimemente pelos biógrafos tem seu segredo: ele se tornou um homem de paz.
Depois do enorme crescimento da Ordem começada por Francisco, e depois de sérios conflitos sobre como viver a pobreza, um século depois de Francisco o papa Bento XII, vindo do mosteiro, “conventualizou” todos os frades, obrigando-os a uma vida regular conventual que, em boa parte, congelou e reduziu a missão à pregação dos clérigos, e a própria memória de Francisco ficou “conventualizada”, reduzida a altares, festas, devoções. Somente no século XIX o movimento romântico que confrontava os excessos do racionalismo trouxe de volta Francisco para a natureza, para os jardins e seus passarinhos. Mas também reduziu Francisco à emoção estética da proximidade da natureza, arriscando um Francisco romântico e sentimental. A partir do meio do século XX, no entanto, os métodos histórico-críticos, com os quais se estuda a Escritura até hoje, foram também aplicadas às fontes franciscanas, e se redescobriu, por trás do Francisco romântico, o Francisco histórico, sua real história. Deu-se importância primária aos seus escritos autênticos, e as fontes franciscanas foram postas na perspectiva da história, dos diferentes contextos, das camadas sucessivas de interpretações. O resultado desses estudos fez emergir o conhecimento de um Francisco muito humano e apaixonado seguidor de Jesus. Junto com a figura sem a poeira do tempo emergiu também o conhecimento da original vocação franciscana. Qual é, em síntese, a identidade do franciscano e da franciscana no caminho cristão do seguimento de Jesus?
É inútil querer reduzir a origem, a identidade, a expressão franciscana, a um único aspecto ou mesmo a uma única experiência de Francisco. É parecido com a identidade de Jesus, que tem quatro pinturas distintas e complementares, os quatro evangelhos. Ou a identidade de Deus, que é três pessoas em comunhão. As formas tão criativas e vibrantes com que Francisco viveu e anunciou o evangelho, as diferentes experiências fundadoras, tornam a identidade franciscana “multicolorida”, ou, dizendo de forma trinitária, uma identidade “pericorética” – onde um está para o outro, desde o outro, com o outro, no outro, ao redor do outro, e juntos estão para os outros.
Assim, o grupo de Francisco foi chamado inicialmente de “Penitentes de Assis” por causa da perceptível mudança de vida. Mas logo em seguida o grupo se chamou “Irmãos menores” (atualmente Frades Menores), de tal forma que a fraternidade se tornou o relacionamento fundamental que produz a identidade, a plataforma onde cada irmão assenta a sua identidade no outro irmão, nas relações fraternais. A “minoridade” é a forma desta fraternidade: servidora, humilde, simples, despojada, aprendida na solidariedade com o povo simples e pobre. A espiritualidade, a vida de oração e contemplação, é uma obviedade: é o coração místico, a montanha e os tempos sagrados do cultivo da relação com Deus, que começa na própria Palavra de Deus, na atenção do ouvido e na meditação, e termina no louvor e na entrega estável do coração a Deus. O outro pilar da identidade, desde o começo da vida de Francisco, foi a missão, que também ganhou múltiplos aspectos: dar testemunho da vivência fraterna do evangelho já é missão no mundo, mas um segundo modo é desejável: pregar o evangelho; ir de um lado para outro, até na aventura de andar pelo mundo estranho dos outros, os que não creem como nós, como apóstolos de Jesus. Exortar à conversão, anunciar a paz, ou mesmo mendigar.
Mendigar? Pedir esmolas? É identidade? De fato, a Ordem franciscana é uma das Ordens “mendicantes”, pelo que Voltaire achava Francisco um mau exemplo. Voltaire, já na exaltação moderna do trabalho e da meritocracia, não conhecia a experiência franciscana da “graça de trabalhar” e da “Mesa do Senhor” como formas de justiça e de fraternidade. Nem sabia que a comida em abundância aos passarinhos pelo caminho era a forma de uma fraternidade real com todas as criaturas. É aqui que a Justiça, a Paz e a Criação, se tornaram – e hoje redescobrimos de forma espantosamente clara – modos concretos de viver a fraternidade universal, a reconciliação fraterna, a minoridade servidora, o apostolado e a missão. É a vocação de Adão como cuidador da terra que o Criador lhe destinou. Em termos contemporâneos, a Justiça, a Paz e a Integridade da Criação (JPIC) são, como a minoridade, a operacionalidade social da identidade franciscana. Vamos aprofundar:
Se imaginássemos que, por alguma razão estranha, a Igreja ou mais precisamente o papa, retirasse dos frades todas as atuais missões eclesiásticas, como as paróquias, as missões populares, o magistério, etc. e obrigasse, por alguma determinação estranha, viver – cada um – isolado dos demais, desfazendo as comunidades, e assim fosse retirando e anulando nossos modos de vida, como aconteceu por décadas do século XX em alguns países sob o regime comunista, a identidade franciscana seria salva e resguardada pelo cultivo da Integridade da Criação, da Justiça e da Paz. A JPIC não se caracteriza, originalmente, por atividades, mas pelo cultivo: é um modo de olhar, de avaliar, de se interessar, de buscar e de apreciar, e sobretudo de se relacionar, que tem a ver mais com postura, modo de ser, sensibilidade e cultivo do que com atividade. Somente dentro deste cultivo da paz, da justiça, da integridade ou da “inteireza” com toda criatura, cultivo que brota de um modo de ser, que modela a identidade franciscana ao constituir o seu ser, é que podem também surgir planejamentos, programas, ações, movimentos, instituições como a já famosa Franciscans International[1].
Ser pessoas pacificadas e pacificadoras, inebriadas de paz para destilar paz, ao modo da também famosa oração da paz atribuída justamente a São Francisco: isso é da identidade da pessoa, e sem esse cultivo não dá para entender a identidade franciscana. A paz “franciscana” não é, em primeiro lugar, uma atividade em favor da paz, mas um modo de ser e de viver, de testemunhar e de se relacionar. A paz, “pericoreticamente” – segundo o conceito trinitário de que um está para o outro, no outro e desde o outro –, é intrínseca à fraternidade e ao despojamento da minoridade. São Francisco não quis propriedades porque teria que erguer muros e colocar canhões, e assim ele optou pelo despojamento e pela fraternidade ao invés de propriedade e canhões. Tornou-se assim apto a ser mediador de paz entre o bispo e o prefeito, entre a cidade e o lobo. Não se pode pensar em fraternidade e minoridade sem paz, desde a paz mais interior até a que se leva à Igreja e ao mundo ao redor como missão de paz. A própria missão não é uma atividade externa à identidade da pessoa franciscana, mas derramamento de seu ser e de sua identidade.
Quando pensamos a justiça, a sede e a luta por um mundo justo, poderíamos pensar nas comissões de justiça e paz disseminadas em dioceses, por exemplo, ou na diplomacia em favor da justiça e da paz que levou o capuchinho São Lourenço de Brindes, em nome da Igreja, por toda a Europa até morrer em Portugal, assim como temos hoje a missão JPIC da Franciscans International junto à ONU. Mas há algo mais original também na justiça. Para compreendê-la, vale contrastar com a justiça distributiva do Direito romano, o unicuique suum – “a cada um o que é seu”. Essa justiça segue a propriedade, o mérito e a meritocracia. Assim, o trabalhador merece justamente a recompensa na medida do seu trabalho. E o desempregado e o doente? Em Francisco há uma justiça criativa que olha para além do mérito, que abraça até quem está em falta, a justiça aliada à misericórdia. A economia da tradicionalmente chamada “Mesa do Senhor”, indicada na Regra, é um excelente exemplo. Por um lado, quem tem a “graça de trabalhar” deve corresponder diligentemente, e se não for pago nem reclame: a Regra rompe a natural justiça retributiva e meritória. Mas podem, se precisarem, pedir de graça, ou seja, ir à porta dos outros que têm o que precisam e esmolar. Rompe assim também a medida justa de compra e venda. E ensina, dá oportunidade a que outros também abram mão das medidas, e ultrapassem a linha dura da propriedade doando gratuitamente. É a justiça do dom, do “dai vós mesmos de comer”. E, terceiro ato: levem tudo à Mesa do Senhor, ou seja, disponham do que recebem seja pelo trabalho ou pela esmola, para que todos os servos que estão no “feudo do Senhor Altíssimo”, possam vir à mesa para comer. Assim os que não têm a graça de trabalhar – doentes, pobres, os sem oportunidades de trabalho – podem comer. O socialismo ou o comunismo não poderiam sequer imaginar em chegar tão longe: o Pai nosso é de todos, o Pão nosso é para todos. Isso se chama justiça “criativa”, justiça que cria, que retifica, que justifica, que endireita o que é torto, que arruma o que está desordenado, que se supera numa fraternidade criativa lá onde antes a fraternidade não existia e os bens faltavam.
Além da economia da Mesa do Senhor, há outro exemplo dessa justiça criativa que “põe justiça” ao invés de cobrar justiça: o exercício do perdão, a capacidade de pedir e dar perdão. Uma das características da forma de vida franciscana é ser pessoas que se dispõem ao perdão. Francisco começou esse caminho com o chamado “Perdão de Assis”, a indulgência que justifica inteiramente quem peregrina para a igrejinha de Santa Maria dos Anjos. Ele criou assim uma alternativa à indulgência para os que iam à Cruzada correndo risco de vida, ou iam a Roma em romaria, o que supunha ter um certo patrimônio. Francisco conseguiu esta possibilidade para os pobres da região, porque o perdão é a melhor forma da missão, melhor experiência da boa notícia do evangelho, da pacificação e sobretudo da justificação, da dignidade dos pecadores e dos pobres.
Hoje, em termos mais contemporâneos, a justiça criativa, que torna justo, não a que cobra méritos, é a justiça dos Direitos Humanos. Novamente aqui: não se trata em primeiro lugar da luta pelo reconhecimento dos direitos humanos das pessoas que estão em minorias ameaçadas, desprezadas, etc. mas se trata em primeiro lugar de viver pessoalmente no modo de reconhecimento da dignidade e portanto dos direitos humanos de todos, começando pelos mais fracos e ameaçados. Ou seja, não se pode ser franciscano pelos direitos humanos se isso não provém do íntimo reconhecimento dos pobres que o próprio franciscano experimenta em si mesmo, abrindo os laços de fraternidade para os que na sociedade não tem ainda este reconhecimento. Francisco pediu que os frades menores, andando entre pobres e fracos, entre leprosos e até bandidos, não tivessem vergonha. Pelo contrário, ali está a fraternidade na minoridade, o espaço da identidade a partir de um sine proprium, um despojamento de toda propriedade. Em outras palavras, é sentindo em si mesmo a dignidade e o reconhecimento da humanidade dos menores, dos pequeninos da sociedade, que está o começo da verdadeira justiça. Portanto, a justiça criativa, justificadora, compassiva e capaz de perdão é intrínseca à identidade criativa e fraternal do ser franciscano.
Nesse tempo de preocupação e de sensibilização ecológica não parece ser difícil ver em Francisco, o padroeiro dos ecologistas e o protetor dos animais, um chamado ao cultivo da integridade da Criação. Mas, novamente, é necessário o cuidado para não reduzir esse cultivo a uma atividade, a um programa de ONG. É antes um relacionamento: de fraternidade universal, criatural, de tal forma que não é mero romantismo dizer à agua “minha irmã” humilde e casta, ou no senhor e irmão sol contemplar a imagem do Senhor que dá a vida. O sol de fato dá vida e a água purifica, são carismas e sacramentais das criaturas, e assim a grande fraternidade criatural não tem limites. No Elogio às Virtudes, ao louvar a obediência, Francisco exorta e louva quem obedece até os animais ferozes tanto quanto a Deus aprouver, portanto rompendo hierarquia, servindo toda criatura como a menor de todas. As criaturas entram nas relações de fraternidade e de minoridade. Elas louvam conosco no Cântico do Frei Sol e assim ganham espiritualidade, ao mesmo tempo em que a espiritualidade e a contemplação franciscana se alargam e abraçam toda criatura. Só assim também o cuidado, o mesmo de que está cheio São Francisco, se torna trabalho e programa de defesa da Criação, portanto da ecologia, inclusive em alianças até com ateus se isso ajuda no cuidado integral, na integridade da Criação.
Em conclusão, Justiça, Paz e Integridade da Criação – JPIC – penetram e formam a identidade franciscana como a Fraternidade e a Minoridade, a contemplação e a missão apostólica. Elas são como as virtudes elogiadas por Francisco: quem tem uma tem todas, quem ofende uma ofende todas e não tem nenhuma! Nós somos uma geração de franciscanos privilegiada e feliz que, uma vez recuperadas de forma adequada as fontes franciscanas, podem compreender a largura e o comprimento, a altura e a profundidade da identidade franciscana. É um modo de ser humanamente rico e inesgotável, aberto universalmente pela vivência interior e orante da paz, da justiça, da inteireza criatural e fraterna na simplicidade e no despojamento. JPIC não é originalmente um conjunto de atividades, mas uma forma de vida, como a fraternidade e a simplicidade: um cultivo da pacificação, da justificação, da integração, e só assim se torna também atividade, programa, movimento e bandeira.
Frei Luiz Carlos Susin, frade capuchinho gaúcho, teólogo