Famílias: (re)conhecendo e acolhendo com amor
Nos últimos anos, diferentes configurações familiares ganharam maior visibilidade em nossa sociedade, sobretudo como resultado de uma luta contra o preconceito e a discriminação, que ainda se faz necessária.
Além da família matrimonial, constituída pelo casamento, existem diversos formatos de família que receberam nomes e conceitos próprios no âmbito da Psicologia, da Psicanálise e do Direito de Família, como: família monoparental, família anaparental, família mosaico, família homoafetiva etc.
Toda essa classificação se justifica para dar a necessária visibilidade e o devido respeito a essas famílias por parte da sociedade, que insiste em esperar que a família tenha uma única forma de constituição.
Em breve, essa nomenclatura pode deixar de ser utilizada para que família seja apenas família, independente da origem, sem qualquer discriminação, mas enquanto não alcançamos esse nível de acolhimento, vamos conhecer o que nos trazem alguns desses conceitos.
A família monoparental, por exemplo, é aquela formada por um pai ou uma mãe e seus filhos, e é reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal (art. 226, § 4º). Em muitos casos, essa família decorre do abandono de um genitor (e não pai) que sequer chegou a reconhecer o filho ou a filha.
A distinção entre pai/mãe e genitor(a) é importante porque nem sempre esses conceitos estão reunidos em uma mesma pessoa. Assim, considera-se pai e mãe quem efetivamente exerce as funções de pai e mãe, ao passo que genitor(a) que não exerce o papel de pai/mãe é tão somente doador(a) de material genético.
Já a família anaparental, é aquela em que não há pai ou mãe, e é formada entre irmãos, primos ou pessoas que tenham algum grau de parentesco, sem que haja conjugalidade ou vínculo ascendente ou descendente.
A família mosaico (reconstituída/recomposta/redimensionada), é aquela formada por pessoas oriundas de uma família, cujos laços do casamento ou da união estável foram desfeitos. É o caso, por exemplo, de uma pessoa em segundas núpcias, que trouxe para um novo núcleo familiar filhos do relacionamento anterior, e nesse novo núcleo familiar gerou outros filhos. Nesses casos, surgem as figuras dos padrastos/madrastas e enteados(as).
Talvez não estejamos acostumados com os nomes, mas esses modelos são há muito tempo conhecidos por nós. Afinal, quem não conhece uma família formada por mãe solo? Ou uma família cujo pai ou mãe esteja em segundo (ou mais) casamento ou em segunda (ou mais) união estável?
Damos muita importância ao que dizem os documentos, e nos esquecemos de verificar se as situações fáticas refletem o que diz o papel. Às vezes, o genitor até reconheceu a paternidade perante o oficial de registro civil (cartório), mas nunca exerceu a função de pai, abandonando a prole. Nesse caso, os filhos/filhas têm o nome do “pai” nos documentos, mas não têm pai nenhum na vida.
Em outros casos, a paternidade sequer foi reconhecida e não há um pai nos documentos nem na vida.
Contudo, restritos à nossa própria realidade, oriundos de família matrimonializada, com pai e mãe presentes na criação dos filhos, ignoramos outras realidades e diariamente presumimos que todas as pessoas tenham sido reconhecidas pelo pai.
Uma situação que comprova esse nosso modo de pensar, que é ignorante, egoísta e preconceituoso, é o fato de nos depararmos corriqueiramente com formulários que questionam dados de pai e mãe, quando há muito tempo se deveria questionar apenas a filiação, que pode ser de pai e mãe; ou só de mãe; ou só de pai etc., pois tem gente que não tem pai porque foi abandonada, ou sequer teve a paternidade reconhecida, mas tem gente que não tem pai porque é fruto de uma família homoafetiva feminina, e tem duas mães, em vez de um pai e uma mãe.
Felizmente, nos dias de hoje, as certidões de nascimento indicam apenas a filiação da pessoa registrada, sem especificar “pai” e “mãe” e, quanto aos avós, não se indica mais “maternos” e “paternos”, mas apenas “avós”.
Medidas como essa refletem a adequação do sistema à realidade social, pois em uma família homoafetiva, isto é, formada por pares homossexuais, é possível que os filhos tenham uma dupla paternidade (dois pais) e nenhuma mãe, ou uma dupla maternidade (duas mães) e nenhum pai.
Considerando esse último exemplo (duas mães e nenhum pai), a certidão de nascimento que contém o campo destinado à informação sobre a paternidade não atende àquela realidade familiar, formada por duas mães e nenhum pai, devendo conter apenas o campo destinado às informações sobre a maternidade, ou simplesmente conter o campo “filiação”, como tem sido feito.
Por isso, atentos à realidade e abertos ao acolhimento de todas as famílias, não devemos presumir que todas as pessoas tenham em suas vidas e em seus documentos um pai e uma mãe, pois há muitas pessoas que foram abandonadas pelos pais biológicos, ou sequer foram reconhecidas, mas há também os casos de dupla maternidade, dupla paternidade e até de multiparentalidade, que é a pluralidade de vínculos parentais (paternos e maternos) que, no Brasil, já pode constar dos documentos.
Quando uma pessoa tem um pai e duas mães ou dois pais e uma mãe, como no caso de Jesus, que é filho da Virgem Maria, de Deus e de São José, há multiparentalidade, pois está presente a pluralidade de vínculos paternos ou maternos, ou seja, mais de um vínculo, concomitantemente à existência de um único vínculo materno ou paterno.
Geralmente, o segundo (e demais) vínculo parental decorre da socioafetividade, que é uma situação que gera o vínculo de parentesco a partir da maneira como os envolvidos se reconhecem entre si, e não com base no aspecto biológico.
Assim, pode ser que uma pessoa tenha dois pais, sendo um biológico e o outro socioafetivo, e uma mãe, por exemplo. Os filhos(as)/pais/mães “de criação”, com os quais estamos há tanto tempo acostumados, refletem bem o que é o vínculo socioafetivo. Nesse caso, ainda que não haja vínculo biológico, há quem faça o papel de pai/mãe, assim como há quem faça o papel de filho(a) e, dessa forma, são reconhecidos mutuamente e perante a sociedade.
Mas ainda esperamos que pais/mães e filhos(as) tenham necessariamente um vínculo biológico, apesar da existência tão antiga dos chamados filhos/filhas e pais/mães de criação, e apesar da adoção ser uma forma bastante consolidada de estabelecer o vínculo paterno/materno-filial, inclusive com sólida regulamentação legal em nosso país.
Insistimos ainda em classificar filhos/filhas como “adotivos(as)” ou “de criação” ou “do coração” ou “do primeiro casamento”, quando, na verdade, filhos/filhas são apenas filhos/filhas, sem qualquer adjetivo para classificar, pois a classificação discrimina, e a Constituição Federal veda qualquer discriminação em relação à filiação (art. 227, § 6º).
Como cristãos e franciscanos, devemos nos atentar a todas as realidades que nos cercam, impedindo constrangimentos e combatendo com informação e diálogo todo tipo de preconceito e discriminação contra qualquer ser humano.
O respeito a toda forma de família começa com pequenos gestos, como não presumindo que as famílias sejam necessariamente heteroafetivas; ou que necessariamente tenham um pai e uma mãe; ou que as pessoas nunca tenham dissolvido um vínculo conjugal.
Da mesma forma, o respeito a todas as famílias requer a eliminação de expectativas quanto à origem biológica do vínculo paterno/materno-filial, certos de que a socioafetividade, comprovadamente, gera vínculo de parentesco, a exemplo de Jesus e São José.
Assim, devemos nos abrir à consciência da realidade para, reconhecendo o valor de cada entidade familiar, independente de sua origem, acolhermos com dignidade todas as famílias no seio da nossa Igreja, com o amor que o próprio Cristo nos mandou dispensar ao próximo.
Jaqueline S. Vaz Rosa
Advogada de Assuntos Familiares.
Iniciante na Ordem Franciscana Secular – Fraternidade São Francisco de Assis (Vila Clementino).
Colaboradora da Evangelização com Adultos da Paróquia São Francisco de Assis (Vila Clementino).