5º domingo da páscoa
19/05/2019 – Ano C
Pistas homilético-franciscanas
Liturgia da Palavra: At 14,21b-27; Sl 144; Ap 21,1-5ª; Jo 13,31-33a.34-35.
Tema ou mensagem: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei
Sentimento: A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus (EG, 1 do Papa Francisco).
Introdução
O 5º domingo da Páscoa retoma e celebra de novo o coração do mistério pascal expresso no famoso ordenamento de Cristo aos apóstolos no sermão de despedida na Última Ceia, na véspera de sua crucificação: amai-vos uns aos outros como Eu vos tenho amado.
- A consolidação da fé
Na primeira leitura do domingo passado celebrávamos o primeiro anúncio de São Paulo, na abertura de sua primeira e grande viagem missionária e que culminou com o anúncio do tom de toda a sua obra evangelizadora: Deus escolheu os gentios – todos os povos – em substituição aos judeus para se tornarem seu novo Povo eleito.
A primeira leitura de hoje nos convida a celebrar não apenas o retorno de Paulo a Antioquia, mas também a consumação daquele evento: sua primeira catequese. Ao querigma une-se assim a catequese: o aprofundamento e a consolidação do primeiro anúncio: a fé. O que está em jogo, agora é a amadurecimento da fé recebida, o esforço para manter sempre viva e crepitando aquela chama do amor, da amizade com o seu Senhor, acesa pela pregação querigmática; é preciso que Ele se torne sempre mais e realmente seu Senhor, o Senhor da vida de todos os seus empreendimentos.
O primeiro artigo da catequese paulina vem assim anunciado: “Encorajando os discípulos, eles os exortavam a permanecerem firmes na fé, dizendo-lhes: ‘É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no reino de Deus…’” (At 13,21-22). A exortação não podia ser diferente, ou seja, só se pode seguir e imitar o mestre percorrendo fielmente, isto é com fé, amor e devoção, o mesmo caminho que ele percorreu: o da cruz, do sofrimento, do amor.
O sofrimento do cristão, porém, é revestido de grande alegria porque, a exemplo da mãe que carrega em seu ventre o filho amado – tesouro de sua vida – ele é chamado a carregar e a espalhar o precioso tesouro das sementes do Amor de Deus, do Reino dos Céus. Pois, não será “aquele que diz ‘Senhor, Senhor’, que entrará no reino dos céus, mas aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos Céus” (Mt 7,21).
Um segundo artigo muito importante na catequese paulina é a “designação de presbíteros para cada comunidade”. Paulo punha, assim, a primeira pedra da organização da Igreja, indispensável para o crescimento, desenvolvimento e fortalecimento de sua vocação-missão. Ao contrário, porém desta escolha ser feita pelos membros da Comunidade, como era costume entre os judeus da diáspora, ela é feita diretamente pelos Apóstolos. O significado é muito claro: na Igreja os féis e os cargos de direção e de serviço nascem do alto e não por uma escolha humana como entre os membros de uma sociedade meramente humana de ordem social e política, por exemplo. Torna-se, assim e por outro lado, um sinal muito claro da colegialidade apostólica da missão e das relações entre a Igreja local e universal.
Terminada a Catequese em Antioquia, os dois, Paulo e Barnabé, partem para nova viagem missionária sempre “entregues à graça de Deus, para o trabalho que haviam realizado” (At 14, 26), anunciando sempre a todos “tudo o que Deus fizera por meio deles e como havia aberto a porta da fé para os pagãos” (At 14,27).
- Um novo céu e uma nova terra
A segunda leitura continua sendo tirada do Apocalipse. João, em sua visão profética, depois de descrever a definitiva e total derrota do mal, representado pela besta e pelos reis da terra (Ap 19,19) e pelo dragão (Ap 20,2), vê “um novo céu e uma nova terra… que descia de junto de Deus” (ap 21,1-2). Começa assim a tornar-se realidade a utopia ou o eterno desejo do homem acerca de sua imortalidade ou ressurreição, pois “o mar”, com tudo aquilo que sua opacidade representa, já não existe”. Não existe porque “a cidade santa, a nova Jerusalém” desceu de junto de Deus para tornar-se na terra e com a terra a morada de Deus, a esposa de “seu marido”.
Deus, assim não é mais e apenas o Deus do Céu, das alturas, o Criador longínquo, pedido no espaço e no tempo, mas o Deus do “aqui e agora”, o “Deus conosco”, no meio de nós, em nós, da e na nossa história, da e na nossa vida: “Eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles” (Ap 21,3). Por isso, impressiona que na visão apocalítica de João não há um templo. Isso era um escândalo para os judeus tardios, pois para esses era inimaginável uma Jerusalém celeste sem um templo, rico, esplendoroso, triunfante.
Outro aspecto que impressiona na visão de João é que a nova cidade santa, transformada toda inteira em templo, venha cheia de povos e nações de todas as espécies. Mais um escândalo, pois sabemos que para os judeus os pagãos eram considerados como impuros a ponto de serem chamados de “cães” e que não podiam de jeito nenhum serem admitidos no seu convívio muito menos no templo.
Esta visão pode ser considerada como o princípio do assim chamado “secularismo” ou secularidade cristã. Para o judeu o “sagrado”, ou seja o lugar, o espaço da relação do homem com Deus e vice-versa estava ligado a uma determinada cultura, a um determinado povo, pessoas e principalmente, a um “lugar consagrado”. Com o mistério da encarnação de Cristo que se consuma com sua morte e ressurreição, todo o universo se torna templo, casa de Deus. Por isso, ele pode e deve ser encontrado tanto em cada criatura ou acontecimento, em cada pessoa – templo vivo – como nos templos feitos de pedras. Para encontrar-se com Deus não há mais privilégios de raça, cultura, tradições e de religiões. Bem respondeu São Francisco à Senhora Pobreza quando esta pediu-lhe que mostrasse o convento. Mostrando-lhe todo o universo disse-lhe: “Este é o nosso convento” (SC 30).
- De novo o novo mandamento
Aproximando-se do fim do tempo pascal, a Igreja tem por bem, retomar e celebrar de novo o grande mandamento do Senhor, princípio do novo céu e da nova terra.
- Na Cruz a glória de Cristo e do cristão
Na abertura do evangelho de hoje temos a famosa frase de Jesus, pronunciada logo após Judas sair do cenáculo para dar andamento à sua traição: “Agora, o Filho do homem é glorificado” (Jo 13, 31). Não é muito difícil imaginar o alvoroço que este anúncio deve ter provocado no coração de cada um dos apóstolos. Se esta era a hora da glorificação do Mestre, certamente seria também a deles. Em breve seriam elevados a ministros, chefes e governadores de Israel e, quem sabe, até mesmo de uma boa parte deste mundo. Sabemos, porém, que eles ainda não estavam à altura de compreender e de aceitar que Jesus estava falando de outra glória.
Talvez seja bom, primeiramente, tentar intuir o rico significado deste termo. Usualmente, entendemos glória como uma realidade estática, pronta, feita, algo como fama ou prestígio que alguém conquistou ou recebeu. Como todas as realidades humanas, porém, glória se constitui a modo de fruto de uma longa história. É o brilho, a luz da obra, ou melhor, da operação; é o fulgor que vem nascendo, se revelando, se constituindo e se difundindo e infundindo numa pessoa, na medida que essa se doa, se entrega na busca de sua identidade, vocação e missão. Neste sentido é que se fala na glória de uma mãe, de um professor, etc. Mas, há também a glória do próprio ser, como tal. Como não admirar, por exemplo, a glória de uma criança recém-nascida, de uma árvore ou de uma pedra!? Os salmistas, por exemplo, não cessam de cantar a glória de Deus se espalhando por toda a terra através das criaturas (Cf. Sl 72,19). Parafraseando São Boaventura podemos dizer que cada criatura é glória, brilho, presença de Deus. No Antigo Testamento, a glória de Deus é o brilho, o esplendor de sua manifestação majestosa, a irradiação de sua presença magnânima, que se manifesta sobretudo nas suas teofanias, como algo de numinoso, isto é, enquanto mistério tremendo e, ao mesmo tempo, fascinante.
A glória de Jesus já vinha sendo anunciada como o brilho de sua parousía, isto é, de seu advento, de sua chegada entre os homens, pela encarnação: “E nós vimos a sua glória; glória essa que, Filho único cheio de graça e de verdade, ele tem da parte do Pai” (Jo 1, 14). Esta glória do Unigênito, do Filho de Deus, vai se manifestando cada vez mais intensa e fortemente de várias formas e em diversas ocasiões, como, por exemplo, nas bodas de Caná, na morte e ressurreição de Lázaro, na Transfiguração (Lc 9, 28-36), etc. Mas, para João, o momento da Páscoa de Cristo, de sua passagem deste mundo ao Pai, pela paixão-morte-ressurreição, é o momento mais decisivo, o auge de sua glorificação como Filho do homem que, então, se revela verdadeiramente como, Filho de Deus (Mc 15,39).
A Cruz de São Damião, diante da qual Francisco orou e experimentou sua vocação a reformar a Igreja de Cristo, retrata bem a glória do Crucificado. O brilho dourado e a luz que circunda o Crucificado e que envolve os participantes da crucificação comunica, de forma icônica, esta glória que se dá na cruz. O artista que a criou era um bom teólogo: percebeu o sentido da glorificação do Crucificado na própria cruz, segundo a mensagem do Evangelho de João.
Para João, a Cruz é glorificação do Filho do homem, é o “agora” escatológico, o auge, o cume de todo empenho de um Deus imortal fazer-se inteira, absoluta e definitivamente Homem mortal para que o homem mortal se tornasse imortal; empenho para que também nós pudéssemos comungar de sua glória de verdadeiros filhos de Deus, cheios de graça e de verdade.
- No novo mandamento do amor o princípio do novo homem e de sua história
Mas, onde está a novidade deste mandamento? Está no fato de não ser mais propriamente uma lei mas uma Pessoa – Deus, na pessoa de seu Filho Unigênito, Jesus Cristo. Assim, quando amamos (Deus ou o próximo) em verdade é Deus quem, em nós ou por nós, está amando. Isso significa que nós por nós mesmos não somos capazes de amar. Se amamos, como diz São João, é porque “Ele nos amou por primeiro” (1Jo 4). Por primeiro não tem sentido cronológico, mas radical, de raiz. Ou seja, é no amor, que é Ele, que amamos. “Como eu vos amei, vós também deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13, 34), significa, então, amar na união de convivência (koinonia), de doação, de entrega um ao outro inaugurado por Cristo. Eis o novo “princípio da estruturação constitucional da Humanidade” (Harada): o amor (agápe)[1]. Eis a nova ”regra” de vida, que se põe como princípio da nova humanidade; eis a co-missão, isto é, o encargo, a incumbência, a tarefa por ser realizada, por ser “perfazida” (sentido de entolé = mandamento) pelos discípulos de Jesus Cristo, que são associados a Ele na comunhão (koinonia) de amor com o Pai.
E como Cristo amou os homens? “Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1), isto é, até o sumo, ao extremo de dar a vida. Perfazer a via excelente deste amor (cfr. 1Cor 13) é o sentido de ser do viver cristão. Este mandamento novo tem o poder de criar a nova humanidade. Agostinho dizia: novo é este mandamento, pois este amor tem o poder de renovar os homens. Com ele surge “a nova humanidade na “Ternura e Vigor” da Boa Nova de um Deus cujo amor O fez humano e habitar entre nós” (Harada). Amar assim, leva-me a amar todas as pessoas e criaturas que encontro no caminho da vida, especialmente aquela que anda desamparada; é deixar-se atingir nas próprias vísceras pela miséria do outro homem, seja de que tipo for esta miséria; é fazer misericórdia (São Francisco, Testamento); é atender ao mandamento: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36).
O centro – sentido – da História não é, pois, nenhuma ideologia ou visão de mundo, política ou religiosa, nem o capitalismo nem o socialismo, nem o judaísmo, nem o “cristianismo”, nem mesmo o “franciscanismo”, isto é, qualquer “ismo”. É o Homem e, no centro do Homem, Jesus Cristo, o Summum Opus Dei (a suma obra de Deus). É, para Francisco, Jesus Cristo crucificado que todos os dias se humilha descendo do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacerdote, a fim de ser Deus-conosco até o fim dos séculos (Ad I). Por isso, ao dizer “Tomai e comei…” Ele está dizendo que é para tomar e comer seu Corpo, tomar e beber seu sangue, assumir e encarnar sua pessoa, sua obra, sua história, enfim, toda a sua Paixão e sua Cruz.
Todos os “ismos”, enquanto e como tais, na verdade, pervertem o Homem porque o centro de sua busca não é o Homem, mas o bem reduzido a valor e o valor reduzido a capital: capital-dinheiro, capital-trabalho, capital-informação-conhecimento-saber, capital-prestígio e influência social, etc. O perigo destes valores-capitais é de se tornarem ídolos, “deuses” que, a exemplo de Mosoc, exigem o sacrifício do homem. Em vez de o homem se servir deles serve a eles, escravizando-se a eles e perdendo sua vida nesta escravidão. Deus, o Pai de Jesus Cristo, é o radical Outro, o oposto: Ele, Deus e Senhor da vida, se sacrifica, morre na cruz, morre na Ceia eucarística a fim de tornar-se comida, ser comido, literalmente, pela sua criatura (Cf. LS 236) para que essa, o homem, aqui e agora e sempre, possa viver e viver em abundância. Eu vim não para ser servido, mas para servir e dar a vida em favor de muitos.
Por isso, a Última Ceia, sempre foi tida pelos Apóstolos como o núcleo-fonte, a célula-mãe da Igreja. Não esqueçamos, porém, que no coração da Última Ceia está a obra da Sexta-feira santa: o mistério do sacrifício de Cristo na Cruz. Assim, a partir deste Amor, os homens podem amar-se uns aos outros: os sacrifícios devem dar lugar, agora, à misericórdia e à caridade evangélica. Assim, fazer comunidade é fazer eucaristia e fazer eucaristia é fazer comunidade a modo ou no vigor de Cristo crucificado.
Acerca desse princípio assim se expressa o Papa Francisco: A criação encontra a sua maior realização na Eucaristia […] quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontra-Lo em nosso próprio mundo. (LS 236).
Por isso, não se pode baratear o mandamento do Novo Amor – núcleo originário da Última Ceia-Missa(ão)-Eucaristia-Cruz – pois o que de fato Cristo ordena é um absurdo, uma coisa bárbara, impossível: amar a Deus e até o inimigo como Ele ama. Mas, como Ele mesmo diz, o que é impossível para o homem torna-se possível para Deus.
Conclusão
Estamos tão acostumados em ouvir e falar deste mandamento maior e inaudito que, hoje, quase ou pouco repercute em nós. Numa sociedade ou humanidade na qual se cometem atrocidades hediondas com matanças diárias de inocentes, vale lembrar a importância de uma “Civilização do Amor” proposta pelo bem-aventurado Papa Paulo VI, no encerramento do Ano Santo em 1975: “Não o ódio, nem a disputa, não a avareza será a sua dialética, mas o amor, o amor gerador de amor, o amor do homem pelo homem, não por algum provisório e equivoco interesse, ou por alguma amarga e mal tolerada condescendência, mas por amor a Ti, a Ti ó Cristo percebido no sofrimento e no necessitado de todo o semelhante. A civilização do amor proverá em todas as lutas sociais e dará ao mundo a sonhada transfiguração da humanidade finalmente cristã…”
Em sintonia com Paulo VI, também São João Paulo II assim se expressou”. “O cristão sabe que o amor é o motivo pelo qual Deus entra em relação com o homem; e é o amor também que Ele espera do homem como resposta. Por isso, o amor é a forma mais alta e mais nobre de relação dos seres humanos inclusive entre si. Conseqüentemente, o amor deverá animar todos os setores da vida humana, estendendo-se também à ordem internacional. Só uma humanidade onde reine a civilização do amor poderá gozar duma paz autêntica” (Mensagem de João Paulo II para a celebração do Dia Mundial da Paz – 2004).
Falando desse amor em São Francisco, assim se expressa São Boaventura: Quem poderá descrever suficientemente a caridade ardente, em que se consumia Francisco, o amigo do Esposo? Pois parecia todo absorto, como um carvão abrasado pela chama do amor divino. É que, ao ouvir, de repente, falar do amor do Senhor, ficava empolgado, comovido e inflamado, como se as cordas interiores do coração fossem tocadas pelo arco da voz exterior (1B 9,1).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini
[1] Primeiramente precisamos levar em conta que nossa língua não consegue expressar a riqueza do mandamento do amor de Cristo. Os antigos tinham uma palavra para expressar o amor familiar (amor entre familiares), outra para o amor entre amigos, colegas, etc. e outra para o amor de doação, de sacrifício. Quando a Sagrada Escritura fala deste amor sempre usa a apalavra grega “agápe” e o verbo “agapáo” ou a palavra grega “cháris” (daí, em latim, caritas) e jamais a única palavra, ”amor” ou “amar”, como nós fazemos. Ora, é evidente que na Última Ceia, Jesus está falando do amor-doação (agápe) e não apenas do amor entre familiares ou amigos.