QUARTA-FEIRA DE CINZAS – ANO C 06/03/2019

QUARTA-FEIRA DE CINZAS  –  Ano C   06/03/2019

Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da Palavra: Jl 2, 12-18; Sl 50; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6, 1-6.16-18

TemaMensagem: Quaresma, Tempo de renovar e reafirmar nossa volta para o Senhor, de rasgar não as vestes, mas o coração com lágrimas, jejuns, esmolas e oração.

Sentimento: Dor-contrição-alegria

Rito: [Entrada solene da Cruz]

Giovanni Francesco Barbieri, Il Guercino (1591-1666), O retorno do filho pródigo.

Introdução 

Desde o século IV, nós cristãos adotamos o costume de preparar a festa anual da Páscoa com uma Quaresma (no latim: Quadragesima: quarenta dias) de penitência ou conversão. Assim, durante quarenta dias, desde hoje, Quarta-feira de Cinzas, até a Páscoa, queremos, mais uma vez, retomar nossa disposição de voltar a caminhar com mais fervor junto com Jesus; de participar e comungar mais de perto, com mais dor, contrição e alegria, e mais plenamente, do mistério de sua Paixão-Morte e Ressurreição. 

  1. Tempo de voltar para o Senhor [Jl 2,12-18]

Quem, na liturgia de hoje, nos introduz no mistério deste processo de retorno é o próprio Senhor. Através de seu profeta Joel, proclama e grita por duas vezes: “Voltai… voltai!” Sim, “voltai para mim com todo o coração, com jejuns, lágrimas e gemidos… voltai para o Senhor…” (v. 12 e 13).

 1.1. O penhor da graça e o empenho da conversão

Joel, inicia a perícope de sua profecia, proclamada hoje, com um “agora”. Este agora não é o agora, o tempo dos homens, mas de Deus: o “dia do Senhor” agir, o dia da iniciativa da graça, do julgamento divino universal sobre a história humana. A esta iniciativa deve co-responder o homem com sua decisão de um despojamento (desprendimento, desnudamento) total como condição sine qua non para receber a salvação. Por isso, isto é, por ser graça vinda do Senhor, a conversão há de ser de todo o coração, quer dizer, desde o âmago do homem, implicando em suas reflexões, decisões e atitudes.

Segundo Joel, três são as grandes razões que movem a penitência. Primeiramente, o próprio Senhor. Ele é quem deseja que seu povo veja e sinta o quanto Ele é “benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, sempre pronto e inclinado a perdoar”. Em segundo lugar, era necessário despertar, de novo, em Israel a confiança e a alegria: que Israel, apesar de seus pecados, sentisse que Deus é capaz de transformá-lo numa oblação agradável e numa libação pura (Cf. v. 14). Por isso, tudo o que o homem pode, alegre e agradecido, ofertar ao Senhor – oferenda e libação – já é dom do próprio Senhor (v. 14). Finalmente, a honra do próprio Deus. Sim, o que iriam dizer as demais nações diante de um Deus que não seria capaz de salvar seu próprio povo?  “Porque se haveria de dizer entre os povos: ‘Onde está o Deus deles?’” (v.17). Jamais Deus poderia passar por este vexame. O que está em jogo, portanto é a honra, a grandeza do próprio Deus.

1.2.  Rasgar o coração e não as vestes

O retorno, a conversão, portanto, tem sua origem na experiência do encontro com o amor misericordioso de Deus. Por isso, mais do que um espetáculo exterior, a penitência quaresmal é um evento espiritual-teologal, um processo interior de transformação do coração, da mente, do espírito do homem no seu ser-para-Deus. Daí a advertência de Joel: “Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos”.

Uma veste inteira é melhor do que uma veste rasgada. Mas um coração rasgado, isto é, dilacerado, ferido pela compunção, pela dor do arrependimento, é melhor do que um coração que não conhece a contrição. A compunção, a dor pela vida dispersa e perdida, distante do Senhor, é o que leva o homem a recolher-se diante de Deus, provocando nele a resolução, isto é, a abertura de se doar para receber o Senhor gracioso.

A vida do homem costuma ser uma fuga de si mesmo e uma fuga do Senhor. Converter-se, significa, então, fazer uma virada, uma guinada. De uma vida de fuga para uma vida de auto-responsabilização, no cuidado de si, dos outros, de tudo, comprometendo-se a, de boa vontade, querer o que Ele quer e como Ele quer – sendo que sua vontade é amor, bem-querer. Voltemos, pois, a Ele, como o enfermo volta ao seu médico, o filho distante ao Pai.

Assim, da fuga passaremos ao encontro, do encontro à transformação e da transformação à conversão, e da conversão à intimidade e da intimidade à identificação com o próprio Senhor, o sumo bem, o bem inteiro, o único bem, como gostava de se expressar São Francisco (Cf. ELD).

Além de um processo que move a pessoa toda e toda a pessoa, de dentro para fora, a conversão, como graça e obra do Senhor é para todo o povo, desde as crianças de peito até os anciãos, passando pelos recém-casados, todos, incluindo sacerdotes, são chamados, con-vocados à penitência, isto é, à conversão, ao retorno ao Senhor. Em verdade, a história da salvação nunca esteve voltada ao redor de indivíduos, mas de um povo.

  1. Com lágrimas e gemidos (Sl 50)

Assim, a Quaresma, deve ser assumida como uma viagem de quem, depois de ter-se afastado, é chamado a voltar-se novo, para o seu Senhor. Uma aventura marcada por lágrimas e gemidos da contrição e arrependimento, tão bem decantados por Davi no salmo que ele compôs após a amarga experiência de seu pecado e que é usado como salmo de meditação e de resposta na celebração de hoje (Sl 50).  Prosternado diante da face do Senhor, Davi confessa sua culpa, reconhece seu pecado, implora perdão, misericórdia e purificação: “Tira o meu pecado com o hissopo e estarei puro; lava-me, e serei mais branco do que a neve”.

Chorar a própria miséria, doer-se do próprio mal, é melhor do que alegrar-se com uma ilusão. A verdadeira felicidade é alegrar-se na verdade. Alegrar-se no engano, com a ilusão, é estar fadado a uma maior infelicidade, que vem com a frustração da desilusão. As lágrimas que nascem da verdade são melhores que os risos que nascem do engano, da ilusão. As lágrimas purificam, lavam a alma. Elas mostram um coração contrito, humilhado, isto é, que “caiu na real”. Não à toa, no Sermão da Montanha, o Senhor recomendou a bem-aventurança dos que choram.

As lágrimas que nascem do arrependimento são boas. Boas são as lágrimas do temor. Mas melhores ainda são as lágrimas do amor. Nelas, o homem chora por estar tocado pela presença do Senhor que, gracioso, lhe vem ao encontro. E, quanto mais perfeito é o amor, tanto melhores, isto é, mais doces e suaves, são as lágrimas que o homem derrama em face de Deus, conforme ensina Santa Catarina de Siena, em seu Diálogo da divina providência. A mesma santa ensinava que há também lágrimas de fogo, que não escorrem nos olhos, mas que são derramadas no recôndito mais íntimo do coração humano. Elas se dão com os gemidos interiores, isto é, com o clamor dos afetos.

Excelentes foram as lágrimas de São Francisco, pois suas lágrimas nasciam de um amor perfeito: o amor pelo Amor que não é amado. As fontes franciscanas contam como ele andava a chorar pelas florestas, exclamando: “Choro a Paixão do meu Senhor e por causa dela não devo envergonhar-me de andar pelo mundo inteiro chorando em alta voz” (LTC 14). No coração da penitência cristã, está pois a necessidade de, como dizia São Francisco: amar muito aquele que muito nos amou (1B IX 1)

  1. 3.       A justiça humilde, escondida, na tríplice via da esmola, da oração e do jejum [Mt 6, 1-6.16-18]

No evangelho de hoje, Jesus, ciente de sua missão, começa a introduzir no coração dos seus discípulos o espírito que deve orientar a sua volta para o Pai. Por isso, começa com um alerta:  “Prestai atenção para não praticardes a vossa justiça diante dos homens…”. Eis, pois o espírito com o qual devem se impregnar todos aqueles que querem realmente voltar para o Pai, princípio e fim de toda a conversão e salvação: sua justiça e não a nossa. Assim, os que a praticam, os discípulos, hão de colocá-la em obra tendo os olhos fitos não em si mesmos, nem na consideração dos homens, mas unicamente no Mestre, que os precede no caminho do seguimento.

3.1. O caminho da esmola

No espírito ou movimento da Boa Nova, do bem-querer de Deus, a prática da esmola, isto é, da beneficência, há de evitar toda a hipocrisia e toda a jactância. A palavra grega “hypokrites” significa, originariamente, intérprete, ator, declamador. Em sentido pejorativo, porém, quer dizer simulador, fingido, mascarado, sujeito de duas caras. Neste sentido, hipócrita é alguém que está dando espetáculo de si para os outros e para si, querendo aparecer em seu próprio brilho e perfil e aparentar aquilo que ele não é. É, como dizemos, um “exibido”.

Os discípulos, porém hão de pôr em obra a justiça e a misericórdia diante dos homens, afinal, a sua luz deve brilhar diante dos homens; mas devem fazê-lo não como atores, como num teatro, para dar espetáculo, fazer exibição de si. Que jamais, como diz nosso Papa, pretendam ser o sol, mas a lua que apenas reflete os raios do sol. A auto-justificação e a auto-reflexão, espetáculo que o homem dá de si para si mesmo, e a consideração e o louvor dos homens no presente não lhes interessa. Buscam não seu próprio engrandecimento ou glória, mas o engrandecimento e a glória do Senhor.

São Francisco, querendo evitar o perigo da vanglória, isto é, da glória vazia, inane, que vem de si e dos outros, quando recebia uma consolação divina, suplicava ao Senhor, o Sumo Bem: “Senhor, a mim, que sou pecador e indigno, mandaste do Céu esta consolação e esta doçura. Senhor, eu as devolvo, para que as guardes para mim, porque sou um ladrão de teu tesouro. […] Senhor, tira-me o teu dom neste mundo e guarda-o para o futuro”. E exortava: “Assim é que se deve fazer: Quando sair da oração deve mostrar-se aos outros tão pobrezinho e pecador como se não tivesse conseguido nenhuma graça nova” (2C 99,3-6). E o grande discípulo de Francisco, Frei Egídio, dizia: “Julgo ser também um ramo da humildade devolver as coisas alheias e não apropriar-se delas, i. é., atribuir a Deus todos os bens, de Quem eles são, e os males a si” (DE 4).

3.2. O caminho da Oração

Em segundo lugar, Jesus fala do caminho da oração. Não diz que devemos orar – isto já está suposto e era óbvio – mas sim como devemos orar. Assim como a esmola, também a oração há de ser praticada pelo discípulo de Jesus não ao modo dos hipócritas, que visam exibir-se, dar espetáculo diante de uma platéia, aparecer, ser notados pelos homens. Num texto anônimo da antiguidade, escrito sobre o Evangelho de São Mateus, lê-se que os homens vendem uma imagem vazia da religião e compram uma palavra vazia de louvor humano. É um triste espetáculo!

Mestre Eckhart, no comentário ao livro da Sabedoria (6, 17), diz que “aquilo que cada um procura, e isso somente, é digno dele e ele daquilo”. E exemplifica: “se alguém cumpre uma ação procurando honra, não é digno de outra coisa do que de honra, e nada é digno dele se não a honra. De fato, este procura aquilo e, pelo fato de procurar a honra, não considera digna outra coisa do que a honra. Por isso, também, ele não é digno de outra coisa do que de honra, seja porque nada mais considera digno, seja porque procura a honra”.  Por isso, se alguém ora para receber os louvores humanos receberá os louvores humanos e não o reconhecimento divino. Onde e o que cada um semeia, ali e aquilo colhe. Para que isso não aconteça, diz Jesus, é preciso que cada um “entre no seu quarto, feche a porta e reze ao seu pai que mora no oculto” (V. 6).

À primeira vista poderíamos pensar que Jesus esteja menosprezando a oração pública. Isso não corresponde aos fatos, pois ele mesmo participava frequentemente das orações comunitárias nas sinagogas e no templo. O que está em jogo, aqui, é a essência da oração, isto é, aquilo sem o qual não existe oração.

A oração é, essencialmente, um ato que nasce da graça da fé, do encontro e, assim, de desprendimento, de abandono de si e abandono ao Pai como o demonstra Jesus em todos os momentos de sua vida. Na verdade, quem precisa da oração não é o Pai, mas o homem. Quem está distanciado não é o Pai do homem, mas este do Pai. Por isso, Jesus exorta os seus discípulos a entrar no seu quarto mais retirado, trancar a porta e dirigir sua prece ao Pai que está ali, no segredo, isto é, o coração, o seu intimo mais íntimo [Santo Agostinho]. Ali, o discípulo encontra Aquele que lhe é mais íntimo do que ele a si próprio: o Pai. É preciso trancar a porta, isto é, fechar-se aos pensamentos inoportunos, às solicitações exteriores e, segundo o próprio Mestre, abandonar a própria vontade na vontade do Pai.

“Entrar em seu coração, fechar, a porta e rezar ao Pai…” é fazer a experiência do vazio de si mesmo e da plenitude do Espírito. Por isso, diz São Paulo que nós, de nossa parte “não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém; mas o Espírito mesmo é quem intercede por nós com gemidos inefáveis” [Rm 8,26].

  1. O caminho do Jejum

Em terceiro lugar, Jesus evangeliza o jejum. O jejum, como toda ascese devota, é um grande bem, mas, se o discípulo de Jesus não o realiza no modo como este lhe ensina, traz grandes perigos.

De novo Jesus adverte contra o perigo da hipocrisia. O jejum pode se tornar jogo de cena, em que aquele que jejua assume uma máscara, desempenha um papel, visando, de novo, o tornar-se notável diante dos olhares humanos. O jejum, como toda a ascese devota, pode também ser assumido como um sofrimento que alguém impõe a si mesmo, a fim de comprazer-se de sua força de vontade, de sua autenticidade, de seu rigor, etc. Então o homem dá espetáculo para si mesmo. Ele se torna ator e plateia, ao mesmo tempo, do espetáculo de sua própria religião. Vira um herói e não um testemunho. O discípulo de Jesus há de praticar o jejum e a ascese, mas num outro modo e movido por um outro espírito, a saber, pelo espírito da humildade. Daí a recomendação de Jesus: “quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto para que os homens não vejam que estás jejuando, mas somente o Pai que está no oculto” (v. 17).

Se a esmola é para levar o homem ao irmão e a oração a Deus, o Pai, o jejum é para levar o homem à verdade de si mesmo. Por isso, dizia o Pseudo-Crisóstomo: “melhor é que o jejum te manifeste a ti do que tu manifestes o jejum”. O jejum é a oportunidade do desprendimento, do despojamento (desnudamento) de si, em face do Pai celeste.

Na renúncia ao prazer do comer e do beber, o discípulo de Jesus faz o anúncio de um outro alimento muito melhor, de uma outra bebida muito mais excelente: a vontade, o bem-querer do Pai. Por isso, o melhor jejum é o do coração: aquele em que o homem esquece de si, deixa-se para trás a fim de concentrar-se inteiramente na obra do espírito. Disso nos fala uma antiga estória chinesa:

         Khing, o mestre entalhador, fez uma armação para sinos, de madeira preciosa. Quando terminou, todos que aquilo viram ficaram surpresos. Disseram que devia ser obra dos espíritos. O Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador: “Qual é o seu segredo?”.

        Khing respondeu: “Sou apenas operário: Não tenho segredos. Há só isso: Quando comecei a pensar no trabalho que me ordenaste protegi meu espírito, não o desperdicei em ninharias, que não vinham ao caso. Jejuei, a fim de pôr meu coração em repouso. Depois de jejuar três dias, esqueci-me do lucro e do sucesso. Depois de cinco dias esqueci-me do louvor e das críticas. Depois de sete dias esqueci-me do meu corpo com todos os seus membros. Nesta época, todo pensamento de Vossa Alteza e da corte se evanescera. Tudo aquilo que me distraía do trabalho desaparecera. Eu me recolhera ao único pensamento da armação do sino. Depois, fui à floresta ver as árvores em sua própria condição natural. Quando a árvore certa apareceu a meus olhos, a armação do sino também apareceu, nitidamente, sem qualquer dúvida. Tudo o que tinha a fazer era esticar a mão e começar. Se eu não houvesse encontrado essa determinada árvore não haveria qualquer armação para o sino. O que aconteceu? Meu próprio pensamento unificado encontrou o potencial escondido na madeira; deste encontro ao vivo surgiu a obra que você atribuiu aos espíritos. (XIX, 10).

Para o discípulo de Jesus, a obra do Espírito consiste no único necessário: a exemplo de São Francisco, permitir, ou melhor, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que Cristo seja glorificado em seu corpo [Cf. Fl 1,21].

  1. A Igreja e o ministério da reconciliação [2Cor 5,20-6,2]

A segunda leitura de hoje, tirada da segunda Carta de São Paulo aos Coríntios, nos transporta para dentro do ministério da Igreja: “Somos, pois embaixadores de Cristo, e é Deus mesmo quem exorta através de nós. Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus”.

Deixar-se reconciliar com Deus é deixar-se renascer no seu perdão, tornando-se nova criatura: “Por conseguinte, quem está em Cristo é criatura nova. O que é velho passou, e um mundo novo nasceu. Tudo isso vem de Deus que nos reconciliou consigo por Cristo…” (2Cor 5,17-18). Criatura nova, ou reconciliação, mais que um estado de satisfação, significa missão, convocação, desafio, luta em busca do outro que vem do alto, do espírito.

Certamente, este itinerário de reconciliação que busca o novo, o outro, obriga a Igreja a sair de sua zona de conforto e de suas reservas espirituais. Só assim poderá misturar-se com as pessoas do mundo e com o próprio mundo o que será sempre um processo de alto risco. Mas, deve ela recordar-se que não pode jamais querer ser mais que “Cristo que, embora nunca tenha cometido nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós”. Só assim seremos seus embaixadores, ou melhor embaixadores de sua justiça: a reconciliação. É preciso, pois que, a exemplo do Mestre, nos tornemos pecado sem sermos pecadores, correr o risco de perdermos o puritanismo a fim de conquistar, paradoxalmente, a única pureza cristã: pôr-se sempre de novo em caminho, em saída do velho homem em busca do homem novo, do outro, até atingirmos o inteiramente novo por excelência: Jesus Cristo, o novo Adão. Por isso, nos exorta nosso Papa Francisco. “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma igreja enferma pelo fechamento, pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).

  1. São Francisco e suas Quaresmas

A mística da “Quaresma” está ligada ao número quarenta, mais precisamente aos quarenta anos vividos pelo Povo de Israel no deserto quando, guiado e animado por Deus, fez a travessia do deserto a caminho da Terra prometida, libertando-se da escravidão egípcia para assim poder unir-se numa santa aliança ao seu único senhor e Deus; está ligada aos quarenta dias de jejum, passados por Jesus no deserto até ser tentado pelo Adversário e vencê-lo por permanecer voltado e unido inteira, absoluta e radicalmente à vontade amorosa ao Pai. Assim, o espírito daquele jejum – viver voltado para o Pai e sua vontade, dando as costas – ao contrário de Adão –  à própria vontade bem como aos ídolos deste mundo –  tornou-se o alimento de toda a sua vida, até a morte e morte de Cruz, o alimento de todo seu seguidor.

  Quaresma passa a ser, portanto, um espírito, uma mística que deve envolver a vida toda e toda a vida e não apenas um tempo de quarenta dias. Quem descobriu e se encantou por este espírito e este caminho foi São Francisco. Por isso, ele mesmo se denominava um penitente, como ele mesmo testemunha em seu Testamento (Cf. Test 1) e sua Ordem uma Ordem de penitentes. Por isso, para manter sempre acesa a chama desta mística, além da Quaresma eclesiástica, costumava ao longo do ano exercitar-se em mais outras quatro: a Quaresma do Advento, da Epifania, de São Miguel e da Festa dos Apóstolos Pedro e Paulo até a Assunção. São Francisco é, pois, antes e acima de tudo, antes de um ecologista ou pacifista, antes até mesmo de um grande místico e benfeitor dos pobres, um convertido, um homem voltado, virado, orientado para Jesus Cristo e seu Evangelho.

 É por isso, que o Papa Francisco, desejoso de encontrar e apresentar “um modelo belo e motivador, […] um exemplo por excelência” (LS 10) para a reconstrução da Igreja, da humanidade e da criação, não encontrou outro melhor senão São Francisco.

 Conclusão

Não há graça e doçura maior do que um filho poder estar e viver voltado ou voltando para sua casa, para o encontro, o convívio com seu pai, para a intimidade de seu lar. O inverso também vale. Não há desventura e amargura maior do que um filho ter que viver de costas, expulso, exilado de seu lar, de sua casa paterna.

Por isso, o ardoroso convite de nosso Papa: que retomemos hoje mesmo nosso caminho de volta para Jesus Cristo ou, pelo menos, que tomemos a decisão de procurá-lo dia a dia sem cessar. Que sempre, principalmente nesta Quaresma, seja “o momento para dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores» (EG 3).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini