Natividade do Senhor 2018 – Missa do Dia

Natividade do Senhor – Missa do Dia

                 2018                             

Pistas homilético-franciscanas

Liturgia da Palavra: Is 52,7-10; Sl 97 (98) (R/.3cd); Hb 1,1-6; Jo 1,1-18

TemaMensagem: A Palavra que era Deus veio morar entre nós para que nós pudéssemos nos tornar filhos de Deus

Sentimento: alegria e gratidão

Rito: Beijo do Menino Jesus

Introdução:

O Natal, assim como a Páscoa, é celebrado tanto na noite quanto no dia com leituras e textos diferentes ou próprios para cada missa. O júbilo é tão superabundante, que a Igreja quer exultar e jubilar em Deus tanto no recolhimento e no segredo da noite quanto na expansão e na comunicação do dia.

  1. Os mensageiros da paz e do reino de Deus

Todos vivemos ansiosos por notícias. Por isso, sempre na história da humanidade tiveram grande destaque os anunciadores e mensageiros principalmente os pregoeiros de boas notícias: os evangelizadores. Com muitos séculos de antecedência, Isaias, em sua visão profética, exaltava: “Como são belos os pés de quem anuncia e prega a paz, de quem anuncia o bem e prega  a salvação, e diz a Sião: “Reina teu Deus”.

O momento desta bela notícia é histórico: o retorno dos exilados, as caravanas dos judeus, o pequeno resto de Israel,  fiel a Jahvé que retorna à sua pátria depois de haver expiado os pecados de todo o povo; tempo de passar da desgraça da servidão do exílio para o júbilo da libertação, na terra sagrada de Jahvé. Para esta libertação o profeta havia implorado ardentemente: “Desperta, desperta, reveste-te de força, braço do Senhor” (Is 51,9ss.). Foi diante desta súplica que o Senhor demonstrou que só Ele é Deus, que sua sabedoria é infinita e que faz o que Ele quer: “desnudou seu santo braço”, demonstrando sua maior prova de amor para com seu povo, tirando-o do exílio “diante dos olhos de todas as nações”.

Tudo o que foi predito pelo profeta se cumprirá de modo ainda mais pleno a partir da Igreja primitiva, tomada por mensageiros, profetas, evangelistas que anunciam não mais uma ventura futura ou próxima, mas a presença atual e atuante do Reino de Deus. São os pioneiros da Boa Nova da salvação que vem de Deus e que começa a soar para “todos os confins da terra”. Pioneiros de outrora que precisam ser encarnados em nós, hoje.

  1. Em seu Filho Jesus Deus disse-nos tudo de uma só vez

Para a segunda leitura da missa do dia do Natal a igreja escolheu os primeiros versos da Carta aos Hebreus que, na verdade não é propriamente uma carta mas um tratado acerca da natureza e da missão de Jesus, o Filho de Deus. Por isso, em vez de uma saudação ela começa com a apresentação do drama da história da salvação, ou melhor, o drama da revelação de Deus na história humana: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio de seu Filho, a quem Ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual ele também criou o universo”. 

A manifestação de Deus, no decorrer dos séculos, não só é lenta e progressiva, mas também parcial e, acima de tudo, indireta, isto é, através de intermediários:  pequenos ou grandes acontecimentos, sonhos, visões, pessoas especialmente escolhidas para isso como os patriarcas e os profetas, etc. Tudo isso, se constitui numa grande riqueza, mas não passa de uma revelação parcial e fragmentária que só alcança sua plenitude e consumação com Jesus Cristo.

Com o mistério da encarnação, a fala ou a Palavra de Deus não se expressa mais num discurso ou qualquer outro meio, mas tornou-se um homem, “nascido de mulher” (Gl 4,4). Jesus Cristo é a Palavra definitiva de Deus, confiada à humanidade. No evento da encarnação, Deus nos dá sua Palavra definitiva. Nos diz o seu Sim gracioso – diz a nós, que, antes, havíamos dito o nosso rude, grosseiro, “não”. Ao nos dar o seu Filho, nos dá a sua Palavra, que é o seu Sim jovial. E Deus não tem outra Palavra a nos dar. É só essa. E é uma Palavra definitiva. “Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única e já nada mais tem para dizer. Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho” (Verbum Domini, 14).

  1. O verbo se fez carne e habitou entre nós

Como, porém, esta revelação definitiva de Deus aconteceu? A resposta é dada pelo Prólogo do evangelho de São João, escolhido para esta Missa do Dia do Natal.

João começa evocando o mistério da encarnação do Verbo, o Filho Unigênito de Deus, isto é, a assunção por Ele de nossa humanidade, e o brilho e esplendor que ele nos mostrou na fraqueza de nossa carne: “E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14). É o Evangelho escolhido para a missa do dia do Natal.

  • O tríplice nascimento

Na apresentação que o evangelista faz da Palavra aparecem três fases ou melhor, um tríplice nascimento do Filho de Deus: o seu nascimento eterno no princípio (Jo 1, 1: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”); o seu nascimento histórico ao assumir a nossa humanidade em sua fraqueza (Jo 1, 14: “E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós”); e o seu nascimento em nós, pois, à medida que Ele se torna para nós um “filho que nos foi dado” (Is 9,5), nós nos tornamos para Deus filhos seus muito amados (Jo 1,12: ”Mas àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. Fixemos, pois, nosso olhar neste tríplice nascimento, e no esplendor de sua revelação, para contemplarmos o mistério que celebramos hoje.

  • O nascimento eterno

Antes de mais nada, João quer convidar-nos a um grande ato de contemplação acerca do nascimento eterno do Filho de Deus em Deus. Por isso, seu prólogo tem a forma de um hino. Os Padres da Igreja comparavam os quatro evangelistas aos quatro animais que o profeta Ezequiel (1, 5-12) e o livro do Apocalipse (4, 6-8) apresentam junto ao trono de Deus: o leão, o touro, o homem e a águia. Neste tetramorfo, João Evangelista é comparado à águia. Assim, Agostinho diz que São João “supera os outros evangelistas na profundidade dos mistérios divinos” e que pode ser comparado à águia, “que voa mais alto do que os outros pássaros e contempla os raios do sol sem ser ofuscada por eles”. A águia põe o ninho nos cumes, entre as rochas, e se entoca numa agulha de rocha inacessível (Jó 39, 27-28). Mas, de onde lhe vem toda esta virtude? De onde ele haure a sua sabedoria? Resposta: ele bebeu da fonte do peito do Senhor (Jo 13, 23). Por isso é que ele nos comunica algo da divindade de Cristo e do arcano da Trindade. E o que ele nos diz? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, Ele estava com Deus. Tudo se fez por meio d’Ele, e sem Ele nada foi feito. N’Ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas, e as trevas não a receberam” (Jo 1, 1-5).

Estas palavras estão entre as coisas mais grandiosas e sublimes que foram ditas de Deus. Agostinho dizia que se o evangelista São João falasse mais alto nenhum dos mortais o compreenderia. No entanto, Frei Egídio de Assis, num diálogo com dois frades dominicanos, exímios teólogos, ousou afirmar que São João “nada diz de Deus”. Isso escandalizou os frades. Quando estes iam embora, frei Egídio, homem de grande contemplação, fê-los chamar e mostrou-lhes um monte. E propôs-lhes uma parábola: “Se houvesse um monte de sementes de milho tão grande como este, e mais embaixo, ao pé do monte, houvesse um passarinho a comer dele: quanto diminuiria num dia ou num mês ou num ano, ou quanto comeria este passarinho em cem anos? ”Os freis dominicanos responderam: “Quase nada diminuiria, mesmo em mil anos”. Então frei Egídio lhes disse: “Tão imenso e tão grande é o monte da sempiterna divindade que o bem-aventurado João, que foi como um passarinho, nada diz a respeito da grandeza de Deus”. Assim foi que São João Evangelista, de águia, se transformou em passarinho, no pensamento de Frei Egídio. Ele disse isto, não para diminuir o santo evangelista, mas para mostrar a grandeza do mistério ao qual o evangelista se refere, como que balbuciando. Não custa, neste sentido, lembrar o que diz o próprio frei Egídio, sobre a grandeza do mistério de Deus: “Todos os sábios e santos que existiram, existem e existirão, que falaram ou falarão de Deus, não disseram e nunca dirão – em comparação com o que Ele é – mais do que a picada de uma agulha, em comparação com o céu e com a terra e com todas as criaturas neles existentes e, mil vezes menos. Em verdade, toda a Sagrada Escritura nos fala como que balbuciando. Como a mãe balbucia com seu filho pequenino, porque de outro modo, ele não pode compreender as palavras” (Fontes Franciscanas, p. 1114).

Tendo em mente a grandeza desse mistério, tentemos, pois, vislumbrar um pouquinho do que as primeiras palavras do prólogo do Evangelho de São João dizem. “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1). O Filho de Deus é chamado aqui de “Lógos”. A tradução latina diz: “verbum”. “Verbo” é palavra que tem uma força operativa, isto é, que é capaz de pôr em obra alguma coisa, diz Agostinho. O Filho de Deus nasce do Pai como a Palavra nasce daquele que a concebe. Nascer é vir à luz. O Filho é luz e imagem, isto é, expressão, do Pai: o “esplendor da sua glória e imagem da sua substância” (Hb 1, 3). O Filho, embora sendo outro, não é outra coisa do que o Pai. Isto quer dizer: ele é o mesmo, segundo a natureza, e é outro, segundo a pessoa. É chamado de “Palavra” ou “Verbo” porque diz, anuncia e enuncia, Aquele de quem procede, o Pai. É chamado de “Filho” porque, embora sendo outro enquanto pessoa, é da mesma natureza de quem procede, isto é, do “Pai”. O Pai é princípio sem princípio. O Filho está desde sempre neste Princípio, que é o Pai, e desde sempre dele procede, isto é, é gerado, nasce. N’Ele, o Pai se pronuncia a si mesmo de modo completo e perfeito. O Pai é como uma fonte oculta do ser. É doação de ser. O Filho é como o manancial que jorra desta fonte. É recepção do ser. Eternamente, num processo sem mutação, num devir sem tempo, o Filho nasce do Pai. Este Filho é, pois, o mesmo que o Pai (enquanto é Deus).

O concílio de Éfeso diz que Ele é do mesmo ser, da mesma substância, que o Pai (“consubstancial ao Pai”). É o mesmo, sendo outro, sendo diferente (enquanto é outra pessoa, que está junto de Deus). E é igual. Pois o que tem a mesma natureza é igual àquele de quem procede. É co-eterno com o Pai, assim como, para falar por meio de uma analogia, a luz é simultânea com o fogo de que ela emana. Assim temos um vislumbre do nascimento eterno do Filho de Deus. É o primeiro aspecto do “tríplice” Natal do Filho de Deus.

  • O nascimento no tempo

Dissemos que o Filho é chamado de “Verbo” por ser uma palavra que tem uma força operativa, isto é, um vigor que põe em obra a vontade, o bem querer do Pai: tudo que existe. Todas as coisas: o visível e o invisível. N’Ele tudo foi criado, isto é, passou do não ser para o ser. N’Ele, tudo o que existe se conserva no ser. Ele abraça tudo, conserva tudo, do mais elevado, um anjo, ao mais baixo, um vermezinho. Ele é a Sabedoria, a Arte, com a qual Deus criou todas as coisas.

Esta Sabedoria criadora é a luz dos homens (Jo 1, 4). Ser homem significa participar desta luz, deixar-se banhar na sua claridade. O Verbo é a luz verdadeira (Jo 1, 9), isto é, a luz que ilumina fontalmente. O homem é também luz à medida que recebe a iluminação desta luz verdadeira, fontal, que é o Verbo, a Sabedoria de Deus. A vocação do homem é ser a recepção desta luz do Verbo. Ao receber o Verbo, o filho de Deus, o homem, de criatura que era, se torna Filho com o Filho; mais, se torna filho no Filho, filho como o Filho.

O Natal mostra que a obra suma do Verbo, porém, à qual toda a criação está ordenada, é a sua própria encarnação e, por conseguinte, a nossa geração como filhos no Filho. O sumo, pois, de toda a história da salvação, de toda a obra de Deus no tempo é indicado com as palavras: “E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). O homem só pode nascer de Deus se Deus nasce dos homens.

O Filho de Deus se fez filho do Homem e os filhos dos homens, por isso, puderam se tornar filhos de Deus. Assim como nossa palavra se faz voz, do mesmo modo também a Palavra do Pai se faz carne, isto é, toma uma forma pela qual ele pode se dar a conhecer aos homens. O Verbo invisível toma a forma visível de nossa humanidade. “Fez-se carne”: estas palavras indicam a união pessoal perfeita do Filho de Deus com a nossa natureza humana toda, inteira, em corpo e alma. Este evento central e, ao mesmo tempo, final, isto é, definitivo, derradeiro, da história – a encarnação do Verbo – mostra o amor terno, visceral, humilde de Deus por nós, os humanos. São Francisco viu este amor na figura da “Senhora Pobreza”. Mestre Eckhart captou algo da ternura deste amor entranhado, que ele chama de “Minne[1], e fez uma alusão a ela numa parábola.

“O bem, o maior de todos os bens, do qual Deus deixou o homem participar, foi o de ter se tornado homem. Assim quero contar-vos uma estória, que casa bem com o caso. Era uma vez um homem rico e uma mulher rica. A mulher sofreu um acidente e perdeu um olho. Aproximando-se dela, o marido disse: “Mulher, porque está tão aflita? Não te aflijas tanto por ter perdido um olho”. Ela falou: “Marido, o que me aflige não é ter perdido um olho. O que mais me perturba é pensar que por isso haverás de me amar menos”. Então, ele disse assim: “Mulher, eu te amo”. Logo depois, ele furou o próprio olho e aproximando-se da mulher disse: “Para que creias que te amo, fiz-me igual a ti; também eu tenho ainda só um olho”. Assim é o homem: Como o homem mal podia acreditar que Deus o amasse tanto, Deus “furou um olho seu” e assumiu a natureza humana. Isso significa: “tornou-se carne” (Jo 1, 14) (Sermão 22).

A encarnação é, assim, a obra suma do amor misericordioso, isto é, terno, visceral, entranhado, de Deus por nós, humanos, na nossa fraqueza, na nossa finitude. São Francisco se enterneceu e se apaixonou por este Deus humanado. E quis segui-lo e tornar-se como Ele, no amor, na pobreza, na humildade, na simplicidade. São Boaventura, no “Itinerário da mente para Deus” se admira com este mistério da humanidade do nosso Deus. Ele diz, admirado: “O eterno se uniu com o homem temporal, nascido duma Virgem, na plenitude dos tempos. O Ser simplicíssimo se uniu com o ser essencialmente composto. O ser soberanamente em ato se uniu com aquele que extremamente sofreu e morreu. O ser perfeitíssimo e imenso se uniu com o insignificante. O ser sumamente uno e soberanamente tudo se uniu com uma natureza individual, composta e distinta das outras, isto é, com o homem Jesus Cristo” (VI, 6).

A Encarnação é obra no tempo que surge da eternidade, isto é, da liberdade e do amor da Trindade. Neste evento central da história da criação e da humanidade, o Filho dileto de Deus, o “Logos”, assume a natureza humana. Este evento, portanto, é mais que individual. É uma singularidade universal. Quando a Pessoa do Filho, o Verbo, faz própria a natureza humana, uma natureza criada, todos os homens e todas as coisas do universo são incluídos na catolicidade (universalidade) da sua graça e verdade.  Tudo se torna um no evento da união hipostática: céu e terra, mortais e imortais, homens e Deus. Com outras palavras:

Para o espírito franciscano de todos os tempos não há separação entre céu e terra, desde quando a união pessoal chamada pela teologia de União Hipostática, fez aparecer no Cristo da Fé, Criador e criatura. Na vida de São Francisco a Encarnação do Verbo de Deus não é somente individual. É maiúscula universal. Uma verdadeira singularidade. Esta singularidade de vida humana e divina levou a teologia franciscana do final do século XIII a ver na Encarnação do Verbo o summum opus, a maior obra da Criação[2].

  • O Natal em nossa mente

O terceiro Natal do Filho de Deus é na nossa mente. Assim como Maria, cada alma, “naturalmente cristã” (Tertuliano), é chamada a gerar o Cristo em si mesma. Como Maria, a alma (o humano) que gera o Cristo em si mesma, há de ser virgem. “Virgem” quer dizer “solteira”, isto é, “solta”, “livre”. Livre para que? Para servir. Isto quer dizer: a alma que gera Cristo tem de ser “serva do Senhor”, na disponibilidade que diz: “eis-me aqui! ”, “presente! ”, “faça-se em mim segundo a tua palavra”. É desta disponibilidade virginal que vem a fecundidade para deixar Deus atuar em nós e fazer de nós “mães” do Senhor Jesus Cristo. São Francisco, na “Carta aos Fieis” (I) diz que aqueles que passam pela “penitência”, isto é, pela revolução da mente, que faz o homem voltar-se para Deus, se tornam “mães de Nosso Senhor Jesus Cristo”. E explica: “Somos mães, quando O levamos no coração e em nosso corpo, por amor divino e de consciência pura e sincera: O damos à luz pela santa operação que deve brilhar, em exemplo para os outros” (Fontes Franciscanas, p. 110).

Para Mestre Eckhart, a fecundidade-maternidade divina da alma (do humano do homem) tem a ver com a gratidão. Uma fecundidade é aquela pela qual Deus gera o seu Filho na alma do homem. Outra fecundidade, ainda maior, é aquela pela qual a alma gera o Filho de volta em Deus. Este é o “frutificar da dádiva”:

Agora prestai atenção e observai com precisão! Se o homem permanecesse para sempre moça-virgem, dele não viria nenhum fruto. Para tornar-se fecundo, é necessário que seja mulher. “Mulher” é o nome, o mais nobre que se pode atribuir à alma, e é muito mais nobre do que “moça-virgem”. Que o homem conceba Deus em si é bom, e nessa concepção é ele moça-virgem. Mas que Deus se torne nele fecundo, isso é bem melhor. Pois frutificar a dádiva é a única gratidão para com a dádiva. E ali, o espírito é mulher, na gratidão que gera novamente, lá onde o espírito gera novamente a Jesus para dentro do coração paterno de Deus[3].

Ao gerar Deus em si mesmo, o homem é também gerado em Deus. Torna-se filho no Filho de Deus, com o Filho de Deus, como o Filho de Deus. João, cujo nome significa “filho da graça”, diz que “àqueles que O receberam (a Jesus) e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 12). Na sua Primeira Carta, também, ele dirá: “Vede que grande amor nos outorgou o Pai, que sejamos chamados filhos de Deus; e nós o somos! ” (3, 1). A Segunda Carta de Pedro (1,4) nos convida à gratidão pelo maior de todos os dons que nos foram concedidos, com o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo: “que nos tornássemos comungantes da natureza divina”. A esta graça os cristãos gregos chamaram de “theiosis” e os latinos de “deificatio”: deificação.  Mestre Eckhart recorda que esta graça é fruto da encarnação. Ele diz: “a imagem do Pai, que é o Filho eterno, tornou-se a imagem da natureza humana. Pois é tão verdadeiro Deus ter-se feito homem, como também o é o homem ter-se tornado Deus”. Ao nascimento de Deus na alma segue o nascimento da alma em Deus. Ora, a alma do homem é, de certo modo, um “microcosmo”, um “minor mundus”. Nele, de certa maneira, se reúnem e convergem todos os modos de ser de todos os entes do universo. Esta afiliação do homem em Deus, portanto, leva à afiliação de todo o universo. É o que nos recorda frei Hermógenes Harada: “O ponto de contato da alma com Deus é o Filho, no qual, pelo qual e através do qual o homem é filho no Filho. E no homem, pelo homem e através do homem todos os entes criados e criáveis, portanto o universo inteiro, atual e possível, se tornam também ‘filhos’ de Deus” (Glossário dos Sermões Alemães de Eckhart, p. 350). Assim, a encarnação cria o vínculo fraterno entre todas as criaturas, o qual foi celebrado por São Francisco no “Cântico das Criaturas”.

Conclusão

“E a Palavra se fez carne e veio morar no meio de nós” não é apenas a culminância de todo o prólogo, mas também a culminância e a consumação de toda a história da humanidade: seu princípio e seu fim. A partir de então os homens, sua caminhada e a criação toda não são mais os mesmos, como também Deus não é mais o mesmo. Os primeiros foram divinizados, tornando-se “deuses” e Deus torna-se um de nós: um Deus “humanado”.

Tão grande e gloriosa transformação – nova criação, novo céu e nova terra; tão admirável e santa comunhão, tão sublime casamento levou São Francisco a compor e proclamar este Salmo:  “Este é o dia que o Senhor fez / exultemos e nele nos alegremos. Porque o santíssimo Pai do Céu nosso Rei antes dos séculos / enviou do alto o seu dileto Filho / e nasceu da bem-aventurada virgem santa Maria” (…). “Porque nos foi dado um menino santíssimo e dileto / e nasceu a caminho por nós e posto no presépio / porque não havia lugar na estalagem (Ofício da Paixão, Sl. XV).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

 

[1] Originariamente, Minne designava a ternura e o vigor do amor misericordioso, que se desdobra em diligente cuidado e antecipação solícita, em bem-querer atencioso, que se empenha por poupar e proteger, defender e salvar. Minne, depois, passou a designar a intimidade do amor de enamoramento no encontro entre um homem e uma mulher e na doação mútua e inteira, a modo do amor esponsal. A partir do século XII e XIII passou a nomear o protótipo do amor-dedicação de um cavaleiro para com uma dama, o motivo de suas lutas, de suas façanhas e de suas gestas.

[2] Leão, Emmanuel Carneiro. In: Scintilla (Revista de Filosofia e Mística Medieval), vol. 9, n. 1, janeiro-junho de 2012, p. 15-16.

[3] Idem, ibidem.