32º Domingo do TC – Ano B – 2018

32º Domingo do TC – Ano B – 2018
11/11/2018
Pistas homilético-franciscanas

Leituras: 1Rs 17,10-16; Sl 145 (146), 7.8-9a.9bc-10 (R/.1); Hb 9,24-28; Mc 12,41-44

Tema-mensagem: Àquele que se doa a nós, todo e inteiramente, também nós devemos nos doar total e inteiramente

Sentimento: doação e fé

Introdução
Em cada celebração eucarística, principalmente na dominical, celebramos, de modo especial, o grande, o maior de todos os mandamentos: amar o Senhor nosso Deus acima de toda as coisas. Hoje, através do testemunho de duas pobres viúvas a palavra de Deus nos mostra como deve ser vivido e concretizado este mandamento.

1. A fé que transforma o pouco no muito
Quem nos introduz no modo como devemos viver o mistério deste mandamento é um trecho tirado do primeiro livro dos Reis e que poderia ter como título: a fé que transforma o pouco no muito.

1.1. Um profeta no meio de estrangeiros
A cena se abre com Elias, o grande profeta, campeão na defesa de uma fé pura acerca da primazia e supremacia de Jahvé – o único Deus – contra a idolatria e suas consequências. O profeta de Israel é hoje enviado a estrangeiros: “Levanta-te e vai a Sarepta dos sidônios e fica morando lá. Eu pedirei a uma viúva de lá que te sustentasse” (1Rs 17,9).
Naquele tempo a condição da viúva, assim como a do órfão, era de desprezada, de vilipendiada e uma viúva estrangeira duplamente menosprezada aos olhos do povo de Israel. Primeiramente, porque, não tendo varão, nada valia, pois não tinha quem a sustentasse ou apoiasse. Em segundo lugar, por ser estrangeira, era excluída do “povo eleito”. Mas, é justamente a esta mulher vil, desprezada e marginalizada, que o Senhor envia o seu profeta.
O tempo é de grande seca com escassez de água, trigo, farinha, pão e azeite. A falta de alimento era uma decorrência da falta de chuva. O povo de Israel havia se voltado para o culto do falso Senhor da fertilidade (Baal), divindade de origem cananeia, traindo, assim, a fidelidade esponsal com o seu Senhor, Javé.
Elias, que se comportara, até então, como o zeloso defensor do vínculo esponsal de Israel como o seu Deus e Senhor único, mostra que Javé é verdadeiramente o Senhor das chuvas e, assim, da fertilidade, aquele que, enfim, sacia os famintos. Por isso, à aflição da viúva sidônia (fenícia), descendente de Canaã e de Cã, e, como tal, desprezada aos olhos de Israel, diante da falta de pão e de azeite, o profeta replica: “Não te preocupes… porque assim fala o Senhor, Deus de Israel: ‘a vasilha de farinha não acabará e a jarra de azeite não diminuirá, até o dia em que o Senhor enviar a chuva sobre a face da terra”.

1.2. O milagre da fé
O relato presta-se para muitos significados. Primeiramente deve-se destacar a fé na palavra de Deus, tanto de Elias como da viúva. Apesar de todos os sinais adversos Elias mantem sua fé na palavra do Senhor. Mas, também e por sua vez, a decisão desta mulher, que estava a um passo da morte, se reveste de fé no Senhor obedecendo confiada e inteiramente na palavra de Elias.
Nessa viúva estrangeira, desprezada, o profeta encontra a fé que não encontrava em Israel – um sinal de que a fé não é, por princípio, um fenômeno particular, restrito a determinados indivíduos, comunidades e povos. A fé é um vigor gratuito que verte do ou no coração de todo homem em toda a humanidade. Do abismo das possibilidades da vida, ela pode emergir sempre de novo e em todo o lugar, ali onde se acende a centelha da “boa-vontade” (vontade boa, per-feita, bem-querência).
O profeta de Israel, ironicamente, encontra esta centelha da fé acesa nesta viúva estrangeira, pagã, o que não estava encontrando em Israel, que era considerado o “povo eleito”, depositário da “verdadeira fé”.
Mais tarde, Jesus, ao ser rejeitado na sua terra, Nazaré, recorda com certa comoção a fé desta mulher:
“Em verdade vos digo: muitas viúvas havia em Israel, no tempo de Elias, quando se fechou o céu por três anos e meio e houve grande fome por toda a terra; mas a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia. Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã”.
A fé daquela viúva de Sarepta consistiu na boa-vontade de confiar no Deus do profeta, que era o Deus de Israel, Javé, e de compartilhar com ele o último alimento que ela e seu filhinho tinham para comer. Depois disto só restava uma coisa: esperar a morte. Neste gesto de doação, aparentemente pequeno, revelou-se a grandeza da fé naquela mulher desprezada. A virtude (força) da fé é o vigor fundamental da existência humana como tal e como um todo. É a centelha da fé, da doação de Deus palpitando no coração de sua criatura predileta: o homem.
A grandeza da doação, que se mostra tanto na recepção, no acolhimento do profeta e da Palavra do seu Deus, quanto na doação do alimento compartilhado por parte da viúva, não se mede a partir de quantidade, mas da qualidade e intensidade da boa vontade. É esta força que põe o homem, seja qual seja o povo a que pertença, em contato com a fonte da vida – que é inesgotável. A fé, ali onde experimenta a aparente ausência de Deus, não retrocede, nem busca subterfúgios em seguranças humanas. Antes, avança, confiante, com toda a positividade na doação da recepção e na doação da doação. A substância e a qualidade da fé não se medem de fora. A sua medida é a medida do coração (do âmago do ser do homem), onde a fé vige como uma centelha divina, um milagre.

2. Cristo o sacerdote-vítima
Como nos domingos anteriores, também neste, a segunda leitura é tirada da Carta aos Hebreus. A carta procura mostrar que por suas duas naturezas, divina e humana, Jesus é o único e verdadeiro sumo sacerdote realmente eficaz e diante do qual o sacerdócio judaico era apenas uma figura, uma sombra.
O trecho lido hoje começa fazendo menção ao rito do grande dia da expiação que se repetia todos os anos. O sumo sacerdote entrava no santo dos santos para aspergir com o sangue das vítimas a cobertura da arca e expiar assim os pecados do povo (Cf. Lv 16).
Cristo, porém, com sua morte e ressurreição “não entrou num santuário feito por mão humana, imagem do verdadeiro, mas no próprio céu, a fim de comparecer agora, na presença de Deus, em nosso favor”. O centro desta perícope está, portanto, na oferta que, uma vez por todas, Jesus faz de si mesmo ao Pai, até a morte e morte de Cruz em favor dos homens. Ela nos põe, assim, em contato com a fé de Cristo: a positividade, a cordialidade, a gratuidade da sua doação, que se consumou, isto é, chegou ao sumo, através de sua morte, que se impregnou do caráter de oferenda de si.
Assim, o que salva, agora, não é mais o sangue de bodes e carneiros aspergido sobre a arca da antiga aliança e sim, o sangue Daquele que foi constituído por Deus como seu único e verdadeiro sacerdote (sacer + dos: dom + sagrado): seu Filho muito amado. Ele é, assim, sacerdote e oferenda, ofertante e vítima ao mesmo tempo, numa unidade. Nele, sacerdócio e sacrifício se fundem no grande desejo de fazer a vontade do Pai até a morte e morte de Cruz. Jesus Cristo torna-se assim a realização da primeira, da última e da única vontade, desejo ou paixão de Deus: “destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo…”. A destruição do pecado, por sua vez, é a destruição do que destrói; é a aniquilação do que aniquila a vida humana em seu vigor fontal. Se do desamor, da desobediência e do egoísmo, brota esta força negativa, privativa, destrutiva e aniquiladora na vida do homem, é, ao contrário, pelo amor, pela obediência e pela doação generosa de si mesmo que brota o vigor da salvação para o homem. Em Cristo este vigor da salvação irrompeu para toda a humanidade, universalmente, quando, pela sua oferenda na Cruz, exclama, dando o último suspiro: “Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
Cristo, fazendo a vontade do Pai, até a morte e morte de Cruz e retornando para junto Dele, leva consigo toda a humanidade. Assim nossos pecados não são mais vistos pelo Pai porque estão todos escondidos em Cristo, seu Filho muito amado, no qual pôs toda a sua benevolência, o único sacerdote, a única vítima sem mancha. Foi assim que Cristo cumpriu o primeiro e maior de todos os mandamentos: amar a Deus com toda a mente, com todo o coração, com toda a alma, na superabundância da doação de si.

3. Dos “fiéis” das honras e prestígios pessoais e dos fiéis da doação total de si.
O evangelho de hoje, tirado de Marcos, é como um díptico de dois quadros ou uma moeda de duas faces. De um lado os doutores da lei – falsos mestres – com sua conduta interesseira e egocêntrica e do outro uma pobre viúva, mestra-discípula verdadeira, que dá a Deus tudo o que tem.
Aparentemente, a fé se encontra assegurada no sistema religioso dos escribas, responsáveis pelo ensino da Torah. Ao contrário e aparentemente, numa pobre leiga, viúva, jamais se há de esperar ou ver revelada a grandeza da fé. Mas, Jesus “sentado no Templo diante do cofre das esmolas observava como a multidão depositava suas moedas no cofre”. Por esta sua atitude Ele vê o que os outros não veem e por isso vai ajudar os seus discípulos a também olhar além das aparências para distinguir nos gestos de doação os sinais da positividade da fé, da cordialidade e os sinais da mesquinhez interesseira.

3.1. Dos pseudo-fiéis que amam mais a si do que a Deus
A primeira parte inicia com uma advertência muito estranha: “tomai cuidado com os doutores da lei…”. Não deveria ser o contrário: confiar despreocupadamente uma vez que eles são os guardiães da doutrina, da lei, da religião, dos nossos costumes!?
Na verdade, como pano de fundo deste evangelho está o ensinamento acerca do grande, do maior e do primeiro de todos os mandamentos: “amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento” (Mt 22,37), eco, por sua vez, do apelo solene feito outrora no deserto: “Escuta, ó Israel, o senhor nosso Deus é o único” (Dt 6,,4-5). Ou seja, nesta primeira parte temos a conduta – a mais desprezível que se possa imaginar de um religioso – pois estes doutores da lei, fazem justamente o contrário: amam a si mesmos acima de todas as coisas: “gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas…”. E o pior de tudo: “devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações”.
Santo Agostinho, certa vez, viu que o homem está diante de duas possibilidades extremas: amar a si até ao desprezo do outro e de Deus; e amar a Deus e ao outro até o desprezo de si. Cada ser humano, dizia ele, bem como cada povo, se definia diante de Deus pelo amor que escolhesse. Os dois amores dão a identidade dos homens diante de Deus. A fé se define não pela correção e sutileza da doutrina. A fé se define, antes, pela cordialidade e positividade e gratuidade e magnanimidade do amor, da doação.
Estes pseudo-guardiões da Palavra de Deus, não amam e não conseguem mais amar a Deus porque, a exemplo de Adão, fizeram de si mesmos um ídolo, um deus. A referência central de tudo o que fazem ou deixam de fazer e até da própria religião deixou de ser Deus para ser a própria pessoa deles.
Estamos, mais uma vez, diante do famigerado “mundanismo espiritual” de que fala insistentemente nosso Papa atual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor a Deus e à Igreja, mas que na verdade, busca, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem estar pessoal (Cf. EG 93); que se esconde “por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e políticas ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos ou numa atração pelas dinâmicas de autoestima e de realização autorreferencial” (idem, 95).
Cai muito bem, aqui, a recomendação de São Francisco ao noviço que a todo preço desejava ter um saltério apenas para sua própria vanglória: “Os santos fizeram obras, e nós, com recitá-las e pregá-las, queremos receber daí honra e glória”. Como se dissesse: a ciência incha, a caridade, porém, edifica (CAs 102).
Ora, não há pecado maior do que usar Deus, religião ou a pessoa que mais nos ama para proveito próprio, comercializar o amor, a pessoa amada. Daí a conclusão do ensinamento de Jesus à multidão: “Por isso, eles receberão a pior condenação”.

3.2. Da viúva e sua doação
Vem então, a segunda parte do díptico: a viúva que, ao contrário dos ricos, que depositaram grandes quantias no cofre do templo, depositou “suas moedas que não valiam quase anda”. E isto chamou a atenção de Jesus que observava “como a multidão fazia suas ofertas”.
Atendamos bem para a observação de Jesus. Enquanto todos e também nós geralmente olhamos para o conteúdo ou para o aspecto meramente exterior da esmola, da doação – grande ou pequena, rica ou pobre – Jesus olha, observa o “como” ela é feita. Como, indica para o modo, isto é, para a dinâmica que nasce do interior, da graça da afeição.
Ora, diferentemente dos ricos que davam da sua abundância, de suas sobras com ostentação e em vista de glórias e benesses a viúva deu do que lhe era necessário e ainda por cima de modo furtivo, sem nenhuma ostentação, como convém a quem ama de fato. A esmola podia ser pequena, insignificante, mas o dom é total. Enfim ela dava como Deus dá. Deus não dá como os ricos, de sua abundância, a modo de grande benfeitor; não nos dá do que tem, mas se dá Ele mesmo, em pessoa, daquilo ou naquilo que Ele é: Deus, Amor, Doação, Compaixão, Misericórdia. Por isso, em se dando todo pessoalmente a nós, em vez de dar-nos “coisas” ou dons espirituais, nos transforma Nele mesmo: tornando-nos “deuses”. Deus não se mostra como um rico benfeitor dos pobres que vem visitar uma humanidade subdesenvolvida, atrasada, decadente; é antes um irmão nosso que se faz pobre e escravo para enriquecer-nos com a presença de Si mesmo, de sua Pessoa.
Na Sagrada Escritura a figura da viúva se reveste de um significado enigmático. Geralmente, tornava-se uma pessoa abandonada, frágil, vulnerável, angustiada devido ao estado de pobreza e de penúria que devia enfrentar com a perda do marido, sustentáculo da família.
Não é difícil ver então nela uma figura da Igreja, que enquanto peregrina neste mundo suspira pelo esposo que partiu para junto do Pai. Sua oferta adquire assim o profundo significado não apenas de seu desejo de estar com Ele, mas também de sua fidelidade absoluta e total a Ele.
Por isso, Jesus faz questão de concluir seu ensinamento acentuando que ela – a exemplo de quem casa – “deu tudo aquilo que possuía para viver”. Eis a réplica ou melhor, a concretização da radicalidade do primeiro mandamento quando nos ordena a amar o Senhor Deus “de todo o coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento”. “Deu tudo” ou “amar de todo o coração…” significa um seguimento sem rachas, sem outras afeições, a partir do todo, isto é, daquilo que constitui o nosso tudo, expresso por São Francisco com seu famoso “Meu Deus e tudo”.

Conclusão

Não se segue Jesus Cristo apenas olhando, aprendendo e ensinando seu Evangelho, como o fazem os doutores da lei, mas acima de tudo observando-o, ou seja, acolhendo-o, isto é, amando jubilosamente sua Boa Nova: o Pai com sua presença humilde, oculta, cheia de bondade, misericórdia e perdão. Uma presença que não pensa em si, mas é toda voltada e doada aos outros ou em termos evangélicos, uma presença que ama suas criaturas, seus filhos queridos, “com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todo o seu entendimento”. Na verdade, na raiz deste mandamento está a identidade mais profunda e derradeira, o modo de ser do próprio Deus.
Assim, quando aquela viúva deu mais do que todos os outros porque não deu de suas sobras, mas tudo o que tinha para viver, antes de uma obra de caridade, antes de uma ajuda para as obras do templo ou da igreja, estava fazendo um profundo ato de adoração ao seu Deus vivo e verdadeiro. Por isso, ela passou para a tradição da Igreja como o paradigma de todo fiel que sem saber sabe amar de coração grande e generoso, sem reservas, sem distinguir ou separar o Senhor Deus de seus irmãos, principalmente dos pobres, doentes, necessitados e desvalidos; que em suas pastorais ou orações não é capaz de separar o Senhor das pastorais e das orações; que em suas caridades ou esmolas não vê outra coisa senão a Caridade e o grande esmoler que é Deus; que sabe muito bem que Deus não é para ser compreendido, mas amado; que, enfim, vive daquele fogo do primeiro anúncio dos Apóstolos: ”Jesus Cristo te ama, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar» (EG164). São estas viúvas, estes fiéis, estes religiosos que mantem vivo o Espírito de Jesus no meio de tantos outros espíritos espúrios que acompanham e maculam a Igreja.
Quem, entre outros, compreendeu e assumiu bem esta vocação-missão de todo fiel ou seguidor de Jesus Cristo foi São Francisco. Por isso, numa de suas Regras pediu a todos os seus Irmãos, até mesmo e também aos que não eram pregadores, que fizessem a seguinte exortação a todos os homens: “Temei e honrai, louvai e bendizei, rendei graças e adorai o Senhor Deus Onipotente na trindade e na unidade, Pai, Filho e Espírito Santo, o Criador de todas as coisas. Fazei penitência, fazei dignos frutos de penitência, pois logo morreremos. Dai e vos será dado. Perdoai e vos será perdoado” (RNB 21).
Por isso, também, exortava ainda o mesmo Santo: “Nada, pois, de vós retenhais para vós, para que vos receba a todos por inteiro Aquele que se vos dá todo inteiro” (CO 29).
Fraternalmente,


Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm