30° Domingo do tempo comum

30º Domingo do TC – Ano B – 2018

28/10/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Jr 31,7-9; Sl 125(126), 1-6 (R/.3); Hb 5,1-6; Mc 10,46-52

Tema-mensagem: A todos nós, cegos e mendigos, à beira do caminho, Jesus vem ao nosso encontro e nos liberta de nossa cegueira para que possamos segui-lo em meio à multidão de seus seguidores – a Igreja.

Sentimento: fé, honra e gratidão

Introdução

Como outrora, com Bartimeu, o cego e mendigo a beira da estrada, também hoje Jesus vem ao nosso encontro. O que ele espera de nós é que com o pouco ou o muito de fé que tenhamos, gritemos, e muitas vezes, repetidamente, sempre de novo, que tenha piedade de nós; que nos liberte das cegueiras e assim possamos segui-lo no meio da grande multidão de seus seguidores que é a Igreja.

  1. Do grande retorno do Resto de Israel

Este mistério de uma grande multidão feliz e em festa, seguindo Jesus, tem seu anúncio em inúmeros momentos e acontecimentos do Antigo Testamento. Neste domingo, ele é evocado pelo famoso retorno dos judeus do famigerado e enigmático exílio babilônico. A primeira leitura tirada do profeta Jeremias começa assim: “Isto diz o Senhor: ‘Exultai de alegria por Jacó, aclamai a primeira das nações; tocai, cantai e dizei: Salva, Senhor, teu povo, o resto de Israel’”. (Jr 31,7).

O trecho em questão é brevíssimo e, sem dúvida, não apenas a mais bela cantata

deste retorno, mas também o trecho mais clara e explicitamente evangélico de todo o Antigo Testamento.

1.1. Retornando sempre ao princípio

A narrativa tem como pano de fundo o grande êxodo da libertação do Egito, protótipo de todos os exílios e libertações. É a partir daquela misteriosa intervenção libertadora que o Resto de Israel, em meio a luzes e sombras, fará a desafiadora leitura de todos os eventos de sua história a fim de encontrar e poder servir sempre de novo e com ardor renovado o seu Senhor. Assim, como no passado, o povo conhecerá de novo e experimentará ainda mais profundamente aquele Deus que se encantou por ele e o elegeu para ser seu povo escolhido entre todos os povos da terra para, pela observância dos mandamentos divinos, ser um sinal para todas as nações da Terra.

Trata-se, pois sempre do mesmo amor manifestado na origem e na formação do Povo de Deus, porque seu amor é eterno e não conhece interrupções; um amor permanente que abraça a totalidade dos homens com o seu passado e seu futuro, embora o homem O sinta somente em determinados momentos de sua história. Mas, a iniciativa é sempre unicamente Dele.

Assim, como no passado o Senhor os tirara do Egito, levando-os em asas de águia à Terra Prometida, agora está libertando-os “do país do Norte” – terra da meia noite, da escuridão – e os reunirá “desde as extremidades da terra”. Eis a razão do convite ao grito de alegria que sai do coração de Jahvé, através da boca de Jeremias; todo um hino acerca da salvação do seu resto querido e da reunião de todos os exilados e de seu retorno triunfal à sempre antiga e nova Jerusalém.

1.2. Nenhuma exclusão

Neste retorno à nova Terra Prometida, ninguém será excluído: “cegos e aleijados, mulheres grávidas e parturientes: são uma grande multidão os que retornam”. Os que trazem deficiências e os mais frágeis, em que a vida é gestada e gerida na sua ternura e fraqueza, serão honrados.

Quando, então, tiveram que caminhar para o exílio, as lágrimas eram o pão de suas desgraças; agora, quando voltam provam o pão do júbilo, da consolação e da proteção de Jahvé. Por isso, não deverão procurar a rocha do primeiro êxodo porque “eu mesmo”, diz o Senhor “os conduzirei por torrentes de água, por um caminho reto onde não tropeçarão”.

E agora a conclusão de ouro, a razão de todo esse anúncio: “pois tornei-me um Pai para Israel e Efraim é o meu filho” (Is 31,9). Eis a razão pela qual dizíamos no início que neste trecho estamos diante da mais expressiva e clara passagem evangélica do Antigo Testamento, que tem como coração a insistente proclamação de Jesus que seu Deus é nosso Deus, seu Pai é nosso Pai e todos nós, isto é, todos os homens, seus filhos amados.

  1. Jesus Cristo e seu ofício sacerdotal

Na segunda leitura de hoje, tirada da Carta aos Hebreus, o autor procura mostrar a última razão para que os neoconvertidos do judaísmo, em meio às suas inúmeras perseguições, tribulações e torturas, permanecessem firmes em sua nova vida, agora de cristãos: o ofício sacerdotal de Jesus Cristo.

Cristo crucificado é aquele que nos aproxima de Deus Pai e que traz para nós, mortais, o seu anúncio, a boa nova do seu amor para conosco. Ele é o mediador entre Deus e nós. Por sua natureza divina, nos aproxima de Deus. Pela sua natureza humana, aproxima Deus de nós.

Quanto à primeira, não há como duvidar. Jesus é o nazareno, filho de Maria e José, que todos conheciam, aquele que embora sendo de condição divina assemelhou-se a nós em tudo, menos no pecado. Por isso, suas orações, preces e oferendas serão sempre nossas orações, preces e oferendas; sua expiação na cruz torna-se a expiação redentora do pecado de todos os homens. Por isso, tudo que é dito do sumo Sacerdote dos judeus “tirado do meio dos homens e instituído em favor dos homens, … que sabe ter misericórdia”, etc. deve se aplicar, com muito maior razão ao novo e eterno sumo Sacerdote, Jesus Cristo.

Quanto à sua natureza divina, também não há o que e como pôr alguma dúvida, pois além de todos os seus admiráveis e inauditos feitos, é o único profeta que se iguala a Deus: “Eu e o Pai somos um… quem me vê, vê o Pai”. Por isso, Ele jamais “se atribui a si mesmo a honra de ser Sumo Sacerdote, mas foi por aquele que lhe disse: ‘Tu és o meu Filho, eu hoje Te gerei’. Como se diz em outra passagem: ‘Tu és sacerdote para sempre, na ordem de Melquisedec’” (Hb 5, 5-6). Ele é, portanto, sacerdote por uma eleição divina e direta.

Esta aproximação tem em um nome e um móvel: “misericórdia” ou “compaixão”. Ele não apenas conhece nossa fraqueza e nossa ignorância, mas como Sumo Sacerdote é Aquele que faz a ponte entre nós, homens fracos, ignorantes, mortais, e o Pai. Ele nos perdoa e também nos fortalece, no ilumina, e nos reveste do vigor de sua vida, tornando-nos filhos do Pai do Céu com Ele, n’Ele, por Ele.

  1. Da cegueira da soberba para a luz do abaixamento da cruz

A graça de ser introduzido na multidão dos discípulos de Jesus e de poder andar com eles pode ser impedida ou interrompida pelas nossas cegueiras como aconteceu com Bartimeu, do qual nos fala o Evangelho de hoje.

3.1. Do cego que grita e implora por piedade

Marcos começa sua narrativa dizendo simplesmente que “Jesus saiu de Jericó junto com seus discípulos e uma grande multidão”. Como sempre, também aqui Jesus “está de saída”, pois, sendo Filho de um “Deus Adveniens” (Deus Adveniente, sempre em vinda) outra não poderia ser sua identidade mais profunda senão esta: a de estar sempre “em saída”, em viagem. Marcos diz “de onde” – Jericó – Ele está saindo, mas não dá nenhuma informação explícita nem para onde e muito menos o porquê, a razão de sua viagem.

Pelo contexto do texto, porém, sabemos que seu destino é Jerusalém. Assim, sua chegada e saída em e de Jericó ganham ares de um prenúncio: seu grande desejo, sua paixão por Jerusalém e por tudo o que por lá lhe haverá de acontecer. Por isso, Jericó torna-se como que o limiar do grande mistério de sua paixão, morte e ressurreição. Jesus será abatido, mas com a graça do “sim” do Pai a Ele, manifestado na ressurreição, irá vencer o nada, o negativo e destrutivo do pecado e da morte. Assim, Aquele que seria declarado anátema, que morreria como um maldito, no madeiro, se revelaria como a luz do mundo, a luz dos cegos que desejam ver o caminho e o pão dos mendigos que imploram a graça de poder segui-lo em meio a sua multidão.

Tomando, pois, Jesus o seu caminho para Jerusalém, para a Cruz – encontrou “o cego Bartimeu, filho de Timeu, sentado à beira do caminho, mendigando”. Eis um homem cego, prostrado à beira de um caminho, reduzido à miséria, todo cego e tomado pela necessidade da mendicância. A graça da presença de Jesus que passa, porém é maior do que a desgraça da cegueira e da mendicância de Bartimeu. Por isso, “Ao saber que era Jesus de Nazaré, pôs-se a gritar: ‘Filho de David, Jesus, tem compaixão de mim!”. Embora não vendo, o cego ouve o alarido e abre seu coração aos murmúrios da multidão que vai atrás de Jesus. E assim, com seu grito “Filho de Daví!”, antecipa a festa da entrada triunfal do Mestre em Jerusalém. Ali as multidões gritarão: “Hosana! Bendito seja em nome do Senhor aquele que vem! Bendito seja o reino que vem, o reino de David, nosso pai! Hosana no mais alto dos céus!”. Ora, “Hosana” era, originariamente, um grito de socorro: “Te rogo, Senhor, que me salves” (cfr. Sl 117). Era uma interjeição de súplica. Um “ai!” que se dirigia ao Altíssimo como um apelo por salvação, por libertação. Depois, admiravelmente, passou a significar uma aclamação que glorifica o Salvador mesmo.

O cego Bartimeu, portanto antecipa a proclamação de fé no caráter messiânico da vinda de Jesus a Jerusalém e, ao invocar a sua ajuda, o aclama também como “filho de David”, isto é, como o ungido de Deus, o Cristo; como aquele que veio como médico para abrir os olhos de todos os “Bartimeus”, cegos, desejosos de ver e encontrar o caminho que os insira na multidão dos seus eleitos.

O texto continua dizendo que “Muitos o repreendiam para que se calasse, mas ele gritava ainda mais: ‘Filho de David, tem compaixão de mim!’”. Ele identifica no Jesus de Nazaré o Filho de Davi, isto é, o ungido de Deus, o Cristo. Ao mesmo tempo que o evoca com fé, chamando-o de “filho de David”, o invoca, também, pedindo: “tem compaixão de mim!” (eléese me). Este é, também, o grito, o canto que expressa a verdade mais profunda do nosso ser humano. É por isso, que em quase todas as nossas orações, principalmente ao concluir o dia e ao iniciar a santa missa o fazemos com um Ato penitencial: “Senhor tende piedade de nós” (“Kyrie eléison”).  

3.2. Jesus chama

Vem então a segunda parte da narrativa. O grito não foi em vão. Agora a iniciativa é de Jesus: “Jesus deteve-se e disse: ‘chamai-o’. Chamam o cego, dizem-lhe: ‘Confiança, levanta-te, ele te chama’”. Agora já não é mais ele que chama por Jesus, mas é Jesus mesmo que o chama, tirando-o da situação de prostração, miséria, marginalidade, na qual ele se encontrava.

Assim, “Deitando fora o manto, ele se levantou num salto e foi ter com Jesus”. Ao deitar fora o manto, deixava para trás a cegueira da miséria de sua soberba, de seu pecado. e o salto da decisão, da conversão. Então, “Dirigindo-se a ele, Jesus lhe disse: ‘Que queres que eu faça por ti?’”. Jesus sabia o que aquele homem cego queria. Mas, era preciso perguntar, para que o homem pudesse pedir e pedindo ele pudesse se doar a si mesmo na disposição de receber. Já se tornara costume de Jesus, ao realizar uma cura, provocar naquele que dela necessitava a manifestação de seu desejo e, nisso, de sua fé. Admirável a nobreza deste gesto, pois, assim, aquele que pedia em vez de humilhado saia dignificado e engrandecido. Nada lhe era mais desejável do que a vista. Considerando a espontaneidade de seu desejo e o vigor de sua fé, Jesus responde-lhe: “vai, a tua fé te salvou!”. Ressaltando a fé daquele que tanto implorava, Jesus, mais uma vez, revela a nobreza de sua condição de grande mestre-discípulo.

3.3. Nasce o seguimento

Assim, “logo ele recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho”. Eis que aquele homem que era cego, agora, vê – e vê o que é mais importante ver: Aquele que é a Luz do Mundo (cf. Jo 8, 12) – a Luz que ilumina todo homem, que vem a este mundo (cf. Jo 1, 9). Eis que aquele homem que estava prostrado à beira do caminho, agora, movido pela gratidão, segue o Mestre, de quem recebeu a visão e a luz.

Esta luz, neste momento, ainda não brilha em sua plenitude, pois a ressurreição ainda não se dera; é apenas argêntea (prateada) como a luz da lua. Uma antiga tradição dizia que o nome “Jericó” derivava de “lua”. A lua significava, para os antigos, a mutabilidade e a passibilidade. Isso dá a pensar no mistério da encarnação e da paixão de Jesus Cristo. Somente a partir de sua ressurreição é que a sua glória solar, dourada, de Filho de Deus, se revelaria plenamente. Então, o Jesus de Nazaré não seria somente encarado como o “filho de Davi”, mas sim, também e acima de tudo, como o “filho do Deus vivo”. Bartimeu, cujo nome não é propriamente um prenome, pois, enquanto um cognome, diz apenas que é “filho de Timeu” (cuja significação é “honrável”), representa, justamente por isso, a todos os homens que estão colocados à margem do caminho, cegados em sua ignorância e prostrados em sua miséria e que são trazidos por Jesus Cristo para a condição da honra, isto é, da honradez e da liberdade dos Filhos de Deus.

Mas, também esses, como aquele, tendo ouvido a passagem de Jesus, gritam, imploram por piedade e começam a ver na luz Dele e a seguir os passos Dele no meio da grande multidão de seguidores. Em verdade, não se pode mudar de situação e perfazer o caminho com Jesus a não ser através do salto da fé. Por isso, diz Jesus: “a tua fé te salvou”.

Conclusão

Desde Adão e Eva, a sina do homem é viver cego à beira do caminho. Pela cegueira de sua autorreferencialidade – dividido, separado de sua origem – entregue à própria sorte, seu pecado é duplo: não é capaz de reconhecer-se pecador e muito menos capaz de ajoelhar-se para gritar por piedade Àquele que poderia tirá-lo da cegueira, da margem e da mendicância para recoloca-lo no caminho e pô-lo à mesa do Pão que alimenta e conforta a multidão dos seguidores de Jesus.

A alma se obscurecera e o coração se endurecera. Por isso, interrogado por Deus por que desobedecera, joga a culpa na companheira e esta, por sua vez, na serpente. Mergulhado nesse duplo pecado, não há como o homem sair de sua cegueira. Foi necessário então, mais uma vez que o próprio Criador saísse de si e entrasse em sua criatura; que “nascesse também Ele à beira do caminho, por nós e posto no presépio, porque não havia lugar para ele na hospedaria” (OP 15,7); que Jesus passasse por Jericó e o comovesse e o iluminasse pelos raios piedosos de seu coração misericordioso.

Desde então, isto é, desde sua encarnação, paixão, morte, ressurreição, todo povoado, todo acontecimento é uma nova Jericó por onde Jesus passa a fim de oferecer aos homens de boa vontade a graça de poderem gritar por piedade; é a luz do amor do Pai que lhes possibilita largar pela humildade, o manto das misérias de sua cegueira; a dar o salto de fé – conversão – na confiança do Pai, pondo-se assim, no seguimento de Jesus no meio da sua multidão – a Igreja – que sobe para Jerusalém, onde se dará, pela morte na cruz, a conclusão da libertação de toda a sua cegueira e de toda a sua mendicância.

Desde então, o milagre de novos Bartimeus não cessa de se repetir na história da Igreja. Entre esses podemos e devemos citar São Francisco. Também ele foi um Bartimeu à beira da estrada, cego pelas glórias do mundo, pela sua autorrefencialidade. Jesus, porém, começa a passar pelas estradas e povoados (“Jericós”) de sua vida como Espoleto, São Damião, Porciúncula, etc. E assim, aos poucos e sempre mais intensamente iluminado pelos raios “deste sol nascente que nos veio visitar”, também ele começa a rezar e a implorar por misericórdia (LTC 13), largar os mantos da glória do mundo e a dar saltos de libertação.

Assim, em cada nova Jericó, um novo manto é largado e um novo salto de desprendimento, de conversão é dado até o dia em que diante do pai, do povo e do Bispo de Assis, despindo-se todos os mantos da riqueza e da glória  deste mundo se joga nos braços do Bispo exclamando: “Entendam todos de uma vez por todas que a partir de hoje, não mais chamarei de meu pai Pedro Bernardone, mas o Pai Nosso que está nos Céus” (Cf. LTC 20). Assim, e enfim, todo convertido pôs-se inteiramente no seguimento de Jesus Cristo através da grande multidão que é a Igreja.

Por isso, ou seja, por causa desta sua admirável conversão evangélica, com razão o Papa Francisco o escolheu como o patrono de seu pontificado e ousa, continuamente, propô-lo como luz e modelo para a restauração de uma humanidade que jaz à beira do caminho mendigando o pão das lágrimas do suor de seu rosto.

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm