28º Domingo do TC – Ano B – 2018
14/10/2018
Pistas homilético-franciscanas
Leituras: Sb 7, 7-11; Sl 89; Hb 4, 12-13; Mc 10, 17-30
Tema-Mensagem: Grande chamado > grande resposta ou seguimento, grande desejo ou paixão > grande abnegação, doação e sacrifício
Sentimento: abnegação e alegria
Introdução
Neste Domingo a Igreja nos leva a celebrar, de um lado, a grandeza do chamado de Cristo e, de outro, a exigência da grandeza de nossa resposta.
1. A Sabedoria como a riqueza essencial
Já no Antigo Testamento, encontramos belos e admiráveis testemunhos nos quais se revela a grandeza do chamado de Deus e a magnanimidade da resposta das pessoas chamadas. Entre essas, destaca-se o grande rei Salomão do qual nos fala a primeira leitura de hoje. Salomão é grande porque se vê e se reconhece pequeno, como “homem mortal, igual a todos os outros, descendente do primeiro ser tomado da terra” (Sb 7,1). Isto estabelece um contraste com a concepção da realeza no mundo antigo oriental, que tomava o rei como um ser divino.
1.1. Invocação e elogio da sabedoria como riqueza essencial e super-excelente
Assim, movido pelo vigor da sua condição de “homem mortal”, Salomão pede o mais excelente de todos os dons – o Espírito da Sabedoria: “Por isso orei, e o discernimento (prudência) me foi dado; implorei, e o espírito da Sabedoria veio a mim” (Sb 7, 7).
Segundo Mestre Eckhart, os grandes bens da natureza ou os grandes bens que superam a natureza costumam ser objetos de desejo. O desejo visa sempre o que é o melhor, o mais excelente. Salomão, então, começa a elogiar a excelência da Sabedoria: “Eu a preferi aos cetros e tronos”. De fato, a Sabedoria é superior não apenas ao poder, ao mando, ao governo, mas também à riqueza material. Por isso, diz ele: “E junto dela, considerei como nada a riqueza; não a comparei à pedra preciosa porque todo ouro do mundo, diante dela, seria apenas areia e prata, perante ela, pareceria lama”.
A Sabedoria é também mais excelente do que a saúde e a beleza: “Amei-a mais do que à saúde e à beleza e decidi possuí-la como minha luz, pois sua claridade não conhece declínio”. Na verdade, a Sabedoria é o bem sumo, e a fonte de todos os bens e a riqueza essencial, por isso: “Junto dela vieram-me todos os bens ao mesmo tempo, pois tinha em suas mãos uma riqueza incalculável”.
1.2. Sem a Sabedoria tudo é um nada
Salomão diz ter estimado como um nada a riqueza em comparação com a Sabedoria. Mestre Eckhart, então comenta:
Deus é um bem tão grande que, em comparação com Ele e em referência a Ele, toda outra coisa, ou também todas as coisas, não valem nada, como a luz de uma estrela, mesmo se reluzente, em relação àquela do Sol, ou como dez, em relação a mil. Por isso, Jerônimo escreve a Marcela: “Somente Deus é deveras, e em comparação com Ele, nós não somos”. No quinto livro do “De consideratione” Bernardo diz: “O que é Deus? Sem Ele nada é. Tanto é nada sem Ele, quanto Ele não pode ser sem si mesmo. Ele é o ser para si mesmo, e o ser para tudo. Por isso, em certo sentido, só Ele é – Ele que é o seu ser e de todas as coisas”.
Na verdade, nem mesmo dá para comparar as coisas e Deus. De fato, tudo, sem Deus, é nada. Por isso, quem tem a Sabedoria divina tem um relacionamento desprendido, isto é, pobre e livre, com tudo. É, pois, um sinal de que o homem recebeu a Sabedoria divina, o fato de que ele estima um nada todas as coisas criadas, e com elas se relaciona no desprendimento e na serenidade.
1.3. A sabedoria, uma luz que não se apaga
Salomão diz, também que o lume da Sabedoria é inextinguível (Sb 7, 10). Isso vale tanto para a Sabedoria incriada quanto para a Sabedoria enquanto é comunicada ao homem. O primeiro sentido é claro: Deus, o Primeiro, possui o lume da Sabedoria no grau supremo. Nada que é inferior pode afetar e extinguir este lume. O lume da Sabedoria, enquanto supremo, é inextinguível. “Deus é luz, e n’Ele não há treva alguma” (1 Jo 1, 5). “Junto d’Ele não há transformação, nem sombra de mudança” (Tg 1, 17). De fato, toda mudança, enquanto devir, é uma sombra do ser. No Pai das Luzes, a luz da Sabedoria só pode ser, mesmo, inextinguível. Ele, mais do que lume (“lumen”, no latim), é luz (“lux”, no latim), isto é, mais do que claridade ou chama é fonte, é o fogo de toda a claridade.
Entretanto, admirável é que a Sabedoria, enquanto comunicada ao homem, participada por ele, seja inextinguível. O homem não é luz, fogo, mas é, sim, lume, chama, isto é, algo que vem e participa da luz, como diz o prólogo do Evangelho de João a respeito de João Batista: “ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Esta era a verdadeira luz que vindo ao mundo, ilumina todas as pessoas” (Jo Pró 7-9). Esta é, pois, a vocação do homem no plano do criado: ser aquele que dá testemunho da luz da Sabedoria. Jesus dirá mais tarde: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14).
1.4. Junto com a Sabedoria todos os bens ao mesmo tempo
No último verso do texto de hoje, Salomão diz, ainda: “Junto com ela (a Sabedoria) vieram-me todos os bens ao mesmo tempo” (Sb 7, 11). Em latim, o texto diz “pariter”, isto é, “simultaneamente”. Mestre Eckhart anota que este “pariter” pode ser entendido em três sentidos.
No primeiro, simultaneamente – opção da tradução que aqui trazemos – significa sem sucessão, ou seja, àquele a quem Deus vem recebe todos os bens de uma só vez e imediatamente. Isso porque em Deus tudo é um. Por isso, acolher Deus, o bem de todos os bens, é acolher todos os bens – “uma vez que todas as coisas são dependuradas no Um de que derivam, no Um em que são e pelo Um que constitui o seu fim”. Por isso, diz São Francisco: “quem a uma virtude possui a todas possui…” (SDV 6) Todas as virtudes são como chamas emergindo da mesma e única fornalha que costumamos chamar de Deus ou Caridade-Amor-Doação-Espírito. Por isso, o bem enquanto bem não é outro senão Deus. Daí a resposta de Jesus ao jovem rico: “Ninguém é bom, senão Deus somente” (Lc 18, 19).
Num segundo sentido “pariter” significa “igualmente”, ou seja, em Deus tudo é uno, de modo que até o não igual é igual. De fato, a caridade ama tudo igualmente. A caridade ama Deus em todas as coisas. A caridade ama o outro como a si mesmo. A caridade torna iguais os não iguais, os desiguais. Assim, a igualdade tão desejada nos tempos modernos não pode ser alcançada a não ser pela caridade, isto é, pela fraternidade. Quem ama a Deus, na mais justa e na mais pura caridade, ama todas as coisas igualmente; ama cada coisa como todas; ama todas as coisas como a si mesmo, tanto quanto ama a si mesmo. Ama todas as coisas em Deus e Deus em todas as coisas.
O terceiro sentido de “pariter” é tirado do verbo latino “pario”, parturir. Nesta interpretação o texto estaria falando de geração, isto é, que com a sabedoria estariam sendo gerados todos os bens como seus filhos e filhas. Assim, a Sabedoria seria a mãe de todas as criaturas. Em outras palavras, é pela Sabedoria que o homem se torna filho de Deus e um com Deus. Por isso, ser um com este Um, ser um neste Um, é a suprema satisfação do desejo humano. Quem tem Deus tem, pois, tudo. É o famoso dito de São Francisco: “Deus meus et omnia” (Meu Deus e tudo).
Na abertura do filme “Francesco”, Francisco, ainda criança, aparece dependurado pelas pernas no galho de uma árvore. E assim, de cabeça para baixo admirava as casas, as árvores, os animais e as pessoas de Assis com seus fundamentos, suas raízes e pernas presas e pendentes do céu. Como não cessasse de rir, Clara, também ainda criança, pergunta: “Porque você está rindo, porque está rindo?”. “Agora eu descobri o segredo”, responde Francisco: “É o céu que tem e governa a terra, o mundo”. Era a sabedoria sendo vista e descoberta pela criança.
2. O rico que busca a riqueza das riquezas
O evangelho de hoje gira em torno de um jovem rico que “veio correndo, ajoelhou-se diante de Jesus, e perguntou: ‘Bom mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?’” (O fato vem narrado também em Mt 19, 16-30; Lc 18, 18-30).
2.1. A questão das questões
Este homem, que vem ao encontro de Jesus no meio de seu caminho rumo ao Pai, põe a única pergunta séria, pela qual realmente vale a pena correr atrás e, diante dela, ajoelhar-se: a vida eterna, isto é, a vida em sua plenitude, em sua permanência, em sua perenidade, que nunca acaba. Mas, também, é admirável que enquanto outros procuram Jesus para uma cura ou libertação de suas aflições, etc. ele quer o caminho, a obra que deve fazer para obter o bem de todos os bens, a riqueza de todas as riquezas.
Apesar disso a maneira como ele põe a pergunta denota uma defasagem. Parece estar mais interessado numa discussão com um “bom mestre”, tomado segundo a visão carnal, humana, de Jesus Cristo. Por isso, Jesus eleva o seu olhar de sua humanidade para Deus, o Pai. Um só é o Bom. Toda questão é uma busca. A busca pela vida é a busca pela bem-aventurança, pela felicidade perene e perpétua. É a busca pelo bem sumo da vida. Mas, este sumo bem da vida só pode ser encontrado naquele que é o único bem. Por isso, Jesus Cristo eleva o olhar do seu interlocutor, de sua humanidade, para a deidade do Pai, o sumo Bem, melhor, o único Bem. São Francisco, na conclusão dos “Louvores” que ele compôs para serem ditos em todas as horas canônicas do ofício da Paixão, assim nos leva a louvar a Deus: “Onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus, que és todo o bem, o sumo bem, o bem total, o único bem, a Ti rendamos todo o louvor, toda a glória, toda a graça, toda a honra, toda a bênção e todos os bens. Faça-se. Faça-se. Amém” (LH). O homem que encontra em Deus o Único Bem é desprendido de todas as coisas, e, neste sentido, é pobre em espírito. É, ao mesmo tempo, o homem mais rico que há. É um homem que vive num reino de dons divinos. Com efeito, ele vê todas as coisas como concreções do único mistério da gratuidade divina. Tudo, de fato, surge da comunicação, da difusão do Único Bem: Deus.
Por isso, a resposta de Jesus é uma pergunta provocadora: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um: Deus”. Jesus, assim, o põe em face de Deus a quem ele deve escutar: “Shemá Yisrael Adonai Elohêinu Adonai Echad – Escuta ó Israel, Adonai nosso Deus é Um” (Cf. Dt 6, 4-9). Este Um é o único bom. Em comparação com a sua bondade, nada, ninguém, é bom. Fora d’Ele nada é bom. Quem é seu filho – seu herdeiro – tem em herança todos os bens. Pois, nele, todos os bens são um único bem. Ele é o bem de todos os bens. Eis a vida eterna, a vida em plenitude: o Único Bom.
2.2. Os mandamentos, caminho da vida eterna
Jesus, depois de abrir os olhos do jovem para a única resposta de sua pergunta – “só Deus é bom” – mostra-lhe, também, o caminho “para ganhá-la”: “Tu sabes os mandamentos (miṣvot)…”. A resposta de Jesus, portanto, não é um conselho, mas a evocação daquilo que é necessário fazer: pôr-em-obra aquilo que é devido a Deus por parte do homem, por uma questão de justiça. Ela vincula e chama o jovem à responsabilidade, à obediência. Por isso, a pergunta, agora, se volta contra o perguntador. Ela o inclui em si mesma. Ao pôr a questão é posto, ele mesmo, em questão, pois não há como buscar sinceramente um tesouro sem seguir seu rastro, seus vestígios, no caso da vida eterna, os mandamentos de Deus.
Vem, então, a resposta do homem que parece ser, em todo o caso, sincera: “Mestre, tudo isso eu observei desde a minha juventude”. Não fosse sincera não se entenderia o que segue: “Jesus fitou-o, o amou e lhe disse…”. Jesus penetrou em sua consciência e é por graça dessa verdade que o amou. Por isso, não há indício de que este amor de Jesus por ele tenha diminuído ao final desta história, quando o homem decide por não segui-Lo.
A observância dos mandamentos, que ele dava a si mesmo diante de Deus, em face de Deus não é pouca coisa. Isso é ser como uma criança diante de Deus! Por isso, Jesus foi claro, simples e direto na sua resposta. Ali não havia o que discutir: ou segue ou volta atrás, ou obedece ou desobedece. No amor não cabe indiferença, mediocridade.
2.3. Seguir Jesus Cristo, a vida eterna
O homem, por sua vez, parece não se contentar com os mandamentos, querendo algo de extraordinário: “tudo isso eu tenho observado desde a infância, que outra coisa me falta?”. Mas, no fundo, mostra-se ainda preso a si mesmo. Jesus, porém, em seu amor por ele, quer ajudá-lo a ir para fora e para longe de si mesmo e de seu ideal. Quer libertá-lo de seu enredamento. Por isso responde: “Só uma coisa te falta: vai; o que tens, vende-o, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” (Mc 10, 21).
A resposta de Jesus é radical como radical era a pergunta do jovem. O que chama a atenção nesta resposta é que Jesus faz identificar a obediência, a observância dos mandamentos, com o seguimento de sua Pessoa. Observar os mandamentos é o mesmo que seguir Jesus e seguir Jesus é observar os mandamentos e observar os mandamentos é o caminho para o Pai, para a vida eterna. Nele os mandamentos encontram o seu fim, isto é, sua consumação, sua per-feição. Cristo é a meta a que os mandamentos tendem. Ele dá plenitude à Lei e aos Profetas. Vale repetir aqui, o que a Igreja vem acentuando nas últimas décadas: “No início da vida cristã não está uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte, e desta forma o rumo decisivo” (EG 7).
Observar os mandamentos, seguir Jesus Cristo, portanto, significa fazer uma ruptura, dar um salto mortal: morrer para si mesmo a fim de viver na comunhão com Cristo, no seu seguimento. Eis o significado do “vender tudo e distribuir aos pobres”. Este processo, passou a ser conhecido como “caminho da abnegação cristã”. São Francisco o chama de “caminho da altíssima pobreza” ou também de “regra e vida”:
A Regra e a Vida destes Irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem nada de próprio e seguir a doutrina e os vestígios de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz: Se queres ser perfeito, vai e vende tudo o que tens e dá aos pobres e terás um tesouro no Céu; e vem, segue-me. E: Se alguém quer vir após mim, abnegue a si mesmo e carregue a sua cruz e siga-me e. Igualmente: Se alguém quer vir a mim e não odeia pai e mãe e esposa e filhos e irmãos e irmãs e até mesmo a sua alma não pode ser meu discípulo. E: Todo aquele que deixar pai ou mãe, irmãos ou irmãs, esposa ou filhos, casas ou campos por causa de mim, receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna (RNB 1).
Abnegação, pobreza, aqui nada tem a ver com empobrecimento, mas ao contrário, com enriquecimento, uma vez que elas incluem no próprio ato de dar, distribuir, de abnegar-se o recebimento daquilo (Daquele) que se busca, deseja e ama. Por isso, também, este modo de ser cria uma profunda afeição e fraternidade para com os pobres da terra. Por isso, Jesus diz para o homem para doar os seus bens aos pobres. Enfim, a Pobreza evangélica, essencial, é a abertura, no homem, para receber a riqueza essencial de Deus: o Reino dos Céus, a vida eterna.
2.4. O rico e sua dificuldade
Vem, então a dificuldade do rico: “Mas a estas palavras, ele ficou acabrunhado e retirou-se triste, pois tinha muitos bens”. Agarrando-se a estes bens e preso às suas posses, ele perdia a chance de, num salto, alcançar e receber o bem de todos os bens: a riqueza essencial, a riqueza do ser, da cordialidade, da jovialidade, da liberdade dos filhos de Deus. Assim, confrontado com o chamado para o seguimento, para o discipulado, ele vacilou confundindo posse com riqueza. E assim, em vez de abrir-se para a jovialidade na escuta obediente do chamado, foi-se embora, triste.
Jesus, então, olha ao seu redor e diz aos seus discípulos: “como é difícil àqueles que têm as coisas entrar no reino de Deus”. Os que têm as coisas são, aqui, aqueles que, dominados pela cobiça e soberba, se deixam tomar, e possuir por elas, afligindo-se, perdendo a jovialidade, a serenidade e a cordialidade da vida. Prisioneiros do útil, não conhecem a importância essencial das coisas “desúteis”.
Manoel de Barros, o poeta de alma franciscana, em seu “Livro sobre Nada” insiste na importância e nobreza e grandeza das coisas desúteis e vis. Recorda como as coisas, vistas com o olhar de criança, tinham para ele e seus irmãos, uma “desutilidade poética” (p. 11). Adverte que “só o obscuro nos cintila” (p. 15). Na segunda parte do seu “Livro sobre Nada” fala do “desejar ser”. Recorda o dito de Padre Antônio Vieira: “o maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, têm ser” (p. 36). Esse desejo de ser se volta para a superabundância, para a superfluência da gratuidade: “Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário” (p. 41). Nisso tudo, descobre um caminho para Deus: “Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus. Senhor, eu tenho orgulho de ser imprestável” (p. 57). E arremata (p. 61):
Venho de nobres que empobreceram. Restou-me por fortuna a soberbia. Com esta doença de grandezas: hei de monumentar os insetos! (Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés de seus discípulos. São Francisco monumentou as aves. Vieira, os peixes. Shakespeare, o Amor. A dúvida, os tolos. Charles Chaplin monumentou os vagabundos.) Com esta mania de grandeza: Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho.
Assim, no Nada, no vil, o homem encontra a riqueza essencial. O último verso desta parte do livro diz: “perder o nada é um empobrecimento” (p. 63).
2.5. A perplexidade dos discípulos
A fala de Jesus era muito forte. Por isso: “Os discípulos estavam perplexos. Mas Jesus lhes repete: ‘Meus filhos, quão difícil é entrar no reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. O modo de dizer de Jesus se torna, aqui, hiperbólico.
É tão difícil ao homem deixar de pôr a sua confiança no ter, no poder, no saber, para, livre, desprotegido dos bens criados, encontrar sua segurança unicamente em Deus! Por isso, o homem tem que se libertar sempre de novo, “vender tudo o que tem e distribuir aos pobres”, para essa liberdade da pobreza, que o deixa aceder à riqueza essencial. Isso é o mesmo que tornar-se como criança – como meditávamos domingos atrás e na festa de São Francisco.
A perplexidade continua e aumenta: “Eles (os discípulos) estavam cada vez mais impressionados; diziam uns aos outros: ‘Então quem pode ser salvo?’ Fixando neles o olhar, Jesus disse: ‘Para os homens, impossível, mas para Deus, não, pois a Deus tudo é possível”. Por si mesmo, a partir de si mesmo, ao homem é impossível a conquista do dom da riqueza essencial, que lhe advém com a pobreza essencial, do Um – o Único Bom, o Pai. A liberdade não se dá sem a ascese da libertação. Esta é uma condição necessária. Mas não é suficiente. A liberdade, o seguimento, a vida eterna não se dá sem a graça. Daí a resposta de Jesus: “Para os homens isto é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível”.
Pedro, então, num arroubo de vanglória, se adianta, como que arrogando para si o mérito e a recompensa de um feito extraordinário: “Eis que nós deixamos todas as coisas e seguimos a ti”. Em outras palavras: aquilo de que aquele homem rico não fora capaz ele e os seus condiscípulos o seriam. Nem se dá conta do que Jesus acabara de dizer: “para os homens isto é impossível”.
Ao evocar o mérito e reivindicar a recompensa, Pedro deixa evadir o mistério da gratuidade do seguimento e da vida eterna. A resposta de Jesus, longe de garantir a recompensa a um mérito, quer realçar a superfluência da gratuidade de Deus. Por isso, diz: “Em verdade, eu vos digo, não haverá ninguém que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou campos por minha causa e por causa do Evangelho, e não receba ao cêntuplo agora, no tempo presente, casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições, e no mundo futuro, a vida eterna”.
2.6. Perseguições e a nova ordem
Esta última frase explica o adendo de Jesus ao cêntuplo: “com perseguições”. Toda perseguição se apresenta como uma moeda, um tesouro de duas faces. Se de um lado temos os maus tratos, as tribulações, os obstáculos, de outro lado, ou melhor no meio de tudo isso vige e cresce o vigor, a afeição e a graça do seguimento, a vida eterna.
Abandonar a si mesmo por Cristo, por seu nome, pelo reino de Deus – que é a vigência e a regência do país da Gratuidade – eis a grande graça do seguimento. Quem tudo abandona neste abandono de si mesmo este recebe simultaneamente a riqueza essencial – o tesouro do Reino dos Céus, tornando-se filho no Filho de Deus, a plenitude da vida.
E concluindo todo este seu ensinamento Jesus aponta para o novo ordenamento que então nasce entre seus seguidores: “Muitos dos primeiros serão últimos e os últimos serão os primeiros”. Jesus não promete a salvação aos que o seguem e a perdição aos que não o seguem, como faziam, por exemplo, os essênios. Jesus apenas estabelece uma ordem diversa no reino dos céus: quanto mais desprendido for o homem, tanto mais rico da riqueza essencial será ele no reino dos céus; quando mais perseguido for o homem por causa de sua pobreza e serenidade, tanto mais nobre será ele no reino dos céus. Assim, os que, para o mundo, são os últimos, por causa das perseguições, são, para Jesus, os primeiros.
3. A palavra de Deus viva e eficaz
A segunda leitura, tirada da Carta aos Hebreus, começa proclamando que “a Palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”.
Mais, ou antes que um meio de comunicação, Palavra de Deus, aqui é o viver, o brotar da Vida mais íntima Dele mesmo, de seu desejo mais ardente, de sua paixão mais profunda que não são outros senão amar, doar-se, sacrificar-se pelas suas criaturas amadas e prediletas, os homens. Por isso, diz São João, “Deus é Amor” (1Jo 4,8), Caridade, abnegação. Em outras palavras, a “Palavra de Deus é viva”, significa que Ela é a própria vida, o próprio vir a ser de cada coisa.
Diz, também, que a Palavra de Deus é eficaz. Isso porque em Deus não há separação entre desejo, pensamento e obra. Tudo o que ele pensa ou deseja acontece como se pode ver na narrativa da criação: “Deus disse, faça-se o firmamento… e assim se fez” (Gn 1,6-7). Por isso, São João diz que “tudo começa a existir por meio Dele – a Palavra – e sem Ele nada se cria” (Jo 1,3). Se Deus nunca tivesse pensado e dito “pedra” e não haveria jamais pedra, não tivesse me desejado, pensado e eu não existiria.
A Palavra de Deus, é também “cortante…”. Cortante, aqui significa iluminadora. Isto significa que se somos criados pela Palavra só podemos nos conhecer e conhecer a Ele e todas as criaturas por Ela, na medida que a acolhemos na docilidade de sua doação. Por isso, para Deus – a Palavra viva – poder doar-se precisa criar seres, criaturas que o recebam. As criaturas todas, de fato, só existem porque estão em contínuo e permanente estado de recepção, isto é, de “filiação”. Os seres inanimados, bem como os animais e vegetais, a seu modo, guiados pelo instinto, sem pôr nenhuma resistência ou obstáculo, permitem que a Palavra se realize neles plenamente. Para o homem, porém, a recepção é diferente: precisa ser querida, amada, desejada, procurada. E nisso Frei Egídio, companheiro de São Francisco, é mestre acabado. Seus Ditos expressam e testemunham a todos nós, e através dos tempos, que nele, Frei Egídio, a Palavra de Deus não era apenas ouvida, mas, antes, a exemplo de Maria, a palavra era dita, falada, conversada, criada e, por isso, “viva e eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”.
Conclusão
O jovem rico, que não soube ou não conseguiu ou não quis acolher o desafio do caminho de Jesus, não teve acesso à riqueza essencial, verdadeira, e por isso, mergulhou na tristeza, perdendo a jovialidade de ser e viver. A Sabedoria da vida eterna, o caminho da abnegação evangélica, faz-nos lembrar das palavras do Papa Francisco: “O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios in¬teresses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que cor¬rem também os crentes. Muitos caem nele, trans¬formando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado” (EG 2).
Contrapondo a esta atitude ouçamos a última página do Diário de um grande frade falecido há poucos anos: “Deus que nos une, Deus que nos sustenta, nos provoca, Deus que alegra silenciosamente o deserto, que faz do deserto uma boa habitação, que nos leva à liberdade da pobreza essencial, e longe de ser um vazio de renúncias e privações, é-nos a extensão aberta, riquíssima, o Zu-hause (o estar, ser em casa, o lar da intimidade, do encontro) do céu e da terra; sim, amemos de todo o coração, Kat’holon (com um coração católico, universal) na inocência, na limpidez, na segurança (sine cura, isto é, a modo dos pássaros do céu) do grande e profundo Mistério da ab-negação e da consagração virginal a esse Deus de Jesus Cristo que nos ensinou a amar como só Deus sabe amar”.
E continua esse frade: “Vamos, pois aprofundar, nos afeiçoar cada vez mais a esse nosso Deus em cujas mãos colocamos a Clareza, a Pureza, a Fidelidade, a Singularidade do nosso encontro fraternal. Vamos, pois amar sempre mais a nossa consagração, no dia-a-dia da finitude da Terra, sempre de novo recomeçando como a Fonte, na boa-vontade do que podemos agora e aqui, tornando-nos cada vez mais experimentados na Jovialidade, na alegria do Deserto claro da Ab-negação”.
E conclui: “E vamos amar a nossa vocação. Não nos deixemos confundir, nos apoucar com modas e badalações de tantas coisas aparentemente importantes da renovação, que nada renovam no essencial, mas que se perdem no ensimesmamento do eu exacerbado. Não nos deixemos apoucar, nos amargurar pelas fraquezas, defeitos, pelas dificuldades do dia-a-dia, mas vamos sempre de novo com muito realismo e encarnação haurir a alegria de viver a nossa vocação da grande Fonte desta graça única e singular do nosso, do teu e meu encontro em Jesus Cristo. Por isso, não por sacrifícios, não por uma renúncia, mas sim por uma fé, e uma grande Boa-Vontade, vamos erguer a cabeça e ser cordiais para o que não passa, sem nos deixarmos impressionar pelo que passa. Vamos, pois caminhar alegres no Senhor!” .