23º Domingo do Tempo Comum – Ano B – 2018

23º Domingo do TC – Ano B – 2018
09/ 09/2018
Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Is 35, 4-7ª; Sl 145; Tg 2, 1-5; Mc 7, 31-37
Tema-mensagem: De surdos e mudos Jesus nos transforma em ouvintes e proclamadores da Boa Nova do seu Pai
Sentimento: alegria e gratidão

Introdução
Liturgicamente, poderíamos chamar o domingo de hoje como o “Domingo dos surdos que voltam a ouvir e dos mudos que voltam a falar”. Tudo isso porque Deus, o nosso Deus, é, acima de tudo Palavra, Unidade de três Pessoas que vivem da profunda comunhão entre si e que têm sede de comunhão com todas as suas criaturas, principalmente conosco, os humanos. Por isso, ver-nos surdos e mudos enche-O de compaixão e misericórdia, levando-O à loucura de apequenar-se a nós, à nossa condição humana até a morte e morte de cruz, só para poder comungar de nossa vida e de nossa sorte.

1. Israel um jardim de prosperidade e felicidade humana
Quem nos introduz no mistério deste domingo é o profeta Isaias. O pequenino trecho, proclamado na primeira leitura de hoje, pode ser considerado como o resumo de todas as profecias de Isaias acerca dos tempos messiânicos.
1.1. Uma visão esperançosa e alvissareira
Em meio à mais desoladora experiência do exílio, Israel – privado de tudo aquilo que fora a delícia de seus corações, principalmente em termos de fé de um povo amado e privilegiado por Deus; de um povo que aos sábados “subia jubiloso a Jerusalém para, em seu templo glorioso, cantar seus salmos em honra de seu Senhor” (Sl 122) – vê renascer a esperança e a fé total em Deus que lhes proporcionará um novo e promissor êxodo.
É dentro deste contexto que devemos ler estes maravilhosos versos do profeta:
Dizei aos corações perturbados:
“Tende coragem, não temais:
Aí está o vosso Deus,
vem para fazer justiça e dar a recompensa.
Ele próprio vem salvar-nos” (Is 35, 3-4).

Sinais dessa proximidade salvadora de Deus e de sua assistência são as obras estupendas, extraordinárias, maravilhosas e prenunciadas assim:
“Então se abrirão os olhos dos cegos
e se desimpedirão os ouvidos dos surdos.
Então o coxo saltará como um veado
e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35,5-6).
Enfim, conclui o profeta:
“Águas hão de jorrar no deserto, torrentes na estepe.
A terra ardente se mudará em lago, a região da sede,
em fontes brotando” (Is 35, 6-7).

2. Também na desolação de hoje uma semente de esperança
Como outrora com os israelitas, também nós, vivemos numa terra devastada e desolada. A crise generalizada do mundo de hoje (crise total, isto é, em todos os aspectos dimensões do viver humano), impõe-se como um impasse, na passagem do homem de até agora para o homem humano do porvir. A violência deixa de ser composta de atos para ser estado: disposição permanente no mundo da convivência dos homens.
No deserto de hoje, o homem vive desencontrado com sua humanidade. Humanos cada vez menos humanos, cada vez mais nos assemelhamos às feras, ou aos animais domesticados ou, ainda, às máquinas de processar informações, de calcular, etc. Neste ambiente de desumanidade nos deparamos com jovens cada vez menos esperançosos de encontrar as vias da jovialidade. O problema das drogas, a epidemia da depressão, etc., mostram como a cordialidade e a jovialidade de viver estão se extinguindo. Somos uma humanidade necrófila que só sabe produzir coisas que serão imediatamente destruídas, como os bens de consumo e coisas que destroem e arrasam, como se pode ver na indústria bélica e na sede pelo armamento. Neste sentido, o suicídio passa a ser não apenas uma alternativa, mas uma consequência “lógica” deste estado do humano que não tem mais sensibilidade, menos ainda sabor para com a bondade das coisas e muito menos pelo seu mistério; consequência adotada por muitos jovens, principalmente, da classe média e alta, inclusive universitários: um modo de eliminar o vazio, a infelicidade da vida com a eliminação da própria vida. Concomitantemente, jovens de classes mais pobres são vítimas da falta de acesso ao estudo, ao emprego, do narcotráfico, da violência etc.
O Papa Francisco, assim se expressa diante desta realidade: “Em alguns lugares produziu-se uma ‘desertificação espiritual’, fruto do projeto de sociedades que querem construir sem Deus ou que destroem suas raízes cristãs. Lá o mundo cristão está a tornar-se estéril e se esgota como uma terra excessivamente desfrutada que se transforma em areia” (EG 86).
O maior perigo deste tempo, portanto, não está na destruição, mas sim na aniquilação da desolação. A destruição acaba com o que existe. A aniquilação da desolação acaba com o possível, faz secar as fontes da criatividade humana, matando, inclusive o desejo nato de viver.

3. Pessoas-cântaro
Todavia, como os israelitas no deserto e no exílio (Cf. 1ª leitura), nós cristãos não apenas não podemos ceder ao domínio do desespero, mas devemos tornar-nos, antes, um oásis de esperança. Nós que, a exemplo do filho pródigo e do próprio Cristo, fazemos desta vida uma viagem de retorno ao “em casa”, isto é, à morada junto do mistério, à familiaridade de Deus, podemos, a exemplo de Moisés e Isaias, ajudar, com nossa passagem por este deserto, a fazer dele um lugar de transformação. Somos chamados a salvaguardar as fontes da criatividade que jorram como um dom de Deus nos corações humanos (Cf. Evangelho da samaritana).
Neste sentido, mais uma vez ouçamos nosso Papa: “Mas «é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós, homens e mulheres. No deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da vida, ainda que muitas vezes expressos implícita ou negativamente. E, no deserto, existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança». Em todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos entregou como fonte de água viva.
Não deixemos, jamais, que nos roubem a esperança!” (EG 86).
Assim, a travessia deste deserto de desolação em vez de uma errância se tornará, a exemplo do filho pródigo, uma viagem de retorno para junto de nossa origem, a casa paterna; uma viagem na qual poderemos testemunhar o maravilhoso prodígio: que cegos passam a enxergar; que surdos passam a ouvir, mudos a falar, sim, a gritar de alegria; e que coxos passam a andar com desenvoltura.
Portanto, por mais que o homem se degrade no caminho da desolação, não poderá jamais extinguir a chama de sua origem paradisíaca, como nos mostram estas palavras de Santo Agostinho:
“Grande és tu Senhor e sumamente louvável. Grande é a tua força e a tua sabedoria não tem limites. Ora, o homem, esta parcela da criação quer te louvar, este mesmo homem carregado com sua condição mortal, carregado com o testemunho de seu pecado e como o testemunho de que resistes aos soberbos. Ainda assim, quer louvar-te o homem, esta parcela da tua criação! Tu próprio o incitas para que sinta prazer em louvar-te. Fizeste-nos para Ti e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em Ti” (Santo Agostinho).

4. De surdos e mudos a ouvintes e falantes
Quem nos conduz para o coração do mistério – maravilha – deste domingo é o conhecido milagre da cura de um surdo-mudo, processado por Jesus. Quem o narra é São Marcos.
4.1. A profecia antiga se realiza
Na primeira frase desse evangelho dois destaques merecem nossa consideração. Primeiramente, vem assinalado que “Jesus saiu de novo…”. Sair, sair sempre de novo, é a constante da vida pública de Jesus. Estamos diante da identidade mais profunda, não apenas de Jesus, mas de Deus mesmo, do Pai. Ao longo de todo o Antigo Testamento, Deus aparece saindo, vindo ao encontro do homem e de sua história através dos Profetas e outros servos seus. E agora o faz pessoalmente, através de seu Filho muito querido. É o vigor do coração de um Pai apaixonado, que sofre vendo seus filhos errantes distantes e fora de sua casa porque se fizeram surdos e mudos diante de sua Palavra e de suas iniciativas.
Além do mais, estranha, também, que nesta saída em vez da Judeia, sua terra natal, prefere percorrer a região dos estrangeiros e gentios, aqueles que, por muitos, eram considerados “seus inimigos”, uma vez que judeus e pagãos não se comunicavam ou não se entendiam. Mas, é justamente desses que Jesus, de modo simples, humilde e fraterno, vai ao encontro. Por isso, aqueles pagãos e israelitas decadentes de Tiro, Sidôn, chamados pelos fariseus e maiorais de Jerusalém de “cães” e impuros, “trazem-lhe um surdo, que falava com dificuldades, e lhe suplicam que lhe imponha a mão” (v. 32).
É a profecia de Isaías começando a se realizar: “surdos escutam, mudos falam, cegos “veem (Cf. primeira leitura de hoje).
A fé que Jesus não encontrava na Judéia, principalmente em Jerusalém, ele a vê, sente e acolhe entre esses simples moradores dessas terras de pagãos. Diferentemente dos escribas, mestres da lei e fariseus que viam naquele pobre doente um castigado e rejeitado por Deus porque deveria ter sido um transgressor da lei, um pecador e que, portanto, devia ser excluído da comunidade, eles veem nele, antes, uma convocação à solidariedade, ao cuidado, ao mandamento do “amor ao próximo como a si mesmo”, ordenado por Jahvé (Levítico 19,17).
Esses homens, representando toda a humanidade, sabem muito bem que eles não têm o poder para realizar a mencionada cura. Por isso vão ao encontro de quem já estava vindo ao encontro deles. Bela esta sintonia e admirável esta reciprocidade! Está lançado o princípio da fé, da entrega, da confiança, do milagre. Por isso, eles pediram a Jesus “que impusesse a mão sobre o surdo-mudo”. Sabiam eles, implicitamente, que mais que a dimensão meramente físico-biológica estavam diante do mal maior, do mal de todos os males: a incapacidade absoluta do homem, a partir de si, de poder participar da alegria da festa do encontro, da comunhão com Deus, consigo mesmo, com os outros e com todas as demais criaturas.
Mas, em que consiste, então, esta surdez, esta mudez originária? A tradição bíblica fala em desobediência, “não escuta”, mas que na verdade tem sua origem na soberba, isto é, na tomada de posição de Adão – de cada um de nós! – de colocar-se sobre, acima de Deus, e de suas criaturas, querendo ser homem e Deus não a partir de Deus, mas a partir de si. Quem se coloca, assim, acima de tudo e de todos, não ouve nem pode ouvir mais o grito dos semelhantes, muito menos dos pobres e doentes, dos abortivos e injustiçados, das crianças abandonadas e dos idosos esquecidos, “da nossa irmã, a mãe terra” que, silenciosa e humildemente, geme e sofre por causa dos males que lhe infligimos (Cf. LS 2). Assim, se quiséssemos caracterizar a estruturação da humanidade de hoje, poderíamos resumi-la com estas duas pequenas palavras: surda e muda.

4.2. Uma cura que se faz à parte
O passo seguinte, também nos surpreende, pois, “tomando-o à parte, longe da multidão, Jesus pôs os dedos nos ouvidos dele, cuspiu e tocou-lhe a língua”. Surpreende porque Jesus, contrariando todas as nossas práticas, até mesmo religiosas e pastorais, não faz da cura um espetáculo. Não busca aplausos nem age como um ator. Nenhum traço de vaidade ou vanglória. É como diz um autor antigo: afinal, nenhum milagre vale tanto quanto vale a humildade.
Além do mais, Jesus leva o homem à parte porque só o encontro é que cura e a multidão nunca se presta para o encontro, apenas para ajuntamentos. Na multidão as pessoas não contam como pessoas, apenas como número e objeto. Tumultuam-se, esbarram-se umas nas outras, e são distantes, estranhas umas às outras. Além do mais, como bom médico, ou melhor ainda, como irmão mais velho, quer ficar a sós com o doente e o irmão a fim de poder, ele próprio, Jesus, cuidar dele com o calor da afeição de suas próprias mãos, sem jamais confiá-lo à frieza dos estranhos ou terceiros. Deus jamais terceiriza sua obra salvadora, sua cruz. Por isso diz que cada um deve carregar a sua cruz (Cf. Mt 10,38).
Além do mais, Jesus poderia curar aquele homem com um único comando de sua voz. Mas fez questão de pôr os seus dedos nos ouvidos dele. Sua divindade, afinal, estava unida com sua humanidade e por isso, seu corpo imbuído de um poder divino, pelo toque de seus dedos e pela sua saliva, concede-lhe a saúde, o vigor pleno da vida. Por isso: “erguendo o olhar para o céu, suspirou. E disse-lhe: ‘Effatá’, isto é: ‘Abre-te’”. Ah, o toque e seu poder milagroso! É do toque que procede a fé, o amor e, consequentemente as conversões. Foi tocando na carne purulenta do leproso que São Francisco iniciou seu processo de conversão. Por isso, também, no atual rito do batismo o celebrante, impondo a mão sobre o batizando, exclama: “O Senhor te dê a sua força!”. No ritual antigo havia um gesto ainda mais expressivo: o celebrante, tocando com seus dedos os ouvidos da criança, dizia: “Effatá”, “Abre-te!”
Jesus ergue os olhos para o céu. Afinal, “toda dádiva boa e todo o dom perfeito vem do alto, do Pai das Luzes” (Tg 1,17). É Dele que todos os enfermos, todos os homens, toda a criação, devem esperar a saúde. Por isso, Jesus suspira, geme como o Servo, o Eleito, o Filho muito amado que tomou sobre si as nossas dores e as nossas enfermidades. Movido pela compaixão por nós, os fracos, é que ele se põe em face àquele homem, representando a humanidade toda.
A palavra que Jesus diz é: Effatá – que quer dizer: “abre-te”. É um comando, ou melhor um novo ordenamento que Jesus introduz nos ouvidos, (e através deles no coração) que haviam sido fechados por determinação ou (des)ordem de Adão. Agora estão sendo abertos por ordem do novo Adão. Só então o homem poderá, de novo, ouvir a Deus e suas criaturas.
Como homem que era, Ele voltou o olhar para o céu e suspirou, mas como Filho de Deus, que também era, ele ordena aos ouvidos daquele homem que se abram. E que maravilha! “Logo se lhe abriram os ouvidos, a língua se lhe desatou, e ele falava corretamente”.
Eco deste suspiro e deste grito de Jesus ao Pai para que o homem, a humanidade toda, possa, de novo, ouvir e falar, vemos todos os dias quando a Igreja inicia sua grande oração, o Ofício Divino: “Abri os meus lábios, ó Senhor e minha boca anunciará o vosso louvor!”, ou então: “Vinde ó Deus em meu auxílio! Socorrei-me, sem demora!”. Por isso, também, toda santa missa tem como rito inicial o “ato penitencial”, através do qual imploramos humildemente, batendo no peito, que a misericórdia do Senhor venha em nosso auxílio, nos purifique, tornando-nos assim menos indignos para podermos ouvir e compreender sua palavra e proclamar tão grande hino de louvor e ação de graças.

4.3. O bem não precisa de propaganda
Terminada a oração ou intercessão da cura, “Jesus recomendou-lhes que não falassem disso com ninguém: mas, quanto mais recomendava, tanto mais, eles o proclamavam” (Mc 7, 36).
São Jerônimo vê nesta passagem o grande ensinamento de Jesus: que não nos gloriemos em nosso poder, mas na cruz e na humilhação. No entanto, não se pode esconder uma cidade luminosa construída sobre um monte (Cf. Mt 5,14). Por isso, o renome de Jesus, começa a ressoar e a se espalhar pela região toda, antecipando, assim, a proclamação de sua ressurreição que os discípulos farão após o Pentecostes. Assim, os membros daquela multidão que proclama a escuta e a fala, os feitos, o poder e a bondade de Jesus tornam-se os primeiros semeadores do germe da futura Igreja. Por isso, no teor de um testemunho proclamam: “Ele fez bem todas as coisas; faz os surdos ouvirem e os mudos falarem” (Mc 7, 37).
Todos nós somos chamados a sermos ouvintes da Palavra de Deus e confessores dela. Mas, para isso, precisamos ser conduzidos para fora da multidão, isto é, para longe dos pensamentos turbulentos, dos sentimentos tumultuados, das ações desordenadas e das palavras corrompidas (S. Beda). Precisamos ser tocados pelo dedo de Deus, o Espírito Santo (Cf. Ex 8, 19). É preciso que a divina sapiência – a saliva – abra os nossos lábios para a profissão de fé e o louvor de Deus. Para isso, é preciso que voltemos nosso olhar para o céu, como fez Jesus, e que esperemos a saúde do espírito como uma dádiva boa e um dom perfeito que vem do alto, do Pai das Luzes.
Sim, é preciso que, como Jesus, nós gemamos – que o gemido da compunção interior nos purifique. E que, afinal, nossos ouvidos interiores ouçam a Palavra de Deus junto com os ouvidos exteriores e que louvemos o Senhor com nossos corações e não só com os nossos lábios; sobretudo, que nossos corações, com os seus afetos, ouçam e rendam glória a Deus, e proclamem a Jesus Cristo: que ele faz bem todas as coisas e que, quem dele se aproxima, experimenta sua benignidade, pois também ele, a exemplo do surdo mudo, se torna bom. Assim, o certo é que, ninguém que se dispõe a ir ao encontro do Senhor como, por exemplo, quando se vai rezar o terço, ler a Sagrada Escritura, à missa, etc. nunca se sairá dele como entrou. Entra um homem e sai outro. Entra o velho Adão, surdo e mudo e sai o novo Adão, semelhante a Jesus Cristo, ouvinte e falante das maravilhas de Deus e de seu Reino.

5. Sem acepção de pessoas
Em consonância com a primeira leitura e o evangelho de hoje o apóstolo Tiago, o patriarca dos Doze e bispo de Jerusalém, adverte e exorta os fiéis e a todos nós acerca da necessidade de jamais conformar-nos com os vícios deste mundo, principalmente o dos favorecimentos e privilégios particulares.
No Novo Testamento sempre lemos que Deus não faz diferenças de pessoas (Rm 2, 11; Ef 6,9; Cl 3, 25; 1Pd 1, 17). E no trecho lido hoje, Tiago coloca com clareza e precisão o fundamento deste comportamento: “Meus irmãos, a fé em nosso Senhor Jesus Cristo crucificado não deve admitir acepção de pessoas” (Tg 2,1).
Por isso, diz o apóstolo, não dá nem para imaginar que numa reunião de seguidores de Jesus se dê toda a atenção e favorecimentos a alguém que está bem vestido enquanto que a um pobre o menosprezo e a desconsideração. Longe de nós, diz o apóstolo, tal e tamanha “discriminação”. Pois, Deus, a quem prometemos e devemos imitar, em vez de olhar os personagens que os homens representam no teatro da vida pública, vê os corações dos homens. Por isso, costumava dizer São Francisco: “O homem é tanto quanto é diante de Deus e nada mais” (1B 6,1). Assim, o crente não presta atenção nas diferenças desviantes, que levam a privilegiar a alguns homens e a desprezar outros. Ele não considera os outros pela perspectiva do mundo, da vida exterior, mas do fato que todos somos filhos do mesmo Pai comum e que Jesus Cristo deu sua vida do mesmo modo para ricos e pobres, santos e pecadores.
O cristianismo começou a transformar a face da terra justamente por dar maior atenção aos fracos e enfermos, aos pobres e humilhados. Os desprovidos de poder tornaram-se os primeiros destinatários da Boa Nova. O cristianismo não se enquadrou nos esquemas, nas ordens, nos planos, nos mundos (des)humanos já instituídos, constituídos, interpretados. O cristianismo criou um novo mundo para si. Este “mundo próprio”, “mundo novo” do cristianismo era, então, o germe da Igreja, e esta era, no velho mundo dos homens velhos, a testemunha de que uma transformação do humano era possível – uma transformação em que todos, igualmente, poderiam ser amados, tornar-se filhos muito amados do Pai, constituindo uma única família, universal, católica, em que todos eram irmãos e irmãs, nada mais e nada menos.

Conclusão
Como outrora, também para nós hoje – invadidos até o pescoço por um antropocentrismo surdo e mudo, dominado pela ânsia do poder que escraviza, isola e destrói – Jesus, tomado pelo desejo do Pai, suspira por nós, sai e vem ao nosso encontro com o toque de sua presença humilde e fraterna para assim abrir os ouvidos de nossa filiação divina (Cf. Oração) e soltar a nossa língua para o canto da grande festa de comunhão e louvação com Ele e com todas as suas criaturas. Eis o sentido da celebração dominical.
Por isso, o milagre da cura deste surdo-mudo mais que um fato do passado perpassa a tradição evangélica e cristã como convocação para que todos o adotemos como paradigma da inauguração e da reconstrução de uma nova humanidade: uma humanidade de humanos que sabem e se dispõem a ouvir, que sabem e se dispõem a falar.
Mas, não é sempre que isto acontece. Pois a surdez e a mudez marcam sua presença funesta e constante no cotidiano de nossa vida pessoal, de nossas comunidades, povos e nações. E isto sempre por causa da soberba e da ânsia do poder, da dominação. Mas, no meio de um mundo de surdos e mudos Deus sempre suscita novos apóstolos que renovam e atualizam o gesto de Jesus. Entre estes está São Francisco, que o nosso Papa propõe para todos, hoje, como modelo e exemplo de diálogo na reconstrução da criação e da humanidade.
Conta-se, por exemplo, que certa vez o bispo e o prefeito de Assis entraram em profunda discórdia. Motivos: cobrança de impostos, dinheiro e discussão acerca de quem devia ter mais poder sobre os cidadãos. As relações estavam cortadas inteiramente: não se escutavam mais e muito menos se falavam. “E assim odiavam-se muito um ao outro. E o Bem-aventurado Francisco, doente como estava, foi movido para com eles de piedade, principalmente porque nenhum religioso ou secular se interpunha para restabelecer entre eles a paz e a concórdia. E disse a seus companheiros: ‘É uma grande vergonha para nós, servos de Deus, que o Bispo e o Podestade se odeiem assim sem que ninguém se interponha em favor da paz e da concórdia’. E assim, para esta circunstância, fez uma estrofe nos Louvores, a saber:
‘Louvado sejas, meu Senhor,
pelos que perdoam por teu amor, e sustentam enfermidade e tribulação.
Bem-aventurados os que as sustentam em paz, porque por ti, Altíssimo, serão coroados’.

Depois chamou um de seus companheiros e lhe disse: ‘Vai, e diz, de minha parte, ao Podestade que venha ao bispado com os grandes da cidade e com todas as pessoas que puder trazer’. Tendo este partido, disse aos outros dois companheiros: ‘Ide e, na presença do Bispo e do Podestade e de todos os que se encontrarem com eles, cantai o Cântico do Irmão Sol. Confio no Senhor, o qual humilhará seus corações e eles farão as pazes entre si e voltarão à antiga amizade e amor’” (CAs 84).
Foi o que os ditos frades fizeram. E que maravilha! Que espetáculo digno de ser admirado e imitado! “Terminados os Louvores do Senhor, o Podestade disse diante de todos: ‘Em verdade vos digo, que perdoo não só ao senhor Bispo, a quem devo ter como meu senhor, como perdoaria até alguém que matasse um irmão ou filho meu’. E em seguida prostrou-se aos pés do senhor Bispo, dizendo-lhe: ‘Eis que estou pronto a dar-vos satisfação em tudo, como vos aprouver, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo e do seu servo o Bem-aventurado Francisco’. O Bispo tomou-lhe as mãos e levantou-o, dizendo-lhe: ’Por meu cargo deveria ser humilde, mas, como por natureza sou inclinado à cólera, é preciso que me perdoes’. E assim eles se abraçaram e se beijaram com muita benignidade e amor” (CAs 84).

Eis, pois o caminho da reconstrução do novo humano inaugurado por Jesus Cristo: aprender a ouvir o quanto as criaturas todas, também aquelas que consideramos nossas inimigas, como a morte, as doenças, as calamidades da natureza, cantam, louvam, bendizem e enaltecem o altíssimo, onipotente e bom Senhor, sem jamais se queixarem, sem jamais uma querendo se sobrepor a outra, “numa perfeita harmonia e admirável comunhão universal” (LS). E conclui o nosso Papa: “Deus escreveu um livro estupendo cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo” (LS 84).
Por isso, fazendo eco ao cântico dos Anjos do Natal, Francisco não receia proclamar que esta é também sua missão e de todos os seus seguidores. Pois, “o que são na verdade os servos de Deus senão jograis dele que devem mover os corações dos homens e elevá-los para a alegria espiritual? E dizia isto especialmente dos frades menores” (CAs 83,22-29).

Fraternalmente,


Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm